O DISEGNO DE MICHELANGELO

O desenho é a forma que melhor revela o autor, a comunicação direta, seja nas hesitações da linha, seja nos traços incisivos do grafite, no espaço do branco preenchido ou tornado sombra pelo hachuriado, na energia da paixão ou contenção do gesto, o traço indo até o limite da alma, além do qual tudo é excesso.
Para um florentino no século 16 a palavra disegno tinha significado bem mais amplo, era uma palavra sagrada, um nobre ideal que deveria ser atingido. Seu conceito é o projeto ou plano revelado, visando reconhecer a vitalidade intrínseca da forma subjacente inerente ao traço. Ao plasmar o movimento sublinha a vitalidade da forma, através do reconhecimento de uma integridade, insistindo até alcançar o modelo ideal criado na imaginação. Em poucas palavras o disegno vai além da cópia do natural, é a transposição de um conceito, de uma visão do belo. Não há desenhista naquele século que melhor expresse essas qualidades como Michelangelo, nem mesmo Leonardo da Vinci consegue alcançar a vitalidade do movimento e a transposição de seus conceitos estéticos, a maniera, atingindo aquele ideal de comportamento, de graça inata, equilíbrio e sofisticação, que caracterizam a arte maneirista introduzida por Michelangelo.
Como é construído o disegno em Michelangelo, quais as características próprias de sua fatura, que demonstram um todo coeso no raciocínio estético?
O primeiro parâmetro para entendermos Michelangelo é de que ele não foi apenas o desenhista excepcional de corpos nus, o renascentista que mais se aproxima do ideal grego do belo; sua obra sejam nus, desenhos arquitetônicos e planos de fortificações tem um caráter comum – é o conceito da dipendenza, a relação entre a anatomia humana e as partes de um edifício. O nu é o equilíbrio entre um esquema ideal e as necessidades funcionais do corpo. Essa preocupação de estabelecer analogias entre o corpo nu e o edifício é acentuada pela importância do nu, que é o exemplo maior da transmutação da matéria em forma, um meio de afirmar a fé na perfeição suprema da criação. Essa certeza no caráter divino do corpo humano em Michelangelo é fruto da emoção, transposição direta de paixões platônicas, aproximando-se dos ideais gregos de beleza, bem diversos, entretanto das formas suaves da antiguidade clássica.
Seus desenhos tem uma força, uma articulação entre as partes bastante diversificada, ora apresentando-se como linha que flui ininterruptamente, ora com traços interrompidos como se houvesse dúvida na execução. Essa aparente hesitação surge na linha de contorno, uma das maneiras de obter a forma, característica de Michelangelo no disegno. Na perspectiva clássica ao se desenhar um torso, braço ou perna, tende-se a ver o diâmetro no contato entre o cone visual e a forma retratada; Michelangelo desenha o corpo como se o visse no maior diâmetro, rebatendo a musculatura nos dois lados do corpo,enquanto na perspectiva clássica existe alongamento nele há alargamento da forma. Por outro lado essa linha de contorno ora corre em movimento contínuo, ora se interrompe na eliminação das concavidades. Eis aí outra particularidade de Michelangelo de forte conotação psicanalítica: existe uma afirmação em toda forma convexa, em todas as saliências, e uma ocultação do côncavo chegando à eliminação, seja pelas hachuras que forçam o recuo da forma pela sombra projetada, seja pela simples elisão, como se o traço hesitasse em concluir a forma, pondo a desnudo aquilo a que ele não deseja se submeter.
Quem espera ver nos desenhos de Michelangelo a perfeição máxima na execução engana-se, os estudos demonstram que o resultado é obtido através da superposição de traços, na busca de capturar aquele ideal mentalizado, o disegno subjacente ao desenho, os sombreados como pentimenti (arrependimentos na execução), tentando plasmar o equilíbrio dinâmico da forma viva. Esse movimento dinâmico é patente no estudo para um “Cristo ressuscitado”, excepcional por capturar o corpo no instante em que está para girar sobre si mesmo, algo inédito no desenho antigo e que faz parte das concepções de disegno de Michelangelo: imaginar a encarnação da vitalidade liberada. O Cristo irrompe do túmulo como uma explosão, levantando-se no ar em movimento como pura liberação de energia. No estudo para Adão na “expulsão do Paraíso”, o movimento é criado de forma diversa, ali não existem pentimenti, o traço se desenrola de modo contínuo, acentuando a rotação que domina toda a composição de contracurvas opostas, indo das figuras de Adão e Eva no lado esquerdo da obra (antes da queda), descendo através da espada empunhada pelo anjo que toca Adão no pescoço, enquanto este ergue o braço, quase bloqueando a ação vingadora. A ênfase em áreas da musculatura do tronco, com o marcante alargamento do tronco característico de seu maneirismo, e os músculos retesados do braço erguido serão os pontos focais na ação, aquilo que se constituirá em núcleo da forma, o olhar do observador acompanhando as grandes linhas de movimento e se espraiando nas áreas lisas, o nu como conceito de pathos, expressão do Homem sob a ira divina. A torção e o escorço (recurso de reduzir a profundidade de modo a dar ilusão de profundidade), traços característicos no disegno de Micchelangelo ampliam a energia, a torção pela aceleração no movimento, o escorço por forçar o observador a reconhecer num pequeno espaço a impressão do todo. Totalmente diverso é o estudo do braço para a Capela Sistina, que Karl Frey acredita ser o braço de Deus-Pai, enquanto Charles de Tolnay vê nesse estudo a imagem invertida do braço de Noé. A maior probabilidade, quando se conhece a obra de Michelangelo, reside na segunda hipótese uma vez que o rebatimento era recurso bastante utilizado, mantendo-se a tensão interna do braço que obedece à arquitetura dos músculos. De qualquer forma, a extraordinária vitalidade foi descrita como um desenho esculpido, com o emprego do sombreado definindo a tensão interna, expressão do conceito escultórico. Cada esboço, cada desenho terminado pelo artista corresponderá a seu ideal subversivo na arte, na criação de um conceito estético no qual utiliza os recursos técnicos à empreitada seja no contorno florentino como o recorte nítido do espaço na cabeça de Leda, seja nos múltiplos contornos no Sacrifício de Isaac no qual as contrações variadas do olhar criam a forma serpentinata, outra invenção de Michelangelo, em que a torção da figura imprime fluxo de movimento em S, como sua assinatura. Uma vez que existe dipendenza entre o nu e a arquitetura, lembremos que da mesma forma que a cabeça se integra no corpo o fuste liga-se à abobada, os muros aos contrafortes, sempre num equilíbrio harmônico de forças. Na arquitetura o maneirismo de Michelangelo irá buscar a sofisticação do estilo clássico, por exemplo, ao colocar as janelas-tabernáculo ( nichos) entre entablamentos, meias-colunas e frontões, dando maior importância ao nicho e atribuindo-lhe largura incomum no preenchimento dos espaços. Na Biblioteca Laurenciana esses nichos provocarão efeito de avanço e retrocesso na visão: a parede se torna suporte de conjunto de formas que avança nos frontões e recua nos nichos, colunas desprovidas de capitéis que passam a não sustentar coisa alguma. Nesse local existe um dos melhores exemplos de desvio às normas clássicas: o movimento da escada de mármore concebida em curvas que parece se derramar para baixo, fluindo da sala de leitura para a entrada do saguão, e enquadrada pela severidade das colunas duplas do portal. A simples leitura da planta baixa dessa biblioteca evidencia a articulação das formas, colunas, pilastras e nichos criando movimento dinâmico nas paredes. No campo dos planos de fortificações Michelangelo inova radicalmente o conceito arquitetônico, uma vez que acima da estrutura ali se sobrepõe o caráter estratégico, alterando o uso do espaço. Concebe assim o projeto de fortificação das portas de Florença eliminando os fundamentos da perspectiva: a posição de um único observador em relação à planta. Poder atingir qualquer posição por fogo cruzado, o combatente tendo proteção e rápido deslocamento atrás das muralhas, inexistir pontos cegos e multiplicidade de pontos de visão passam a ser fundamentais na defesa da cidadela. Esses estudos, que aparentemente apenas serviriam para a guerra, serão usados na concepção do Juízo Final, no qual é necessário o cruzamento de perspectivas, para se localizar a quem se dirige o olhar; a distribuição dos santos e de Cristo e suas dimensões relativas não obedecem aos cânones normais, as relações são múltiplas assim como os pontos de fuga.
Somente a compreensão do disegno de Micchelangelo nos permite analisar a forma, e atender a seu pedido expresso em 1538, durante a execução do Juízo Final, na abóbada da Capela Sistina:
Desenhe-me de fora
Como eu faço na pedra ou na folha branca, que nada tem dentro...

Walter de Queiroz Guerreiro,Prof. M.A.
Historiador e Crítico de Arte (ABCA/AICA)