AFINAL, O QUE É ARTE?
Em fins de 1997 despertou para o estrelato um novo artista plástico em Mannheim, na Alemanha. Gunther Von Hagens, anatomista de formação, expôs no Museu de Tecnologia duzentos corpos humanos dissecados de diversas maneiras durante dezessete anos e preservados através de técnica inédita: desidratação pela imersão em acetona glacial seguida de aplicação de silicone, isolando assim do contato atmosférico e da inevitável ação de degradação por bactérias. Montou uma exposição com caráter de instalação, evidenciando detalhes anatômicos de cada atividade humana, desde a vida intrauterina até o estertor da morte em um corpo senil, passando pelas atividades diárias, do trabalho ao sexo. O resultado em termos de megaexposição foi excepcional, 250 mil pessoas acorreram ao evento, tantas quantas nas exposições de Rodin ou Monet no Museu de Arte de São Paulo.
Embora Von Hagens não pose de artista e sim de divulgador da ciência, sendo a manipulação do corpo humano o meio proposto para explicar o funcionamento da máquina viva, sua repercussão nos meios artísticos e intelectuais levantou a questão da validade da exposição independente dos conceitos éticos, morais e até mesmo científicos dessa mostra. Surgiram então comparações com os corpos fossilizados naturalmente em Pompéia e com as múmias egípcias, sob a alegação de que também os romanos foram paralisados em suas atividades quotidianas, hoje sendo atração turística, e as múmias apontam para um refinamento artístico. Existe nisso grande confusão dos leigos, primeiro por que a fossilização foi um acontecimento natural e o que ali existe é o molde de um ser vivo sem interferência da mão humana, nem qualquer pretensão artística do objeto em si; quanto às múmias não são elas expressão do fazer artístico e sim os sarcófagos, as máscaras funerárias e os adereços que formam um conjunto ritual, no qual o conceito de vida pós-morte se expressa na forma idealizada. Quando se fala em arte egípcia o que deve ser lembrado são as extraordinárias pinturas com simetria na composição e dentro de um padrão 2:1 ( dois por um), as ilustrações do Livro dos Mortos, ou a criação de um artista da 18ª Dinastia (1500 a.C.) representando o espírito das arvores, ou seja, as ninfas, conceito inexistente na mitologia egípcia. Na escultura a arte se expressa em seu esplendor no equilíbrio e contorno no busto de Nefertiti, ou nas estátuas em rochas duras como o basalto e o granito polidas com vidros vulcânicos, mostrando a compacidade da boa escultura e a simetria perfeita necessária à lei da frontalidade estética egípcia.
Em todas as verdadeiras obras de arte existe o raciocínio, aquele trabalho consciente do artista, com as referências a seu próprio tempo, acrescido de pequenas invenções, artifícios, técnicas que são seu toque pessoal, o tijolo intelectual de uma construção sem fim que é a história da arte. Leonardo da Vinci já dissera “ La pintura è cosa mentale”, e realmente o trabalho do artista é imaginar uma relação com o objeto ausente, mostrar ao mundo um aspecto ignorado ou descuidado, especulando a respeito. O importante por isso na arte não é a obra como produto final, mas o processo que conduz o olhar a reconstituir as forças formativas que deram origem ao produto artístico.
Para o leigo, entretanto a boa arte é sinônima de pericia, fidelidade ao natural, sem se questionar no porquê de uma composição. Ao olhar uma natureza morta flamenga do século 17 ele se extasia diante do pão, das frutas e do arenque, do panejamento e do brilho dos cristais e da prataria posta à mesa. Desconhece que, além da obra ser decoração de uma burguesia poderosa naquele momento histórico, existem ali as metáforas de um profundo pensamento religioso: o queijo é o alimento da imortalidade uma vez que Cristo é o leite divino, pão e vinho são os símbolos da Eucaristia, o arenque é a identificação mística de Jesus, a prata lembrete da vaidade do mundo, os pêssegos símbolos do mal em oposição às uvas do Senhor.
As paisagens aparentemente realistas dos pintores do século 19 raramente refletiam a natureza como ela é Constable um dos grandes paisagistas ingleses diz: “ eu entendo por composição aquilo que está em nós” e suas pinturas refletem uma imobilidade na natureza que é sua visão de mundo. As cores puras e brilhantes nas paisagens de Renoir se devem à sua formação de pintor de porcelanas, onde não existem sombras densas nem tonalidades sujas, muito afastadas, portanto da realidade. Comento isso como exemplo para que se possa entender que em todas as épocas houve um denominador comum à obra de arte, dela ser veículo de expressão integrando diversos planos da realidade, e existindo sempre uma tensão latente entre imagem e significado.
A busca desenfreada pela originalidade no século vinte com a sucessão de movimentos artísticos levou a experimentações sem qualquer critério, e o que é pior sem objetivos definidos, a não ser pelas invenções fortuitas como frutos do acaso. Teorizaram no fim do século que a originalidade seria possível quando o artista atingisse o grau zero de expressão, ou seja, quando fosse abandonada toda carga cultural, toda ligação com presente e passado, como se isso fosse seriamente possível. Pelos novos padrões estéticos propostos qualquer coisa poderia ser expressão artística tendo o público como juiz soberano que ao aceitar a mostra ou obra determinaria sua validade. Dentro do “politicamente correto” imposto pela cultura norte-americana inclusive na arte, não podemos emitir juízos de valor, uma vez que nada sabemos dos processos mentais do criador da obra de arte e ela não pode, não precisa, nem deve ser explicada.
A partir dos anos noventa passaram a predominar as instalações, verdadeiro blefe de uma cenografia fútil em sua maioria, esculturas-objeto e, por fim, vídeoarte e arte por computador cada vez mais dirigidas aos nerds, oscilando entre efeitos especiais e platitudes, buscando iludir os sentidos, o próprio conhecimento e a descrença nos parâmetros de julgamento, reafirmando que a arte é coisa mental apenas para seus criadores. A busca incessante por novos meios de expressão, sem qualquer preocupação com autenticidade, integridade, e obviamente sem a menor destreza manual, longe de todos os valores estéticos, pois afinal acima de tudo vale o “conceito” que está além de qualquer julgamento, conduziu a um esvaziamento da arte. Quando na Bienal de Veneza em 1993 Damien Hirst expôs um tubarão serrado ao meio boiando dentro de um tanque de formol como expressão artística no questionamento da morte sendo premiado, Charles Saatchi expõe em sua galeria londrina excrementos solidificados de elefante como esculturas, ou aqui mesmo no Brasil se constroem collages de cuecas infantis denunciando a pederastia, tudo passa a ser válido, como se fosse original e expressão da arte. Esquecem os novos artistas que Piero Manzoni já em 1961 enlatava, assinava e datava o próprio excremento como Merda d’Artista, peça de escultura da Arte Póvera, uma vez que trabalhava com materiais perecíveis. Existia ali, entretanto um desafio à sociedade de consumo, à Pop Art americana com suas latas de sopa Campbell, e ao questionamento da importância da assinatura colocada na obra de arte, em suma traduzia um conceito.
O programa da atual vanguarda, se é que assim podemos considerá-la, é a negação da sociedade de consumo e do valor da arte, fazendo antiarte aos moldes dadaístas, embasada, porém em teoria distante das finalidades da arte. Buscam a arte pura, mas repudiam o objeto artístico, negam o produto final como mercadoria privilegiando apenas o processo de criação que não pode ser avaliado, apoiam-se numa ideologia política sustentada pela crítica engajada, citando textos teóricos que não chegam a alcançar de filósofos como Derrida e psicanalistas como Deleuze. Justificam assim o fim da arte como um problema histórico ligado ao esmaecimento dos afetos, com o desaparecimento do ego individual e sua substituição pelo sentimento coletivo e globalizante, onde solidão e horror são tônica diária. Nesse vácuo ressoam as palavras de outro pensador contemporâneo em seu ensaio “O complô da arte”: Toda duplicidade da arte contemporânea está em reivindicar a nulidade, a insignificância, a falta de senso. Visar a nulidade quando já se é nulo, a falta de senso quando se é insignificante, pretender a superficialidade em termos superficiais.
Construir uma metáfora do horror e da perda dos valores individuais adequada aos nossos dias pode se transformar numa obra mestra como a de Francis Bacon ao denunciar a apoteose do poder unindo Velásquez e Rembrandt numa visão contemporânea, ou a de Lucian Freud mostrando a face oculta do homem na angústia de sua própria condição. Existe infelizmente o outro caminho, o de fazer tabula rasa de toda evolução do espírito, da destruição de todos os referenciais levando ao descrédito ao ponto de se indagar: afinal, o que é arte?
Walter de Queiroz Guerreiro
Critico de Arte (ABCA/AICA)
Em fins de 1997 despertou para o estrelato um novo artista plástico em Mannheim, na Alemanha. Gunther Von Hagens, anatomista de formação, expôs no Museu de Tecnologia duzentos corpos humanos dissecados de diversas maneiras durante dezessete anos e preservados através de técnica inédita: desidratação pela imersão em acetona glacial seguida de aplicação de silicone, isolando assim do contato atmosférico e da inevitável ação de degradação por bactérias. Montou uma exposição com caráter de instalação, evidenciando detalhes anatômicos de cada atividade humana, desde a vida intrauterina até o estertor da morte em um corpo senil, passando pelas atividades diárias, do trabalho ao sexo. O resultado em termos de megaexposição foi excepcional, 250 mil pessoas acorreram ao evento, tantas quantas nas exposições de Rodin ou Monet no Museu de Arte de São Paulo.
Embora Von Hagens não pose de artista e sim de divulgador da ciência, sendo a manipulação do corpo humano o meio proposto para explicar o funcionamento da máquina viva, sua repercussão nos meios artísticos e intelectuais levantou a questão da validade da exposição independente dos conceitos éticos, morais e até mesmo científicos dessa mostra. Surgiram então comparações com os corpos fossilizados naturalmente em Pompéia e com as múmias egípcias, sob a alegação de que também os romanos foram paralisados em suas atividades quotidianas, hoje sendo atração turística, e as múmias apontam para um refinamento artístico. Existe nisso grande confusão dos leigos, primeiro por que a fossilização foi um acontecimento natural e o que ali existe é o molde de um ser vivo sem interferência da mão humana, nem qualquer pretensão artística do objeto em si; quanto às múmias não são elas expressão do fazer artístico e sim os sarcófagos, as máscaras funerárias e os adereços que formam um conjunto ritual, no qual o conceito de vida pós-morte se expressa na forma idealizada. Quando se fala em arte egípcia o que deve ser lembrado são as extraordinárias pinturas com simetria na composição e dentro de um padrão 2:1 ( dois por um), as ilustrações do Livro dos Mortos, ou a criação de um artista da 18ª Dinastia (1500 a.C.) representando o espírito das arvores, ou seja, as ninfas, conceito inexistente na mitologia egípcia. Na escultura a arte se expressa em seu esplendor no equilíbrio e contorno no busto de Nefertiti, ou nas estátuas em rochas duras como o basalto e o granito polidas com vidros vulcânicos, mostrando a compacidade da boa escultura e a simetria perfeita necessária à lei da frontalidade estética egípcia.
Em todas as verdadeiras obras de arte existe o raciocínio, aquele trabalho consciente do artista, com as referências a seu próprio tempo, acrescido de pequenas invenções, artifícios, técnicas que são seu toque pessoal, o tijolo intelectual de uma construção sem fim que é a história da arte. Leonardo da Vinci já dissera “ La pintura è cosa mentale”, e realmente o trabalho do artista é imaginar uma relação com o objeto ausente, mostrar ao mundo um aspecto ignorado ou descuidado, especulando a respeito. O importante por isso na arte não é a obra como produto final, mas o processo que conduz o olhar a reconstituir as forças formativas que deram origem ao produto artístico.
Para o leigo, entretanto a boa arte é sinônima de pericia, fidelidade ao natural, sem se questionar no porquê de uma composição. Ao olhar uma natureza morta flamenga do século 17 ele se extasia diante do pão, das frutas e do arenque, do panejamento e do brilho dos cristais e da prataria posta à mesa. Desconhece que, além da obra ser decoração de uma burguesia poderosa naquele momento histórico, existem ali as metáforas de um profundo pensamento religioso: o queijo é o alimento da imortalidade uma vez que Cristo é o leite divino, pão e vinho são os símbolos da Eucaristia, o arenque é a identificação mística de Jesus, a prata lembrete da vaidade do mundo, os pêssegos símbolos do mal em oposição às uvas do Senhor.
As paisagens aparentemente realistas dos pintores do século 19 raramente refletiam a natureza como ela é Constable um dos grandes paisagistas ingleses diz: “ eu entendo por composição aquilo que está em nós” e suas pinturas refletem uma imobilidade na natureza que é sua visão de mundo. As cores puras e brilhantes nas paisagens de Renoir se devem à sua formação de pintor de porcelanas, onde não existem sombras densas nem tonalidades sujas, muito afastadas, portanto da realidade. Comento isso como exemplo para que se possa entender que em todas as épocas houve um denominador comum à obra de arte, dela ser veículo de expressão integrando diversos planos da realidade, e existindo sempre uma tensão latente entre imagem e significado.
A busca desenfreada pela originalidade no século vinte com a sucessão de movimentos artísticos levou a experimentações sem qualquer critério, e o que é pior sem objetivos definidos, a não ser pelas invenções fortuitas como frutos do acaso. Teorizaram no fim do século que a originalidade seria possível quando o artista atingisse o grau zero de expressão, ou seja, quando fosse abandonada toda carga cultural, toda ligação com presente e passado, como se isso fosse seriamente possível. Pelos novos padrões estéticos propostos qualquer coisa poderia ser expressão artística tendo o público como juiz soberano que ao aceitar a mostra ou obra determinaria sua validade. Dentro do “politicamente correto” imposto pela cultura norte-americana inclusive na arte, não podemos emitir juízos de valor, uma vez que nada sabemos dos processos mentais do criador da obra de arte e ela não pode, não precisa, nem deve ser explicada.
A partir dos anos noventa passaram a predominar as instalações, verdadeiro blefe de uma cenografia fútil em sua maioria, esculturas-objeto e, por fim, vídeoarte e arte por computador cada vez mais dirigidas aos nerds, oscilando entre efeitos especiais e platitudes, buscando iludir os sentidos, o próprio conhecimento e a descrença nos parâmetros de julgamento, reafirmando que a arte é coisa mental apenas para seus criadores. A busca incessante por novos meios de expressão, sem qualquer preocupação com autenticidade, integridade, e obviamente sem a menor destreza manual, longe de todos os valores estéticos, pois afinal acima de tudo vale o “conceito” que está além de qualquer julgamento, conduziu a um esvaziamento da arte. Quando na Bienal de Veneza em 1993 Damien Hirst expôs um tubarão serrado ao meio boiando dentro de um tanque de formol como expressão artística no questionamento da morte sendo premiado, Charles Saatchi expõe em sua galeria londrina excrementos solidificados de elefante como esculturas, ou aqui mesmo no Brasil se constroem collages de cuecas infantis denunciando a pederastia, tudo passa a ser válido, como se fosse original e expressão da arte. Esquecem os novos artistas que Piero Manzoni já em 1961 enlatava, assinava e datava o próprio excremento como Merda d’Artista, peça de escultura da Arte Póvera, uma vez que trabalhava com materiais perecíveis. Existia ali, entretanto um desafio à sociedade de consumo, à Pop Art americana com suas latas de sopa Campbell, e ao questionamento da importância da assinatura colocada na obra de arte, em suma traduzia um conceito.
O programa da atual vanguarda, se é que assim podemos considerá-la, é a negação da sociedade de consumo e do valor da arte, fazendo antiarte aos moldes dadaístas, embasada, porém em teoria distante das finalidades da arte. Buscam a arte pura, mas repudiam o objeto artístico, negam o produto final como mercadoria privilegiando apenas o processo de criação que não pode ser avaliado, apoiam-se numa ideologia política sustentada pela crítica engajada, citando textos teóricos que não chegam a alcançar de filósofos como Derrida e psicanalistas como Deleuze. Justificam assim o fim da arte como um problema histórico ligado ao esmaecimento dos afetos, com o desaparecimento do ego individual e sua substituição pelo sentimento coletivo e globalizante, onde solidão e horror são tônica diária. Nesse vácuo ressoam as palavras de outro pensador contemporâneo em seu ensaio “O complô da arte”: Toda duplicidade da arte contemporânea está em reivindicar a nulidade, a insignificância, a falta de senso. Visar a nulidade quando já se é nulo, a falta de senso quando se é insignificante, pretender a superficialidade em termos superficiais.
Construir uma metáfora do horror e da perda dos valores individuais adequada aos nossos dias pode se transformar numa obra mestra como a de Francis Bacon ao denunciar a apoteose do poder unindo Velásquez e Rembrandt numa visão contemporânea, ou a de Lucian Freud mostrando a face oculta do homem na angústia de sua própria condição. Existe infelizmente o outro caminho, o de fazer tabula rasa de toda evolução do espírito, da destruição de todos os referenciais levando ao descrédito ao ponto de se indagar: afinal, o que é arte?
Walter de Queiroz Guerreiro
Critico de Arte (ABCA/AICA)