SIMPLESMENTE DI

Rua do Riachuelo, centro velho do Rio de Janeiro, na casa que fora de José do Patrocínio, casado com uma irmã de Dona Rosália sua querida mãezinha, nasceu em 1897 Emiliano Cavalcanti de Albuquerque e Melo. Família de classe média, relacionada com intelectuais do porte de Olavo Bilac, Machado de Assis e Joaquim Nabuco, amigos de seu tio, absorveu desde a infância noções de brasilidade, e logo um pendor para o desenho que ilustrava suas concepções – trazia dentro de si a mentalidade de ilustrador, a imagem traçada como diagrama da ideia pré-formada. Em 1914 publica seu primeiro trabalho como caricaturista na Revista Fon-Fon, e o assina com o pseudônimo Di, homenageando uma prima, a Didi. Através de sua vida assinou de diversas maneiras, desde o formal Emiliano Di Cavalcanti até as simples iniciais D.C., construindo um mito sedutor de difícil leitura por ser centro de paixões contraditórias, afirmando-se hoje, no entanto como o artista que melhor interpretou o povo brasileiro.
Através de sua carreira inúmeras influências lhe foram imputadas: Delacroix, Beardsley,Picasso, Braque, Gauguin, Matisse, Grosz, Léger e Diego de Rivera. Vejo irreverentemente, como seria de seu agrado, na realidade Di como um gordo arte- digestor, um artista verdadeiramente barroco e por isso mesmo ao gosto brasileiro, sensual, grávido de formas táteis, de curvas, sujeito a influências como todo artista desde a primeira impressão palmar a 40.000 anos nas paredes de uma caverna, filtrando, digerindo tudo. Conhecendo bem a história de Picasso, o divisor de águas do modernismo, veremos que isso se aplica a ele, a Di e a tantos outros, sem desmerecimento da arte. O afã no conceito original, da ideia por trás da criação e de seu julgamento implacável é um produto contemporâneo bastante discutível, e que se empregado rigorosamente destruiria toda a História da Arte. A personalidade de um artista é construída por uma continua filtragem de conhecimentos, vivências, adaptações conscientes e inconscientes, que são transpostas em linguagem própria. A apropriação em arte não é delito, é processo, desde que seu resultado vá além do primeiro impulso, o do apoderamento.
Em sua fase inicial, trabalhando na caricatura, considerada arte menor, e na própria ilustração dependente do texto, situa-se como um pintor fin-de-siècle, com as figuras envoltas em clima de mistério e penumbra, a maioria das obras realizadas com pastel, escuras, mal delineadas, a luminosidade presente apenas nos rostos femininos, mulheres concebidas como seres etéreos, angelicais, envoltos num romantismo europeu, nada tendo a ver com a realidade tropical. Mário de Andrade dá-lhe o título de “Menestrel dos tons velados”, Sergio Milliet aponta uma tendência natural para o fauvismo e para o expressionismo pela deformação. Seus detratores, ao contrário, apontam falhas no desenho, no simplismo cromático e na acomodação ao estilo em voga, o Art Nouveau, desde as ferozes críticas de Yan de Almeida Prado à análise criteriosa de Carlos Zilio.
Se couber a ele a paternidade pela afamada Semana de Arte Moderna de 22, uma vez que transitava entre Rio e São Paulo, ou se a ideia surgiu de Dona Marinette, mulher de Paulo Prado e apoiada por Graça Aranha, havendo interesses outros além da movimentação cultural, é irrelevante. Importante isso sim é sua aproximação a uma classe consumidora de arte, sua ida a Paris, o curso na Académie Ranson, seus contatos com a vanguarda intelectual europeia, seu posicionamento político junto à esquerda na crença da justiça social. O contato com Picasso foi decisivo para Di Cavalcanti, a monumentalidade das mulheres picassianas, principalmente em sua fase neoclássica, com formas ondulantes, levaram-no a uma visão pessoal, sua interpretação no ideal feminino. Para Di Cavalcanti a figura da mulher com todas suas curvas, sua languidez, seu distanciamento, é a metáfora plástica da sensualidade. O regresso ao Brasil em 1925 marcará o inicio de linguagem própria, de uma temática que o irá acompanhar pelo restante da vida. Plasticamente buscará discutir a ambiguidade do espaço, a divisão da superfície em planos, dentro de uma ótica cubista com geometrização das formas. Procurando destruir a oposição figura-fundo pela integração de cores alcança a monocromia. No intimo um colorista, essa solução não o satisfaz e aos poucos surgem fortes contrastes cromáticos ainda dependentes do desenho, uma vez que a linha determina planos e volumes. Nas suas “Cinco moças de Guaratinguetá” de 1926, resposta brasileira às “Demoiselles d’Avignon” de Picasso, existe uma solução cromática intensa amarrada ao desenho, que no futuro, nas décadas de 50/60 evoluirá para tratamento matissiano no decorativismo dos arabescos e apainelamento do fundo. Infelizmente, a partir dos anos 50 sua obra passa a ser repetitiva, fruto da demanda e da comercialização excessiva, com uma produção desigual.
Na década de quarenta sua obra alcança a maturidade com o desaparecimento do limite entre as formas, a pincelada correndo solta e transparecendo emoção, o tom avermelhado saturando a composição, transmitindo sensualidade ao observador, e quanto aos contrastes, se existentes, fortes. A obra “Conversa no cais” pintada na França em 1938,e que como aponta Ferreira Gullar, tem já sua linguagem inconfundível, evoca as mulheres da Suite Vollard de Picasso (1934) sem a alegria destas, duas mulheres quem sabe do Norte da África, vestidas com estamparias características dos panos da Costa, em ambiente triste de porto,  talvez Marselha, executado em cor terrosa e densa como a conversa intuída, o olhar apagado, distante, reflexo quiçá das circunstâncias da vida.
A sensualidade é a marca de Di Cavalcanti, o erotismo presente na figura feminina sendo algo que transborda à sua obra. Boêmio inveterado, desde a juventude frequentando bares, pensões e cafés, bordéis do baixo meretrício nos bairros da Lapa e do Mangue, convivendo a vida marginal dos subúrbios. Mario Pedrosa considerou fundamentalmente importante em Di, a descoberta por ele do antigo Porto de Maria Angu na Penha, hoje praia de Ramos. Em suas palavras, é porto, mas de suburbanos, sem mar nem horizontes, mas onde mulheres, pescadores, barcos e redes se aglomeram como na feira. Talvez pela origem étnica ou pela sua aproximação com essa realidade se tornou o Pintor das Mulatas, como ele mesmo afirmava serem elas “ símbolo do Brasil, nem rica nem pobre, nem preta nem branca, gostando do samba, do futebol, deitada em berço esplendido como o país”. Em sua vida de boêmio sentiu a sensualidade primitiva, o demoníaco no sentido original da palavra, a pulsão do poder da natureza, além do bem e do mal, latente nessa figura que seduz pelo olhar tão distante e tão próximo. A esse olhar caberia todo um estudo, uma reflexão, uma analise de seu significado profundo. Nos quadros de Di esse olhar é um enigma, embora retratando a alma brasileira o caráter hedonista do artista, o viver pela alegria de viver, se contrapõe a algo distante, velado, indefinido nesse olhar. Longe de uma entrega, revelando sentimento de melancolia, esse olhar seja quiçá aquela indefinição que o crítico Rodrigo Naves encontra na arte brasileira, a dificuldade da forma se exprimir pelo conflito com a realidade. Tendo conhecido de perto a obra “Gafieira” de 1944 em que o casal dançando mostra essa realidade inquietante na entrega da mulher e no olhar distante de seu par, ou no caso da “Mulher de vermelho” de 1945, em seu abandono, percebo existir algo além da sensualidade, uma nostalgia, aquela alegria triste bem nacional. Capítulo à parte também são as bocas em sua obra, habitualmente fechadas por lábios carnudos, com ligeiro prognatismo e formato característico, apresentam-se longe da lascívia e erotismo que seriam de se esperar.
Pintor único no modernismo brasileiro foi verdadeiramente o único a plasmar esse conjunto complexo de alegria e tristeza apesar do lugar comum de que o povo brasileiro é sempre alegre, o primeiro a encarar sensualidade e boemia, a resgatar o subúrbio do anonimato da cidade grande, dando dignidade e estatura à figura feminina, enfim Di é o pintor que melhor expressa o brasileirismo, figura macunaímica e antropofágica, simplesmente DI.

Walter de Queiroz Guerreiro, Prof. M. A.
Critico de Arte (ABCA/AICA)