A obra plástica de Britto Velho, de imediato exerce fascínio para os leigos pelas cores brilhantes e elementos do universo infantil, para os críticos pela riqueza de soluções plásticas, ousadia formal e profundo significado nas metáforas criadas.
As primeiras referências que vêm à mente são as pinturas psicodélicas dos anos 60, na criação do gênio da flower-power, Heinz Edelmann no Yellow Submarine dos Beatles, e a seguir a pintura pop de Richard Lindner. Em seguida, recordamos o Realismo Mágico através de Roberto Magalhães, de Lobsang Rampa com a terceira visão, Horst Antes com seus cabeções deambulatórios.
Em profundidade, percebemos que cada uma dessas semelhanças refere-se à inserção numa linguagem, que somente as cores puras e alegria de viver lembram pintura psicodélica; que Lindner persiste no uso espacial das cores e no recorte espacial das figuras, quem sabe no erotismo velado de botas femininas; o realismo mágico de Roberto Magalhães é mais próximo do convívio/social que do autoconhecimento alquímico; Lobsang Rampa, apenas um gatilho para este autoconhecimento e Horst Antes, companheiro distante de uma viagem pelo interior da psique.
Como expressão plástica, a obra de Britto Velho se enquadra apenas ligeiramente no realismo mágico, pela afinidade com os surrealistas ao tentar apresentar de forma racional uma realidade insólita, logicamente elaborada. Parte da crítica nacional tenta refutar o realismo mágico latino-americano, como forma de escapismo, entretanto basta querer ver, através das metáforas criadas, que não existe a fantasia, "o insólito não se inventa" nas palavras do cubano Wilfredo Lam, o fantástico é a nossa realidade social e individual.
Digo que sua inserção no Realismo Mágico é relativa, porque embora os principais representantes do movimento criem associações de realidade discordantes, como fez Wesley Duke Lee, ou mais próximo ainda, Roberto Magalhães que possui uma visão alquímica da figura humana, considerando-o como a soma de suas partes (e até de Arcimboldo ao imaginar cada fragmento refletindo no todo), o enfoque de Britto Velho é psicológico, a essência do comportamento humano refletindo-se na importância de suas partes. Aproxima-se aí de Wesley , na importância do erotismo no comportamento humano, na carga freudiana das ações remetendo a símbolos eternos, aos arquétipos junguianos, na formação de novas representações que se reportam à configuração original.
Roberto Magalhães coloca a cor como resultado de uma fase da transformação alquímica, da descoberta do homem pela ação e reação das paixões, vermelho, verde e amarelo tendo valores de Eros e Thanatos em conflito, enquanto Britto Velho liberta a cor das metáforas literárias, cria tensões espaciais dinâmicas, faz a obra vibrar, desloca o olhar através das áreas, equilibra um todo harmonioso pela discordância entre as partes.
Esse é um dos pontos altos na obra de Britto Velho, os diálogos de cores impossíveis, amarelo-laranja sobre fundo violeta contíguo ao verde, azuis separados por vermelho sobre violeta. Dá dimensão exata às áreas, as delimita pela forma, espaça as figuras isoladas em seus próprios mundos que simultaneamente ambicionam ao diálogo, seja pela tensão das cores que desejam se fundir, seja pelo significado psicológico, na realização da totalidade psíquica.
Sua figuração é marcante pelas formas quase grotescas de narizes-fálicos, bocas-vulvares, botas femininas contendo nádegas e lábios, em evidente alusão aos focos de atração sexual, línguas pontiagudas entre dentes vorazes, seres reduzidos a cabeções e pernas. Como marca característica, figuras com três olhos e o recorte plano da imagem.
Os três olhos surgiram da perspectiva simultânea, frontal e lateral de Picasso, acrescida do ideário oriental, tão difundido na década de sessenta, a terceira visão de Lobsang Rampa, representando a percepção da unidade em Shiva, a exteriorização do olho da sabedoria e do coração.
Os cabeções deambulatórios de Horst Antes, um dos maiores pintores alemães do pós-guerra, também possuem três olhos, geralmente superpostos, referindo-se as três partes do eu, o superego, ego e id. A figura humana reduzida a cabeça e pés percorre toda história da arte, desde os árabes, através da Idade Média e gótica, Breughel e Bosch. Sua origem, entretanto é universal, é a primeira concepção infantil do ser humano, aos quatro anos de idade, recorrente em todo mundo.
As cabeças de Britto Velho desconstroem e reconstroem os elementos, ressaltando a importância de narizes, orelhas e olhos. O nariz fálico é símbolo do discernimento mais intuitivo que racional, a orelha na tradição oriental representa a comunicação, canal da vida espiritual e mapa da totalidade do corpo.
O recorte espacial das figuras de Britto Velho, hoje se soltando da tela, tem para mim significado muito distante do universo dos desenhos de Heinz Edelmann. Ali, o mundo é o da fantasia, da possibilidade de um mundo diverso, onde agressão e poder não existem. As figuras de Britto também almejam essa liberdade, essa reconstrução do ser humano, porém ali o espaço está contido, aprisionado como nos recortes de Jean Arp, tornando a substância inteiramente ótica, fazendo com que a forma adquira sentido oposto ao da ilusão. Psicologicamente, penso que o artista queira conter a vida de suas criaturas, num mundo paralelo, que não queira mergulhar na perspectiva profunda, evitando se envolver naquilo que intui possa significar a liberdade dos instintos.
Admirável Mundo Velho, processo alquímico da Opus Magna atingindo o ouro pela conjugação de forças opostas, na cabeça das figuras criadas, a demonstração possível do existir. Carlos Carrion de Britto Velho, reafirma-se como um dos criadores latino-americanos, colorista de um mundo (im)possível.
WALTER DE QUEIROZ GUERREIRO
Historiógrafo e Crítico de Arte (ABCA/AICA)
As primeiras referências que vêm à mente são as pinturas psicodélicas dos anos 60, na criação do gênio da flower-power, Heinz Edelmann no Yellow Submarine dos Beatles, e a seguir a pintura pop de Richard Lindner. Em seguida, recordamos o Realismo Mágico através de Roberto Magalhães, de Lobsang Rampa com a terceira visão, Horst Antes com seus cabeções deambulatórios.
Em profundidade, percebemos que cada uma dessas semelhanças refere-se à inserção numa linguagem, que somente as cores puras e alegria de viver lembram pintura psicodélica; que Lindner persiste no uso espacial das cores e no recorte espacial das figuras, quem sabe no erotismo velado de botas femininas; o realismo mágico de Roberto Magalhães é mais próximo do convívio/social que do autoconhecimento alquímico; Lobsang Rampa, apenas um gatilho para este autoconhecimento e Horst Antes, companheiro distante de uma viagem pelo interior da psique.
Como expressão plástica, a obra de Britto Velho se enquadra apenas ligeiramente no realismo mágico, pela afinidade com os surrealistas ao tentar apresentar de forma racional uma realidade insólita, logicamente elaborada. Parte da crítica nacional tenta refutar o realismo mágico latino-americano, como forma de escapismo, entretanto basta querer ver, através das metáforas criadas, que não existe a fantasia, "o insólito não se inventa" nas palavras do cubano Wilfredo Lam, o fantástico é a nossa realidade social e individual.
Digo que sua inserção no Realismo Mágico é relativa, porque embora os principais representantes do movimento criem associações de realidade discordantes, como fez Wesley Duke Lee, ou mais próximo ainda, Roberto Magalhães que possui uma visão alquímica da figura humana, considerando-o como a soma de suas partes (e até de Arcimboldo ao imaginar cada fragmento refletindo no todo), o enfoque de Britto Velho é psicológico, a essência do comportamento humano refletindo-se na importância de suas partes. Aproxima-se aí de Wesley , na importância do erotismo no comportamento humano, na carga freudiana das ações remetendo a símbolos eternos, aos arquétipos junguianos, na formação de novas representações que se reportam à configuração original.
Roberto Magalhães coloca a cor como resultado de uma fase da transformação alquímica, da descoberta do homem pela ação e reação das paixões, vermelho, verde e amarelo tendo valores de Eros e Thanatos em conflito, enquanto Britto Velho liberta a cor das metáforas literárias, cria tensões espaciais dinâmicas, faz a obra vibrar, desloca o olhar através das áreas, equilibra um todo harmonioso pela discordância entre as partes.
Esse é um dos pontos altos na obra de Britto Velho, os diálogos de cores impossíveis, amarelo-laranja sobre fundo violeta contíguo ao verde, azuis separados por vermelho sobre violeta. Dá dimensão exata às áreas, as delimita pela forma, espaça as figuras isoladas em seus próprios mundos que simultaneamente ambicionam ao diálogo, seja pela tensão das cores que desejam se fundir, seja pelo significado psicológico, na realização da totalidade psíquica.
Sua figuração é marcante pelas formas quase grotescas de narizes-fálicos, bocas-vulvares, botas femininas contendo nádegas e lábios, em evidente alusão aos focos de atração sexual, línguas pontiagudas entre dentes vorazes, seres reduzidos a cabeções e pernas. Como marca característica, figuras com três olhos e o recorte plano da imagem.
Os três olhos surgiram da perspectiva simultânea, frontal e lateral de Picasso, acrescida do ideário oriental, tão difundido na década de sessenta, a terceira visão de Lobsang Rampa, representando a percepção da unidade em Shiva, a exteriorização do olho da sabedoria e do coração.
Os cabeções deambulatórios de Horst Antes, um dos maiores pintores alemães do pós-guerra, também possuem três olhos, geralmente superpostos, referindo-se as três partes do eu, o superego, ego e id. A figura humana reduzida a cabeça e pés percorre toda história da arte, desde os árabes, através da Idade Média e gótica, Breughel e Bosch. Sua origem, entretanto é universal, é a primeira concepção infantil do ser humano, aos quatro anos de idade, recorrente em todo mundo.
As cabeças de Britto Velho desconstroem e reconstroem os elementos, ressaltando a importância de narizes, orelhas e olhos. O nariz fálico é símbolo do discernimento mais intuitivo que racional, a orelha na tradição oriental representa a comunicação, canal da vida espiritual e mapa da totalidade do corpo.
O recorte espacial das figuras de Britto Velho, hoje se soltando da tela, tem para mim significado muito distante do universo dos desenhos de Heinz Edelmann. Ali, o mundo é o da fantasia, da possibilidade de um mundo diverso, onde agressão e poder não existem. As figuras de Britto também almejam essa liberdade, essa reconstrução do ser humano, porém ali o espaço está contido, aprisionado como nos recortes de Jean Arp, tornando a substância inteiramente ótica, fazendo com que a forma adquira sentido oposto ao da ilusão. Psicologicamente, penso que o artista queira conter a vida de suas criaturas, num mundo paralelo, que não queira mergulhar na perspectiva profunda, evitando se envolver naquilo que intui possa significar a liberdade dos instintos.
Admirável Mundo Velho, processo alquímico da Opus Magna atingindo o ouro pela conjugação de forças opostas, na cabeça das figuras criadas, a demonstração possível do existir. Carlos Carrion de Britto Velho, reafirma-se como um dos criadores latino-americanos, colorista de um mundo (im)possível.
WALTER DE QUEIROZ GUERREIRO
Historiógrafo e Crítico de Arte (ABCA/AICA)