IDENTIDADE OCULTA
Na nebulosa zona fronteiriça entre consciente e subconsciente a exposição Apofenia de Sérgio Canfield abre, a partir de seu próprio título, uma série de indagações sobre como o homem vê a si mesmo através da representação artística, deste a Art Brut de Dubuffet ao Neoexpressionismo de Francis Bacon.
Termos uma visão das inúmeras questões envolvidas exige perspicere, ver claramente, já a partir da palavra apofenia, conceito bastante controverso na área da senso percepção. Este termo criado por Klaus Conrad etimologicamente viria do grego Apophenes (Pelicano), com significado mitológico de renascer, indicando uma percepção espontânea de conexões entre formas distintas, gerando novas formas. Simplificando, seria aquilo que Leonardo da Vinci propunha em seu “Tratado da Pintura”, olhar as manchas nas paredes e ver então toda uma série de coisas: “Batalhas, gritos, figuras estranhas, um vivo jogo de expressões humanas, e muitas outras coisas...”, enxergando formas do mundo real, portanto num processo criativo. Ocorre, porém, que aquilo que poderia ser apenas uma experiência criativa quando espontânea, foi igualmente identificada como um erro de percepção, e se constante passando a distúrbio mental, porém o pior visto por alguns como experiência mística ou paranormal. Para o psiquiatra Peter Brugger “ a propensão para ver conexões entre objetos ou ideias que aparentemente não tem relação entre si é o que mais assemelha a psicose com a criatividade... a apofenia e a criatividade podem até ser vistas como dois lados de uma mesma moeda”.A outra maneira de encará-la, e a que mim parece mais correta, é designá-la como paraeidolia, imagem fantástica e extrojetada, criada voluntariamente a partir de elementos sensoriais imprecisos, portanto com o indivíduo consciente da irrealidade da imagem formada, e de sua influência na criação. Essa é a experiência que interessa na arte, os demais casos enquadrados na psicopatologia como vivências alucinatórias em quadros dissociativos da personalidade, como o transitivismo, alteração da consciência do eu com vivencias de outrem ou de animais, ou então de fundo neurológico, fogem ao nosso âmbito.
Inácio Carreira, como curador e amigo do artista, em constantes conversas e nos textos insinua o debate subjacente à obra, uma busca da identidade humana que tenta afirmar-se oscilando para a animalidade, joguete solitário diante do caos. Para tanto se apoia em palavras de Nietszche na obra “Assim falou Zaratrustra” : o homem é uma corda, atada entre o animal e o além-do-homem -uma corda sobre o abismo. Mas, que caos seria esse, o filosófico proposto por Nietzsche e várias vezes citado, ou o nada interestelar, na verdade preenchido pelo ruído de fundo galáctico de bilhões de elementos químicos pelo universo? O que aparenta ser divergente e nihilista em Nietzsche,é a mesma postura dos pré-socráticos, nas palavras deste último: um espaço que não estaria “vazio” porém de força como jogo de forças, oceano de formas desencadeadas contra si mesmas, eternamente em mudança, das mais simples às mais complexas, voltando-se depois da profusão à simplicidade, do jogo de contrastes ao desejo de harmonia. Visto por outro ângulo, o da física, este vazio aterrador, esse caos de onde surgem os seres subjugados pela escuridão e que parece nos atrair para o fundo do abismo desconhecido, é o limite da indiscernibilidade quântica, o limiar energético de um sistema antes do surgimento das partículas que originarão a matéria. Além da nossa compreensão, de que o que nos rodeia está em nós, toda força é um instante transitório, o que é está no presente, totalidade apenas em relação ao fundo. Esse jogo entre figura e fundo, forma criada e tempo expectante por existir, assume aqui qualidades plásticas determinantes, o caos surge às vezes liso, aplainado, de um negror profundo que cerca a figura envolta em um halo, fantasma de um conflito entre o desejo de ser, indicado na transformação como luz, e a forma. Contudo, não é este fundo que predomina na série, mas aquele rico de movimento, ora espesso ora ralo, negro sobre azul como é o infinito, criando o palco para a figura humana desnuda, expressão do pathos como sentimento de emoção melancólica do corpo, surgido como campo de luta além da própria força. Advém daí a comparação surgida como fonte de prazer estético, e que pelo artifício da perspectiva em escorço tornará possível acentuar essa energia latente, utilizada do mesmo modo por Canfield em uma obra comentada adiante. Também como Michelangelo as figuras aqui se resignam à sua carga prometeica, mesmo em uma obra em que o homem se alça em direção ao alto, os pés já indiscerníveis em relação ao solo, carregado de excepcional força plástica e modelado anatômico, a forma não conduz, é dominada por algo que a eleva, joguete ascensional além de sua vontade. Não se espere, entretanto, aquele modelado clássico advindo dos gregos, e que fascina desde o Renascimento, o que aqui aparece é a musculatura reduzida à sua essência, a pele desapareceu e o que se vê não é a anatomia, mas a forma subjacente, mera carne, forma construída pelo olhar que as vê como cópias das cópias, simulacros de imagens que fazemos do Outro, a partir de ideal do Eu. Sendo assim, a imagem aparece a nosso olhar construída de modo ideal, impõe-se à nossa imaginação, como Gestalt surge na totalidade, completando no imaginário a identificação especular do semelhante.
A aproximação que surge com a obra de Francis Bacon advém dessa tentativa de captar forças, dilatação e contração musculares, mas para Bacon o que importa são problemas de deformação corporal, e embora no nosso imaginário o que chame a atenção em sua obra seja o corpo maleável, é na cabeça que as forças se manifestam como grito suspenso no ar, o oposto do que ocorre na obra de Canfield. Mais importante que as deformações musculares é o diagrama preparatório de manchas, presente nos dois artistas, ele é o caos, a desordem que irá criar o ritmo, as formas sob as formas, que no caso das apofenias serão o leitmotiv de Sérgio Canfield. Lembremos que Gilles Deleuze ao discutir a obra de Bacon deixa claro que para este o corpo é Figura e não estrutura, negando a identidade humana: “a carne é material corpóreo da figura”, como Bacon a denomina é viande (vianda: carne na acepção material, comum e indiscernível entre homem e animal), portanto homem em essência significa animalidade para Francis Bacon, uma aproximação e ao mesmo tempo um afastamento de conceito com a obra de Canfield.
Um exemplo marcante é a tela Apofenia VII, em que surge a cabeça de um ofídio, de uma ave e de um réptil sobre uma das coxas dirigindo-se para o ventre, todos os elementos simbólicos com forte conotação sexual, dissimulados pela musculatura, sendo que a figura humana, como comentei na perspectiva, um caso bem resolvido de concentração numa pequena área daquilo que ocorre numa maior extensão.
Para mim, embora a proposta do artista enverede para essas Pareidolias, sugestões de formas como “possibilidade de fato” na linguagem de Wittgenstein, parece-me que sua obra é muito maior que eventuais bricolagens utilizadas em todas as épocas, que desviam a intenção para algo mais profundo. As metamorfoses como mudanças de forma, sem alteração paralela na essência dos seres metamorfoseados, ainda que vivenciadas, pertencem mais à área das psicopatologias que dos construtos artísticos.Gilles Deleuze discutindo a natureza unívoca no sentido e na forma, na instabilidade entre ego e mundo assinalou essa instabilidade transitorial perene, essa mutação de como vemos o Outro e nos vemos. Qual o motivo? Fragmentação do sujeito talvez, questionamento da existência quiçá, possíveis alterações provenientes das novas mídias nas visibilidades entre o ser e o aparecer, não iria mais longe à hipótese filosófica da consciência da finitude humana, pois me parece que pouquíssimos são os artistas que discutem a fundo a questão.
Associação de formas é uma questão de escolha, movimento de alternâncias entre o que é e o que pode vir a ser, ilusão da separação improvável do próprio Eu, perigosa oscilação na consciência do todo como identidade oculta.
Plotino, mestre do neoplatonismo grego, ao discutir a multiplicidade das criaturas apontaria para a necessidade de que a nossa consciência pudesse se libertar para possuir aquilo que desejamos compreender, mas paradoxalmente, manter a si mesma para aceitar o pressentido.
Walter de Queiroz Guerreiro
Crítico de Arte (ABCA / AICA)
Na nebulosa zona fronteiriça entre consciente e subconsciente a exposição Apofenia de Sérgio Canfield abre, a partir de seu próprio título, uma série de indagações sobre como o homem vê a si mesmo através da representação artística, deste a Art Brut de Dubuffet ao Neoexpressionismo de Francis Bacon.
Termos uma visão das inúmeras questões envolvidas exige perspicere, ver claramente, já a partir da palavra apofenia, conceito bastante controverso na área da senso percepção. Este termo criado por Klaus Conrad etimologicamente viria do grego Apophenes (Pelicano), com significado mitológico de renascer, indicando uma percepção espontânea de conexões entre formas distintas, gerando novas formas. Simplificando, seria aquilo que Leonardo da Vinci propunha em seu “Tratado da Pintura”, olhar as manchas nas paredes e ver então toda uma série de coisas: “Batalhas, gritos, figuras estranhas, um vivo jogo de expressões humanas, e muitas outras coisas...”, enxergando formas do mundo real, portanto num processo criativo. Ocorre, porém, que aquilo que poderia ser apenas uma experiência criativa quando espontânea, foi igualmente identificada como um erro de percepção, e se constante passando a distúrbio mental, porém o pior visto por alguns como experiência mística ou paranormal. Para o psiquiatra Peter Brugger “ a propensão para ver conexões entre objetos ou ideias que aparentemente não tem relação entre si é o que mais assemelha a psicose com a criatividade... a apofenia e a criatividade podem até ser vistas como dois lados de uma mesma moeda”.A outra maneira de encará-la, e a que mim parece mais correta, é designá-la como paraeidolia, imagem fantástica e extrojetada, criada voluntariamente a partir de elementos sensoriais imprecisos, portanto com o indivíduo consciente da irrealidade da imagem formada, e de sua influência na criação. Essa é a experiência que interessa na arte, os demais casos enquadrados na psicopatologia como vivências alucinatórias em quadros dissociativos da personalidade, como o transitivismo, alteração da consciência do eu com vivencias de outrem ou de animais, ou então de fundo neurológico, fogem ao nosso âmbito.
Inácio Carreira, como curador e amigo do artista, em constantes conversas e nos textos insinua o debate subjacente à obra, uma busca da identidade humana que tenta afirmar-se oscilando para a animalidade, joguete solitário diante do caos. Para tanto se apoia em palavras de Nietszche na obra “Assim falou Zaratrustra” : o homem é uma corda, atada entre o animal e o além-do-homem -uma corda sobre o abismo. Mas, que caos seria esse, o filosófico proposto por Nietzsche e várias vezes citado, ou o nada interestelar, na verdade preenchido pelo ruído de fundo galáctico de bilhões de elementos químicos pelo universo? O que aparenta ser divergente e nihilista em Nietzsche,é a mesma postura dos pré-socráticos, nas palavras deste último: um espaço que não estaria “vazio” porém de força como jogo de forças, oceano de formas desencadeadas contra si mesmas, eternamente em mudança, das mais simples às mais complexas, voltando-se depois da profusão à simplicidade, do jogo de contrastes ao desejo de harmonia. Visto por outro ângulo, o da física, este vazio aterrador, esse caos de onde surgem os seres subjugados pela escuridão e que parece nos atrair para o fundo do abismo desconhecido, é o limite da indiscernibilidade quântica, o limiar energético de um sistema antes do surgimento das partículas que originarão a matéria. Além da nossa compreensão, de que o que nos rodeia está em nós, toda força é um instante transitório, o que é está no presente, totalidade apenas em relação ao fundo. Esse jogo entre figura e fundo, forma criada e tempo expectante por existir, assume aqui qualidades plásticas determinantes, o caos surge às vezes liso, aplainado, de um negror profundo que cerca a figura envolta em um halo, fantasma de um conflito entre o desejo de ser, indicado na transformação como luz, e a forma. Contudo, não é este fundo que predomina na série, mas aquele rico de movimento, ora espesso ora ralo, negro sobre azul como é o infinito, criando o palco para a figura humana desnuda, expressão do pathos como sentimento de emoção melancólica do corpo, surgido como campo de luta além da própria força. Advém daí a comparação surgida como fonte de prazer estético, e que pelo artifício da perspectiva em escorço tornará possível acentuar essa energia latente, utilizada do mesmo modo por Canfield em uma obra comentada adiante. Também como Michelangelo as figuras aqui se resignam à sua carga prometeica, mesmo em uma obra em que o homem se alça em direção ao alto, os pés já indiscerníveis em relação ao solo, carregado de excepcional força plástica e modelado anatômico, a forma não conduz, é dominada por algo que a eleva, joguete ascensional além de sua vontade. Não se espere, entretanto, aquele modelado clássico advindo dos gregos, e que fascina desde o Renascimento, o que aqui aparece é a musculatura reduzida à sua essência, a pele desapareceu e o que se vê não é a anatomia, mas a forma subjacente, mera carne, forma construída pelo olhar que as vê como cópias das cópias, simulacros de imagens que fazemos do Outro, a partir de ideal do Eu. Sendo assim, a imagem aparece a nosso olhar construída de modo ideal, impõe-se à nossa imaginação, como Gestalt surge na totalidade, completando no imaginário a identificação especular do semelhante.
A aproximação que surge com a obra de Francis Bacon advém dessa tentativa de captar forças, dilatação e contração musculares, mas para Bacon o que importa são problemas de deformação corporal, e embora no nosso imaginário o que chame a atenção em sua obra seja o corpo maleável, é na cabeça que as forças se manifestam como grito suspenso no ar, o oposto do que ocorre na obra de Canfield. Mais importante que as deformações musculares é o diagrama preparatório de manchas, presente nos dois artistas, ele é o caos, a desordem que irá criar o ritmo, as formas sob as formas, que no caso das apofenias serão o leitmotiv de Sérgio Canfield. Lembremos que Gilles Deleuze ao discutir a obra de Bacon deixa claro que para este o corpo é Figura e não estrutura, negando a identidade humana: “a carne é material corpóreo da figura”, como Bacon a denomina é viande (vianda: carne na acepção material, comum e indiscernível entre homem e animal), portanto homem em essência significa animalidade para Francis Bacon, uma aproximação e ao mesmo tempo um afastamento de conceito com a obra de Canfield.
Um exemplo marcante é a tela Apofenia VII, em que surge a cabeça de um ofídio, de uma ave e de um réptil sobre uma das coxas dirigindo-se para o ventre, todos os elementos simbólicos com forte conotação sexual, dissimulados pela musculatura, sendo que a figura humana, como comentei na perspectiva, um caso bem resolvido de concentração numa pequena área daquilo que ocorre numa maior extensão.
Para mim, embora a proposta do artista enverede para essas Pareidolias, sugestões de formas como “possibilidade de fato” na linguagem de Wittgenstein, parece-me que sua obra é muito maior que eventuais bricolagens utilizadas em todas as épocas, que desviam a intenção para algo mais profundo. As metamorfoses como mudanças de forma, sem alteração paralela na essência dos seres metamorfoseados, ainda que vivenciadas, pertencem mais à área das psicopatologias que dos construtos artísticos.Gilles Deleuze discutindo a natureza unívoca no sentido e na forma, na instabilidade entre ego e mundo assinalou essa instabilidade transitorial perene, essa mutação de como vemos o Outro e nos vemos. Qual o motivo? Fragmentação do sujeito talvez, questionamento da existência quiçá, possíveis alterações provenientes das novas mídias nas visibilidades entre o ser e o aparecer, não iria mais longe à hipótese filosófica da consciência da finitude humana, pois me parece que pouquíssimos são os artistas que discutem a fundo a questão.
Associação de formas é uma questão de escolha, movimento de alternâncias entre o que é e o que pode vir a ser, ilusão da separação improvável do próprio Eu, perigosa oscilação na consciência do todo como identidade oculta.
Plotino, mestre do neoplatonismo grego, ao discutir a multiplicidade das criaturas apontaria para a necessidade de que a nossa consciência pudesse se libertar para possuir aquilo que desejamos compreender, mas paradoxalmente, manter a si mesma para aceitar o pressentido.
Walter de Queiroz Guerreiro
Crítico de Arte (ABCA / AICA)