CÂNTICOS SILENCIOSOS


Artista movido por incessante compulsão criativa que fosse além das discussões internas e externas ao pensamento plástico, Luiz Henrique Schwanke deixou-nos extraordinário legado, imenso no número que vai além de cinco mil obras, e espantosamente contemporâneo pelas abordagens propostas. A recente exposição “Sonetos” no Museu Victor Meirelles em Florianópolis, agora no Museu de Arte de Joinville, desvenda uma produção paralela aos “linguarudos” que o consagraram no cenário nacional. Para tanto, Narloch como curador da mostra selecionou de um total de mais de duzentos trabalhos, trinta e quatro, que sinalizam um percurso de seis anos de 1979 a 1985.
Surge de imediato a questão, se o título “Sonetos” advém do próprio artista sendo assim orientação para leitura, ou é extemporâneo. Soube que o próprio artista assim o designou, deixando o título anexado a um grupo de trabalhos, e este é nosso primeiro vislumbre da poética proposta. Ora, nada no percurso desse artista foi gratuito, a escolha visual da estrutura do Soneto Petrarquiano, com quatorze linhas dispostas em grupos de duas quadras e dois tercetos pode responder a uma necessidade estética, mas a poiesis creio ir mais longe. Se Schwanke quisesse ser mais conciso, por que não escolher a forma do Hai Kai, ainda mais com sua amizade com Paulo Leminski?
Pela cultura do artista e os longos processos reflexivos que deram origem às suas obras, acredito que a causa inicial foi a própria gênese do soneto, essa tradição lírica vernacular italiana atribuída a Petrarca, na verdade se originando na corte de Frederico II, rei da Sicília de 1208 a 1250 e imperador do Sacro Império Romano. Pela cultura, a corte siciliana apreciava as árias cantadas pelos poetas provençais, a lírica amorosa cortês do Troubadour. Era, portanto, uma cançoneta, singela ária musical acompanhada de um verso refinado, que Petrarca irá adotar com “Laura” em 1327. Declarava-se assim o amor por alusões, um romantismo em que o elogio ao ser amado fica refreado pela linguagem, um jogo de linguagem como diria Wittgenstein, em um dos seus pontos doutrinários da modernidade, a metanarrativa do processo evolutivo a partir da barbárie primitiva.
A primeira obra desta série configurada como soneto emprega a decalcomania, recurso gráfico bastante obsoleto por ser dos anos quarenta, beirando o Kitsch na utilização, e que neste caso particular, além da reprodução de um padrão industrial acrescenta um toque de ironia. É uma poesia visual, a flor que se repete ondulante na sucessão dos decalques aplicados com precisão cirúrgica, unidos como canção silenciosa em que o signo visual cria o poema, derrubando os limites entre artes visuais (e até gráficas pelo recurso) e literatura. Essa repetição do signo flor termina por impor um conceito, o da seriação, uma sucessão de elementos idênticos na forma, que remete à Pop Art e a Serial Imagery revisitada em Andy Wahrol, e de que o próprio Schwanke citava em textos, solicitando ao expectador que faça parte da leitura da obra. ...”As coisas, muitas vezes podem apresentar o inverso do que são, um pouco, e às vezes seriam iguais? O real e o virtual?”... É dessa maneira que vejo, além do próprio processo de repetição serial, que neste caso ao introduzir uma ondulação cantante à obra, acrescenta um comentário irônico aos moldes da Pop Art norte-americana à sociedade de consumo e à reprodução mecânica que geram produtos aparentemente artesanais, mas de consumo imediato, flor e amor numa mesma embalagem. Nadja Lamas intuiu uma ligação entre essa produção e o movimento italiano da Poesia Visiva, e é bastante provável que Schwanke ao se apropriar de uma imagem popular massificada e decorativa como o decalque, mais uma vez ao assim proceder, fizesse citação ao movimento italiano.
Podemos assim estabelecer um paralelo com Derrida, quando este afirma que toda linguagem é contextual, as palavras individuais (e neste caso os signos) são individuais e se relacionam com outras palavras (a estrutura do soneto).
Interpretamos desse modo um sentido numa multiplicidade de significados, onde os significantes podem indicar inúmeros significados. Lembremos que na Pop Art, como Arthur Danto exemplificou sobre a obra de Lichtenstein, o meio não é a mensagem, mas a forma como a mensagem nos é transmitida, e os artistas (como é o caso de Schwanke) tem consciência da estrutura da mídia, utilizando-a como recurso estilístico. Notável é o modo como a partir desta idéia inicial, o artista esgota as possibilidades do soneto, estabelecendo diálogos com o Concretismo e o Minimalismo, além da Pop Art que é o start do processo.
Na Pop Art a apropriação do suporte irá além da referência inicial escolhida, visível nos recortes de revistas com conotações psicológicas distintas, ora ingênuas, ora carregadas de sentimentos íntimos. Se o suporte é o anúncio publicitário da Digirede como novidade tecnológica em operações comerciais, ou o Citinvest surgindo como fundo de investimentos, e as linhas traçadas são em pigmento de ouro a associação é clara, enquanto nos recortes da revista Stern com a banhista década de vinte, ou o nu feminino da femme fatale belle époque tarjadas de ouro apontam outro significado, a sublimação de uma libido que se transforma em pulsão pura, isenta de toda finalidade, como desejo sem objeto.
Caso totalmente diverso é o de duas obras, o Che Guevara com o rosto obliterado pelas listas negras remetendo a um ideal mítico masculino do herói solitário, na fotografia de Alberto Korda. A apropriação da imagem para justificar suas lutas e defender suas causas, como negação pura e simples dos valores impostos pela sociedade, tem um fundamento psicológico. No imaginário individual, a introjeção do real essencialmente ocorre por aceitação inconsciente pela identificação de si no outro, apropriação pelo desejo de ter outro em si, a reelaboração do outro para si. Baudrillard sintetiza: tudo é sexual, tudo é político, tudo é estético. Na outra obra, apropriou-se do anúncio de moda masculina, em que o modelo em inequívoca pose homoerótica bebe uma Coca-Cola fálica e as listras do soneto se sobrepõem à área genital.
No passo seguinte como conseqüência natural das reflexões sobre Mondrian percebeu a possibilidade de ordenação dos versos em linhas paralelas, criando faixas simétricas na esteira de Richard Lohse e do Construtivismo. Distribui assim seus sonetos através de uma ordenação lógica, como folhas esparsas no espaço, reflexo das formas geométricas retangulares, agrupadas em blocos, ora assimétricos, ora sobrepostos. Pintura, pois se trata da pintura do soneto sobre o branco da página, e espaço, ora preta, cinza azulada ou verde acinzentada, terminam por encontrar-se naturalmente envolvidos. As interpretações das faixas e espaço recordam em certos momentos Lothar Charoux, afastando-se deste pelo gesto que não busca o rigor geométrico nem o movimento ótico, mas a calma construtiva do concretismo brasileiro e do Popcreto de Waldemar Cordeiro, principalmente nas faixas sobre papel de pauta do “Correio de Notícias”. Jogando também com o concretismo, os trabalhos em papel quadriculado, nos quais o nanquim preenche os espaços respiram-se quadras e tercetos, com os espaços vazios finais formando as rimas seis, seis, três, três, obedecendo à lógica poética, em que o último espaço vazio sintetiza o soneto no diminuendo sonoro.
Avançando no processo Schwanke volta-se para o Minimalismo ao criar incisões ou raspagens com a ponta seca de uma pena no papel branco, tênues linhas que o aproximam de Paul Klee ou das experiências de Mira Schendel, surgindo a estrutura de um soneto silencioso, forma e não-forma em diálogo no instante da própria gênese. Sob minha ótica, este é o ponto alto da série como contemporaneidade, uma vez que as palavras e seus signos desapareceram, restando um vestígio vazio do que foi um cântico, carregado de indagações.
Resta-nos ir além da estética e buscar uma interpretação da poiética que a gerou, evidenciar como nos sonetos o significado está efetivamente corporificado na sua expressão. Acredito como Arthur Danto, que o artista ao aproximar duas ordens ontológicas distintas pelo menos uma delas diz respeito a algo, tem uma significação. Eis o motivo porque lembro a frase de Ludwig Witggenstein: “Não se esqueça que um poema, mesmo que composto na linguagem da informação, não é usado no jogo da linguagem de dar informação”. Este filósofo propunha começar repetidamente, uma vez que os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo, e tudo o que vemos poderia também ser de outro modo. O Tractatus de Wittgenstein nos diz que existe um ponto que não pode ser discutido, somente pode ser sentido como construto poético. Esse o viés filosófico a ser encarado, ter a condição de estranhamento, reduzir a velocidade de percepção no construto poético, de modo a que o experimentador veja o objeto como se fora a primeira vez. A poeticidade estará presente quando a palavra (e aqui a forma plástica) for sentida como tal, não como mera representação do objeto nomeado, não como mera emoção, quando sua forma adquirir peso e valor próprio, em lugar de se referir indiferentemente à realidade. Os sonetos como tal, pertenceriam a um jogo de linguagem, a um paradigma para descrever de que modo a comunicação do significado funciona em circunstâncias específicas, como processo a ser mostrado e experimentado.
Em 1989, o artista conceitual Charles Kosuth homenageou Wittgentein com fotografias arquitetônicas de prédios sobrepostos a textos impressos quase ilegíveis, recordando no texto o filósofo: “sempre evite pensar num objeto em particular dessa maneira, assuma que ele está em constante mudança, mas que você não percebe a mudança porque sua memória está o constantemente enganando”. Nessa exibição intitulada “O Jogo do Indizível,” Kosuth reuniu obras de modernos a pós-modernos, de Duchamp a Broodthaers, e fez um comentário que se aplica como lição de arte, inclusive aos sonetos de Schwanke: A obra de arte é essencialmente um jogo com o sistema de significação da arte; é formada como esse jogo e não pode ser separado dele – isso também significa, entretanto, que uma mudança em sua formação/representação é significativa apenas na medida em que realiza seu jogo.
Silentes, as palavras desconstruidas por Schwanke ainda podem ser escutadas, por aqueles que se permitirem realizar a escalada proposta por Wittgenstein como experiência: “repetir através delas – por elas – para além delas. Deve por assim dizer, jogar fora a escada, após ter subido por ela.” São insinuações, cânticos entre o exterior e o interior, entre os sentidos e aquilo que não sabemos explicar, e a que chamamos espírito.


Walter de Queiroz Guerreiro, M.A.
Membro da Associação Brasileira e Internacional
de Críticos de Arte (ABCA/AICA).