DESCONSTRUINDO O MITO



No caldeirão modernista de Portinari convivem tradição e ruptura

No ano do centenário do nascimento de Candido Portinari (1903-1962), voltou à baila o real papel desempenhado pelo divulgador da imagem do modernismo no Brasil, enaltecido por Mario de Andrade no Salão de 1931, como autor da “melhor obra”. Era um retrato, o “Violinista” (Retrato de Oscar Borgerth) na verdade bastante acadêmico, de um personagem de projeção social e cuja modernidade se resumia ao tratamento do fundo da tela, primeiro de uma longa retratística mundana, marcada por realismo requintado e que lhe abriria as portas da sociedade.
Quando se fala em modernismo para o grande público surge imediatamente a figura de Picasso, estabelecendo-se uma diferença intencional com todas as expressões plásticas anteriores, um momento de ruptura com o naturalismo renascentista. Moderno em arte, significa a liberdade de cores e formas adquirindo vida própria, distorcendo a realidade e afastando-se do mimetismo ilusionista. Contudo, a distinção é mais sutil, modernista é aquele artista que se posiciona criticamente em relação ao presente e aos exemplos do passado, existindo a intenção de inconformismo como processo de descontinuidade.
Analisando o estilo de Portinari, veremos através das diversas fases, que sua obra é marcada pela grande arte dos prérrenascentistas italianos e de alguns artistas do século XX. Criou sem dúvida um estilo próprio, mas considerá-lo a grande figura do modernismo, é negar as evidências de seu processo criativo, eivado de classicismo. O longo aprendizado acadêmico na Escola Nacional de Belas Artes e o sentimento das raízes italianas irão marcar a influência decisiva do Quattrocento italiano, da grande pintura toscana de Piero Della Francesca e Paolo Ucello, mais que a cultura francesa então predominante. Na composição de Portinari é bastante marcante o uso da linha de horizonte baixa, acentuando a monumentalidade das figuras em primeiro plano, que advém de Piero Della Francesca, e que influenciaria igualmente os muralistas mexicanos. Também proveniente de Piero Della Francesca é a preferência pela luz zenital que banha objetos e pessoas, sem plasmar a forma, em luz interior que se repete em Paolo Ucello. Aliás, parece-me vir de Paolo Ucello o senso volumétrico-espacial dos retratos, o alongamento do pescoço numa tradição cortesã da burguesia florentina, mais marcante que a sempre assinalada influência de Modigliani. O pescoço alongado, a face lisa e a boca pequena nos retratos de Modigliani, tem mais a ver com Brancusi e a arte negra dos Baúle, em nada refletindo o caráter hierático dos retratos de Portinari.
A segunda grande influência, sempre negada pelos portinaristas, é a da arte muralista mexicana, de Diego Rivera, Orozco e Siqueiros, principalmente visível na monumentalidade e deformação proposital de mãos e pés, interpretada como expressão da força do trabalho. Convém recordar que esses excessos de expressão, agigantando mãos e pés tem como origem Diego de Rivera, via Picasso, enquanto a monumentalização da forma também trazida dele, tem sua origem no misticismo estético de José Vasconcellos. Este, um intelectual mexicano da época do general Francisco Madero (1911), era grande amante da cultura clássica, voltado ao misticismo e ocultismo, e via o índio pré-hispânico como descendente dos atlantes, uma força cósmica da América Latina. Diego Rivera igualmente constrói uma estrutura narrativa derivada da pintura renascentista, com valores hierárquicos, independente da distância perspectiva, que será usada por Portinari nas relações trabalhistas. Irá absorver de Orozco as figuras musculosas de torso nu e reclinadas, criando poderosas estruturas ósseas e de musculatura, enquanto de Siqueiros trará a mensagem expressionista da miséria e fome.
Se pudermos apontar uma linguagem em processo que caracterize a obra de Portinari, esta seria a do pós-cubismo clássico através de Picasso, com alguma tintura expressionista. Desde a obra “A Colona” de 1935, até os painéis “Guerra e Paz” da ONU em 1956, aparece uma influência crescente do cubismo, longe porém da compreensão do que fosse o espaço modernista. Simplificando as formas e a luz, Portinari cria uma divisão da superfície pictórica em planos, causando a sensação de profundidade. A sobreposição dos planos organizando o espaço e as formas recortadas com arestas, complementariam a composição, repetindo a preocupação renascentista de gerar profundidade e um espaço fictício. Essa construção em planos, na tentativa de criar uma feição modernista, chega a ponto de desenvolver um retalho fragmentado e altamente colorido, originário do “cubismo impressionista” de Jacques Villon (1875-1963). Villon, na busca de uma forma mais livre e lírica dentro do cubismo, baseou-se em planos transparentes coloridos, em que formas e volumes surgiam através deles. Ora, os planos coloridos, sobrepostos às formas em tantos painéis, desde a série de murais do Ministério da Educação ( RJ,1937) até a viagem a Israel em 1956, repetem esse maneirismo transportado da obra de Villon, porém sem outra função, a não ser decorativa e de preenchimento do espaço.
A chamada “trouvaille”(achado) de um artista ocorre às vezes como fórmula, e quando acontece torna-se realmente incômoda, ao se perceber a mesma figura repetida três vezes num mesmo autor. Esse é o caso flagrante da mulher sentada em primeiro plano, que na obra “A Colona” (1935) justifica-se plenamente, porém repete-se no quadro “Café” (1936-1944), quando a figura aparece deslocada na obra, sem qualquer relação formal com a composição, apenas um achado. Achados menores, mas igualmente incômodos, são certos elementos soltos que se repetem no preenchimento compositivo, bauzinhos, pipas, tocos de árvores, pedras e pássaros, recursos originários de Yves Tanguy (1900-1955), que na obra do francês tem função de criar o clima de vazio-espacial, em que objetos flutuam arbitrariamente no espaço, enquanto em Portinari são adereços no preenchimento de vazios. Igualmente de Tanguy parecem provir os fundos, em que céu e terra não tem transição definida, as cores se mesclando, embora isto apareça em De Chirico e até certo ponto nos prérrenascentistas toscanos.
Na multiplicidade de elementos presentes na obra de Portinari, cabe finalmente apreciar o papel por ele representado no modernismo brasileiro. Se seu estilo por si foi marcado pelo ecletismo, sofrendo ou assimilando influências as mais diversas, essa foi uma prática cumum às vanguardas do século XX, bastando citar o artista maior que foi Picasso, cujas apropriações vão da pré-história à contemporaneidade, porém dentro de postura modernista, criando diferença de intenção na forma absorvida.
A utilização de uma linguagem expressionista em Portinari buscou criar uma visão épica, conveniente ao nacionalismo da era Vargas. O gigantismo do trabalhador negro, como etnia que contesta a visão social predominante, o engajamento ideológico transparente, na monumentalidade do trabalhador em oposição ao diminuto capataz, são exemplos de uma arte mural, que por ser de acesso público seria portadora de uma concepção nova em arte. Não cabe aqui discutir o papel exercido pelo ministro Gustavo Capanema em sancionar o “pintor magno” brasileiro, da premiação do Instituto Carnegie em New York e dos interesses do Departamento de Estado americano em laureá-lo num período turbulento após a intentona comunista de 1935, o fato é que a consagração de Portinari serviria como aval oficial ao movimento modernista brasileiro, popularizando-o.
Artista maior ou menor, de acordo com a ótica que se utilize, obteve legitimidade nacional, como expressão e produto brasileiro, em processo antropofágico à la Oswald de Andrade, formalizando a ruptura iniciada por Tarsila do Amaral e que viveria sua maior expressão em Di Cavalcanti, este fiel ao espírito barroco e tropical, expressão plástica da brasilidade.





Walter de Queiroz Guerreiro
Crítico de Arte (ABCA/AICA)