ANULAÇÃO DOS SENTIDOS


Pode a obra de arte ser um não-lugar, não remeter a qualquer referencia do mundo real, se constituir em abstração pura, distante do processo de formação das imagens eidéticas? Carlito Carvalhosa, artista matérico da Geração 80 tem continuamente proposto pinturas e esculturas que insistentemente questionam a ambiguidade no conhecimento do mundo real, criando obras que na aparência nada representam, e na afirmação do crítico Lorenzo Mammi: elas não são.
Característica determinante na produção da arte contemporânea é a necessidade de um código individual na interpretação, que poderá ou não ser explícito, entretanto podendo na maioria das vezes ser intuído pelos sentidos. A obra plástica cria uma poética própria, tornando-se necessário identificar o código criado pelo artista, seu caráter semântico, pois embora na contemporaneidade proponha-se negar as imagens, termina-se sempre criando formas que configuram signos, transmitindo do nível microfísico das estruturas sensações macrofísicas da realidade.
Qual o código de Carlito Carvalhosa? Penso, como o escritor Jorge Luis Borges, que seja a anulação dos sentidos, que contrariando as considerações metafísicas o espaço seria apenas um incidente no tempo, e que as sensações táteis, olfativas, auditivas e visuais, simples miragens do intelecto. Carvalhosa busca o essencial, mas não acredita em suas essências, suas pinturas e esculturas são a denuncia do engodo, as esculturas tirando partido das propriedades intrínsecas da matéria, e o gesso sendo por excelência a imagem da ilusão. Os pares formais que definem a matéria, a partir da dialética mais essencial, no caso das esculturas a da resistência duro-mole definem a ambivalência da matéria sólida. No caso das pinturas senso strictu, algo de que ele está afastado a longo tempo desde a época da Casa 7, havia influência da obra de Phillip Guston coisa que permaneceu até certo ponto em Daniel Senise em suas fantasmagorias de estruturas quase orgânicas, porém em Carvalhosa o que mais o aproxima de Guston é a construção da superfície aparentemente despojada, a simplicidade nas cores lisas, sem empastamento nem sinal da mão humana, e mais uma vez a ambivalência forma-não forma.Isso evoluirá para as encáusticas e depois para as ceras na década de 90, pintura que não é pintura, relevo ou escultura, por não existirem planos, são seres ambíguos dotados de luminosidade translúcida, com maior ou menor transparência dependendo do número de camadas,criando no acumulo opacidades, coágulos, pedindo o mergulho no vazio, para encontrar o corpo que se não conforma, a pintura que não é pintura. Quando a cera se torna escultura, designada por ele como “Ceras Perdidas” nos fazem lembrar grandes círios que se extinguiram e como Alberto Tassinari diz, velas no fim, “deixando ver sua simplicidade: o escorrimento de uma superfície cilíndrica de cera em direção ao chão”.Constituem desfigurações,fragmentos nos lembrando o que foram, e mais uma vez Tassinari fala: sólidas mas vazias, opacas mas translúcidas... O gesso, matéria por ele empregada em toda uma série, como a porcelana e, no caso das pinturas matéricas o uso da cera, questionam nossas sensações de mundo. Nas esculturas de gesso o que é harmonia, peso, maleabilidade, compacidade? Um corpo trabalhado, dúbio, aparentemente leve, quando na verdade pesa centenas de quilos, falso por excelência por ser essencialmente plástico e que se torna duro, quebradiço, friável, compacto nas superfícies contínuas, embora repleto de meandros em seu interior, ele é aquilo que não é, e apesar disso, remete sim à imagem de um mundo existente. Abaixo dessas imagens fundamentais criadas na memória dos rochedos, de superfícies inexpugnáveis e excepcionalmente duras, surgem cavernas ocultas, fiordes, onde se espera a vinda iminente da transparência das águas. O interior não corresponde ao exterior, imagens primordiais que poderiam nos explicar o universo, nos dão conta da existência de paradoxos. A ambivalência das imagens é a ambivalência nos sentidos, temos vontade de ver, mas o que realmente vemos? O cerne da matéria demonstra cabalmente a fragilidade da matéria, o refúgio das cavidades é o das imagens arquetípicas, a primeira e última morada dos seres humanos. E mais longe ainda poderemos ir a nossas divagações, lembraremos formas de ossos gigantescos, arquitetura básica em sua essência, extensos túneis da vida subterrânea. Aliás, nas esculturas de porcelana de 1997 palpitava já essa vida subterrânea, de cunho misterioso, separando interior de exterior. A porcelana em si mesma é um paradoxo, matéria maleável, plástica, mole, nascida da união da terra e da água, fermentada pelo ar e cozida pelo fogo, no processo alquímico tornando-se dura, vítrea, impermeável, se quisermos mais cortante e mais dura que o aço. O esmalte igualmente poderá lhe dar dureza excepcional, a luz ali refletida repelirá o gesto, a qualidade tátil e sensual do barro irá se transformar em algo frio, diferente do mármore, afastando qualquer sensação de algo vivo. Carvalhosa perfura as obras permitindo sondagens nesse mundo interior, insinuando possibilidades de se compreender a construção, o constructo da matéria. Os orifícios, como Lorenzo Mammi apontou, criam espaços negros, ilimitados, impalpáveis, de um lado o branco total, dentro o infinito, restando no umbral das cavidades as dúvidas profundas, o negativo do universo. Parece-me totalmente desnecessário e redundante a eventual colocação de todos esses orifícios, as vezes em diâmetros sucessivamente menores, aplicados ou insinuando-se a eles, como escotilhas, sondagens sugeridas de um mundo inexequível. E mais, incomodam no mau sentido, os tubos regulares aplicados a algumas obras, que como Rodrigo Naves diz, buscam dar direção a coisas que se recusam a ser orientadas. Este crítico, aliás, comentando da falta de empatia nessas obras põe o dedo na ferida: a aparência de produto industrializado trazido pelo esmalte, “talvez um bibelô de louça que um Oldenburg mais perverso resolvesse deformar”.
Em a “Soma dos dias” instalação de 300 m² montada em 2010 no Museu de Arte Moderna de New York (MOMA), gigantescos tecidos brancos com 19 metros de altura termina por acrescentar novas sensações, desta vez sonora às experiências anteriores; formadas por camadas tais como as “Ceras Perdidas” nos anos noventa, agora as dobras e movimentação sutil dos tecidos de TNT repetem o que se perdera na pintura e foi recuperado nas esculturas de cera. Existe algo inédito, porém aí, uma inspiração /expiração proveniente da “respiração” dos tecidos, eles se movimentam, o ar que por eles passa insufla as camadas, o movimento mínimo gera distanciamento entre os limites entre opacidade e transparência, os espectadores perdidos na imensidão do espaço-tempo. A música minimalista de John Cage poderia ser apenas complemento do rumor captado dos visitantes na adição dos dias, uma vez que microfones suspensos captam o ruído diário, a cada dia sucessivo superposto aos anteriores – o acúmulo constituindo as camadas imateriais do tempo.Os "brancos" ( vazios sem som) na música de Cage e, ao mesmo tempo sua presença por não ser interrompida pelos ruídos dos visitantes, vem de encontro às propostas musicais de Cage, a ausência de intenção na criação da obra. No fundo a proposta é uma evolução de “Apagador”, instalação de 2007 criada para a capela de Nª.Sª. da Conceição no Solar do Unhão (BA): movimento, som, indeterminação no espaço, luz dissolvida no translúcido. Intrínseco na concepção do trabalho no MoMA o resultado dessa anulação dos sentidos de espaço-tempo poderá ser positivo nos observadores transformados pela obra e respirando em uníssono com o ar, ou desperdiçado ao saírem intocados.
A dialética da exclusão, de um pensamento de bipolaridade, sim ou não, transparece nas opções de Carlito Carvalhosa, sinalizando a relatividade na imaginação material, na resistência ao valor dos signos que ultrapassam a própria condição do artista em criar, chegando ao grau zero da expressão. A obra de arte, por ser expressão semiótica, é objeto que reflete outro objeto, e mimética pelo simples fato de ser linguagem. Merleau-Ponty indica essa capacidade da arte de querer descobrir a pretensa positividade das coisas, seu valor residindo não no fato de ser detentora da verdade e sim como matriz de ideias, e nisso reside a importância da obra de Carlito Carvalhosa, despertar nos sentidos os paradoxos da matéria pela anulação dos sentidos.

Walter de Queiroz Guerreiro, Prof. M.A.
Crítico de Arte (ABCA/AICA)