Fio da vida
Deixe eu me lançar na alegoria da vida como alguém que sente e não se cala, alguém que geme e que fala, alguém que vive da fé de um dia ser quem é, alguém que simplesmente deseja viver o que a vida tiver para lhe oferecer. Esse alguém que muitas vezes foi sufocada pela vontade de se manifestar mas que precisou ficar muda em nome da paz; da paz que a ordem construída intima a humanidade sega de suas ilusões, que desde muito cedo aprende a dizer que mentira é verdade, que o mal é bem, que ser é ter. Deixe-me lançar meu grito que está mudo ante um mundo distorcido, diante de muros de separação, de esferas de segregação, das misérias dessa geração. Um grito de dor, de terror, de medo, de estupor pelos muitos outros gritos que foram abafados e mesmo quando foram lançados nunca foram escutados. O grito dos embriões, dos fetos, dos sem tetos, das almas sem afeto, dos desafetos. Deixe-me desconstruir a ordem, lançar o caos na engrenagem desse sistema feudal tão antigo quanto contemporâneo, em nada se fez diferente, somente se veste com outras nomenclaturas, mas permanece estúpido e brutal. Descontruam sua medula, dissequem sua enervadura, minem sua filosofia de castas, de classes, de padrões. Denunciem os que tem fome, denunciem os que passam frio, denunciem os que são menos que o nada, os invisíveis. Se levantem como zumbis, tomem as ruas, os espaços, alcem as vozes e clamem pela vida que lhes são roubadas, pelas oportunidades que são reduzidas, pela paz que lhes são tiradas, pelos crimes que lhes são impostos. Deixe-me dizer a que vim como qualquer mulher, como qualquer mortal; vim para sorrir, para escrever nas areias do tempo o encanto de nascer e pertencer, ainda que o vento arrebate a escrita, mil vezes repetida com o mesmo canto. Vim para distribuir, repartir e doar; doar de mim ao Universo sem fim; doar meu riso, meu canto, meu manto; doar do que tenho, meu pão, meu chão. Doar sem me perder na tarefa de ser; doar não mais que pertencer. E o que é o pertencer senão a consciência latente e vibrante de ser; ser tempo, espaço, imensidão; ser pequeno, necessário, indispensável; ser benção, fertilizante, fertilizado; ser pão, alimento, combustível; na cadeia infinita da vida, estar no topo, ser comida; me dissolver na areia, na água, no vento, virar fumaça no fogo que purifica, santifica. Santificado fica.