Delírios Tipicamente Norte-Americanos IV
UMA VIAGEM AO SABOR DOS VENTOS CÓSMICOS
A limousine voava baixo, a aproximadamente 200 milhas por hora. Seguia lépida para a Costa Oeste, pois Joe planejava encontrar Kepler, um amigo de longa data que trabalhava como faxineiro para a NASA. Kepler havia sido punguista em Boston, e fora lá que conhecera Joe, quando um tentava bater a carteira do outro.
“Que está fazendo?”
“Não está vendo? A mesma coisa que você.”
Ficaram sócios, mas acabaram sendo expulsos da Associação e assim tiveram de mudar de ramo. Kepler investiu na carreira de faxineiro, trabalhando como assessor de lixeiro e estudando faxina nas horas de folga. Joe dedicara-se aos grandes trambiques, fazendo rateios em bocas de fumo e entregando drogas a domicílio. Mas mantinham contato, pois Kepler mandava-lhe souvenirs de cada lugar novo que limpava. De Yale mandara-lhe um estudante de Filosofia, que Joe fizera engolir vários tratados sobre Spinoza (o que o matou de tédio); de Aspen um caixote de neve, que derretera no caminho; do Havaí uma prancha de surf, que veio com a perna de um surfista presa ao cordão; e do velho Mississipi enviou-lhe Huckleberry Finn. Mas Joe não gostara nem um pouco do garoto, e vendera-o como esterco para um jardineiro gordo e desajeitado do Kansas.
“Joe, como é esse Kepler?”
“É um sujeito extraordinário, Clemens. O tipo de pessoa que sobe na vida, mesmo que seja apenas limpando a sujeira dos outros.”
“É muito difícil alguém subir na vida assim...”
“Não perca as esperanças, Clemens. O mundo é dos espertos, mas os imbecis vêm na rabeira. Sua hora vai chegar.”
“Deus queira.”
Em poucas horas, avistam o Pacífico. Joe e Clemens ajudam o Tio Sam a descer, pois ele não parece disposto a deixar o interior do automóvel.
“Vamos, Sam, meu velho. Venha ver o mar.”
Nadam um pouco, e Clemens quase se afoga. Tio Sam bóia alegremente, e Joe dá vigorosas braçadas entre os recifes de coral. Divertem-se a valer.
“Gasp! Joe, socorro! Gasp! Estou me afo... gasp! ...gando!”
“Já vou, Clemens. Não me apresse.”
Após um refrescante banho de mar, os nossos heróis partem para o Cabo Canaveral, onde Joe entrará em contato com Kepler, dando continuidade ao plano.
“Joe, Sam está exalando um fedor horrível.”
“Sabia que não era uma boa idéia deixá-lo entrar na água, Clemens. Ele pode apodrecer devido ao sal. Vamos, abra todos os vidros da limousine.”
“Está cheirando a peixe não muito fresco, como aqueles de final de feira. Sente-se muito mal, Sam?”
(Silêncio.)
“Ele deve estar bem, Clemens. Se estivesse sentindo algum incômodo, falaria.”
“Tudo bem, Sam? OK. Qualquer coisa berre, ouviu?”
(Mais silêncio.)
“Acho que ele está morto, Joe.”
“Sam, você morreu?”
(Silêncio de morte.)
“Pode ser que esteja mesmo morto, Clemens. Mas é parte do plano, e vamos ter de mantê-lo conosco. Depois nos livramos dele.”
“Você é quem manda, Joe. Mas bem que podíamos botá-lo no porta-malas.”
“É uma boa idéia.”
Param a limousine e descem o Tio Sam. Arrastam-no para a traseira do veículo. Joe abre o porta-malas, mas recua horrorizado.
“Diabos, já está cheio! Clemens, você escondeu um corpo no porta-malas?”
“Não, Joe! Não mato ninguém desde Nova York!”
“Então o que esse cadáver está fazendo aqui?”
“Dê uma olhada nos bolsos. Talvez encontre alguma pista.”
Joe vasculha os bolsos do defunto. Encontra sua carteira, e constata que é de um agente do FBI.
“Mas que droga! Rodamos o país inteiro com um federal em nossa cola!”
“Não posso acreditar, Joe! Como o filho da mãe foi parar aí?”
“E como você conseguiu a limousine?”
“Com uns veados que me deram carona até Seattle.”
“Você fez alguma coisa com eles? Como acabou ficando com o carro?”
“Todos morreram de dó de um coronel do exército desprezado pelo namorado, e os deixei deitados em fila no acostamento.”
“Foi só isso mesmo?”
“Juro pela minha mãe mortinha.”
Tiram o cadáver do porta-malas e põem o Tio Sam no lugar.
“Espero que esteja confortável, Sam.”
(Silêncio.)
“Joe, que faremos com o federal?”
“Deixe para os abutres.”
Clemens atira o federal pela ribanceira. O corpo vai rolando e cai ao lado de um ferro-velho, na fronteira com o Maine. Stephen King, que sofria de um bloqueio de escritor momentâneo, assiste a tudo e imediatamente inicia seu novo romance, que fala sobre um cadáver que rola da Califórnia até um ferro-velho no Maine. O livro é injuriosamente caluniado pela crítica, que acusa o autor de dar pouca importância para a geografia do país. Mas o romance é sucesso de vendas, pois é a mídia quem faz acontecer.
A limousine segue em frente. Já próximo ao destino, Joe pergunta a Clemens:
“Tem algum dinheiro?”
“Não, Joe. Deixei tudo no cassino.”
“Ainda bem que aquele federal tinha vinte dólares na carteira.”
“Que pretende fazer?”
“Pôr gasolina. Esta limousine é econômica, mas já rodamos umas 10.000 milhas com ela, atravessando a América. Uma hora o combustível vai ter que acabar.”
“É verdade, ainda não pus gasolina nela desde que a peguei com as bichas.”
Param em um posto, para abastecer. Joe joga as chaves ao frentista.
“Coloque vinte.”
“Aditivada ou comum?”
“A que quiser, rapaz. Não temos tempo a perder com essas bobagens.”
“O senhor é quem manda.”
O frentista põe a gasolina, que não é nem aditivada e nem comum. É um coquetel composto de metanol, querosene e terebentina. Duas dúzias de milhas adiante, a limousine cospe o motor a cinco jardas de distância. Felizmente, faltavam apenas umas oito milhas para a base de lançamentos da NASA.
“Saia do carro, Clemens. Vamos a pé, para não dar na vista.”
“E o Sam?”
“Coloque nele os patins e ate uma corda em torno de seu pescoço. Assim poderemos puxá-lo, evitando o inconveniente de carregar aquele peso todo.”
“Que idéia maravilhosa, Joe!”
Clemens providencia tudo.
“O nó está sufocando, Sam?”
(Silêncio.)
“Você apertou muito, Clemens. Ele não poderia responder, ainda que quisesse.”
“Vou afrouxar um pouquinho.”
Eles seguem em frente. Mas são interceptados pelos Hell Angels, que reconhecem seus bons amigos Clemens e Joe.
“Vejam, rapazes! São aqueles sujeitos antigovernistas ultramaneiros!”
“Ei, caras, precisam de ajuda?”
“Sim. Eu, Clemens e Sam estamos indo para a base de Cabo Canaveral.”
“Fica logo ali. Venham, daremos uma carona a vocês. Subam na garupa.”
Eles sobem nas garupas das Harleys, e pouco depois vêem os portões da base militar, com avisos de ‘Mantenha-se afastado’.
“Dá para acreditar nesses caras? Ei, Joe, que vieram fazer aqui?”
“Viemos para roubar um ônibus espacial.”
“Puxa, cara, que barato! Ninguém nunca pensou nisso antes! Mas o que pretendem fazer depois disso?”
“Vamos dominar o mundo.”
“Legal! Mas e depois?”
“Ainda não sei. Quando conseguirmos, verei o que podemos fazer.”
“Puxa vida! O máximo em que já pensamos foi em dominar a Carolina do Norte. Será que poderiam deixar a gente ir com vocês? Seria ótimo aprender um pouco das suas técnicas, rapazes!”
“Não sei... O que sabem fazer, além de aterrorizar com as motos?”
“O Billy ali sabe inventar palavrões novos. O Rot sabe peidar sempre que quer. E eu sei tricotar lindos suéteres, mas não conte isso a ninguém.”
“Certo. Acho que podemos usar algumas de suas habilidades a nosso favor. Estão no grupo, pessoal.”
“Ei, caras, ouviram isso? Entramos! Vamos dominar o mundo!”
Joe afasta-se para uma colina, de onde pode divisar toda a base. Precisava pensar em alguma maneira de invadi-la. E aqueles idiotas iam ser muito úteis no plano que arquitetava em sua mente. Mas antes precisava dar um jeito de contatar Kepler. Era necessário descobrir um rombo imenso na segurança do local, e apenas o faxineiro poderia informar onde estava aquela brecha. Pegou o celular e discou o número do amigo. Mas como discou? Era um celular antigo, um dos primeiros modelos a serem feitos.
COMENTÁRIOS NECESSÁRIOS OU DESNECESSÁRIOS #4
DISCOTECA CELULAR: A TELEFONIA NOS EMBALOS DO SOM
Como foi inventado o celular movido a carvão, com discagem neolítica de dígitos
Antes de mais nada, no início era o Verbo. O Espírito da Palavra movia-se através das ondas de telefonia. Mas tudo mudou de uma hora para outra. Telefones celulares minúsculos conectavam-se com a Rede Mundial pelos satélites e baixavam jogos eletrônicos. E não apenas isso. Receitas de bolo, livros inteiros, imagens eróticas, praticamente tudo que existia era oferecido em downloads. Porém não foi sempre assim. No verdadeiro início, era apenas o Silêncio. Então um sujeito muito criativo, saído das brumas da ignorância, teve a revelação: ondas de telefonia podiam ser captadas quando transmitidas! Mas precisavam ser transmitidas primeiro, e para isso era preciso um aparelho para transmissão. Depois viria o receptor, que não seria nada sem um transmissor. E antenas. E servidores, o que implicava em computadores e satélites artificiais circulando ao redor do planeta, que naquele tempo ainda nem sabiam que era redondo, correndo o risco de acabar na fogueira o linguarudo que dissesse uma tal heresia. De modos que nosso inventor das cavernas teve primeiro de descobrir o fogo, depois como alimentá-lo com carvão, em seguida vieram as máquinas a vapor e a Era Industrial, com gente morrendo nas fábricas, tendo de trabalhar 16 horas por dia. Os Direitos Humanos vieram a calhar, mas ainda não existiam os celulares e nosso homem primitivo deu tratos na bola até descobrir um meio de construir um protótipo. Mas fez, e era um aparelho enorme movido a carvão mineral que recebia as ondas telefônicas vindas do espaço sideral, filtrando-as em ruídos desconexos. Havia transmissores lá fora! O inventor primitivo decodificou as mensagens e elas diziam muitas coisas, como o que fazer para não ficar entediado durante uma partida de tênis, informes sobre a construção de bombas atômicas e uma série de outras coisas legais e úteis para o desenvolvimento humano. E a raça humana evoluiu com as idéias vindas de fora, e hoje basta digitar uma senha no celular para se deliciar com a mais nova coelhinha da Playboy.