RITO DAS TREVAS
No início eram as trevas. Na primeira grande sala os painéis de Ricardo Kolb, fantasmagóricos, flutuam na escuridão. Pequenas luzes permitem entrever as pinturas brancas, as figuras acinzentadas, os resíduos enferrujados de metal, os fios retorcidos, a sensação pesada que aflora aos sentidos. Não existe sequência de leitura, as associações são livres, percorro-as buscando um elo, idas e vindas, e a força da escuridão aliada à pintura faz brotar os registros. Nada é definido, existe apenas uma angústia crescente, do branco começam a crescer formas indissolúveis ligadas à mente humana.
“Encefalogramas”, proposta da exposição é bem isso, um mergulho profundo na mente, do mal intrínseco ligado à consciência na projeção de fantasias do superego, do mundo interior do homem falando consigo mesmo. É a perpetua comunicação de uma célula, de um neurônio falando com outro, da consciência como percepção subjetiva de milhões e bilhões de células armazenando informações, comunicando-se entre si, gerando aquilo que chamamos consciência. É o portal de passagem dos mundos exterior e interior, do mundo mental criado por nós e da realidade física externa, do privado e do publico. Por isso a proposição será sempre um vislumbre, uma recriação que nossa mente irá projetar, uma tese e um problema conceitual, uma vez que a privacidade da mente é uma questão epistemológica da qual jamais poderemos saber, apenas intuir.
Existem as sensações de prazer e de dor, porém a percepção é uma soma subjetiva de experiências, sentimentos e sensações que os neurofisiologistas designam como Qualia. O mundo externo parece algo que para nós em termos de sensações, mas a experiência pessoal é individual e imprecisa, relativa, ligada àqueles bilhões de neurônios que compartilham nossa vivencia de mundo.
O cérebro se comunica consigo mesmo, envia mensagens para todo o corpo, resgata impressões da memória e do mundo exterior, introjecta o irracional do dia a dia, reprocessa as sensações e os desejos. Talvez um desses painéis seja a metáfora disso mesmo, das barras de prisão de um corpo encarcerando a mente, de um mundo interior com o qual nos comunicamos através de grades.
Os dois grandes painéis remetem aos hemisférios cerebrais, as pontas soltas dos arames às sinapses, às possibilidades imensas da recepção quais antenas sondando o lado daqui, um arquivo aberto pronto a receber mais e mais dados, tentando processar e compreender o sentido da vida. São neurônios, sinapses, fissuras, medula espinhal, quiasmas, interligados, expostos, o hardware da maquina, aqui e ali um vestígio do ser complexo, o contorno humano.
As emoções conflitantes conduzem à segunda sala, concebida como sequência de caixas-objeto, instalação em que cada elemento é um instante dessa maquina pensante. A proposta de inicio remete à teoria funcionalista da “caixa- preta”, tratando a mente como um sistema fechado em que não existiriam os Qualia, aquela soma de impressões e reprocessamentos das imagens formadas, em que os estados mentais teriam relações causais diretas, entradas no sistema de um lado, saída no outro.
Entretanto, a primeira caixa-preta revela bem outra coisa: um feixe de fios metálicos envolve um cristal de rocha, um fio único destaca-se envolvendo um novelo emaranhado de outros fios, abaixo outro fio elétrico já queimado pelo tempo. O cristal está ali, exatamente nos lembrando de ser ele o estado intermediário entre o visível e o invisível, nossa capacidade de clarividência, cristal como símbolo da intuição, do conhecimento, da consciência.
As caixas-pretas interligadas contam fragmentos de uma história, sem sequencia, como as mensagens de um sonho. Ficaram ali os resíduos do dia, os anseios e frustrações, as associações e fantasias recorrentes, a soma das caixas interligadas gerando um sistema não linear, em que as partes produzem uma linguagem, uma mensagem. Há imagens que se repetem: os pequenos feixes amarrados, presentes em toda a exposição, feixes de nervos e também alusivos a um estar ligado, positivo como integração, negativo como maldição do apresamento.
O feixe de gravetos queimados vai mais além, símbolo da transitoriedade, da sucessão de vida e morte, do que a morte significa para o corpo. Os fios paralelos que atravessam várias caixas seriam os cordões neurais ou as linhas retas de um encefalograma existente, quando todos os sinais vitais se extinguiram?
Numa caixa, de um lado uma página manuscrita, do outro a fotografia de um alienado. Escrita, manifestação visível do Verbo, palavras como força atuante, a materialização da revelação, o universo dos signos como manifestação material da mente. Na outra extremidade, espremido no canto, a foto do alienado, figura inquietante, o limite da palavra, o vazio existencial, a ausência do saber e da cultura. Ele é o vácuo, mas o vácuo necessário, pois se desligou da totalidade humana e da vida material vivendo no seu mundo interior, fora de todas as normas da sociedade e atingindo a transcendência.
Aqui e ali crânios, sede do pensamento e representação macrocósmica do homem, símbolo da morte física e do renascimento espiritual, da mesma maneira que as vértebras, transmutadas metaforicamente em latas enferrujadas, suportes da verticalidade na afirmação do Self, como totalidade da psique humana. O centro da instalação, com seu amontoado de latas remetem a essa vivisseção, ao desmantelamento da psique, ao encefalograma como instrumento de sondagem do mistério maior.
Kolb propõe assim uma percepção do irracional, dos recônditos da mente armazenados no comportamento diário. O transbordamento dessa caixa-preta é interminável, porque uma associação leva a outra, uma imagem a outra, como objetos resgatados no porão escuro da mente. No ofício das trevas alguns devem velar, e da vigília de Kolb sobrevivem os sonhos do lado escuro da existência.
Walter de Queiroz Guerreiro, Prof. M.A.
Critico de Arte ( ABCA/ AICA)
No início eram as trevas. Na primeira grande sala os painéis de Ricardo Kolb, fantasmagóricos, flutuam na escuridão. Pequenas luzes permitem entrever as pinturas brancas, as figuras acinzentadas, os resíduos enferrujados de metal, os fios retorcidos, a sensação pesada que aflora aos sentidos. Não existe sequência de leitura, as associações são livres, percorro-as buscando um elo, idas e vindas, e a força da escuridão aliada à pintura faz brotar os registros. Nada é definido, existe apenas uma angústia crescente, do branco começam a crescer formas indissolúveis ligadas à mente humana.
“Encefalogramas”, proposta da exposição é bem isso, um mergulho profundo na mente, do mal intrínseco ligado à consciência na projeção de fantasias do superego, do mundo interior do homem falando consigo mesmo. É a perpetua comunicação de uma célula, de um neurônio falando com outro, da consciência como percepção subjetiva de milhões e bilhões de células armazenando informações, comunicando-se entre si, gerando aquilo que chamamos consciência. É o portal de passagem dos mundos exterior e interior, do mundo mental criado por nós e da realidade física externa, do privado e do publico. Por isso a proposição será sempre um vislumbre, uma recriação que nossa mente irá projetar, uma tese e um problema conceitual, uma vez que a privacidade da mente é uma questão epistemológica da qual jamais poderemos saber, apenas intuir.
Existem as sensações de prazer e de dor, porém a percepção é uma soma subjetiva de experiências, sentimentos e sensações que os neurofisiologistas designam como Qualia. O mundo externo parece algo que para nós em termos de sensações, mas a experiência pessoal é individual e imprecisa, relativa, ligada àqueles bilhões de neurônios que compartilham nossa vivencia de mundo.
O cérebro se comunica consigo mesmo, envia mensagens para todo o corpo, resgata impressões da memória e do mundo exterior, introjecta o irracional do dia a dia, reprocessa as sensações e os desejos. Talvez um desses painéis seja a metáfora disso mesmo, das barras de prisão de um corpo encarcerando a mente, de um mundo interior com o qual nos comunicamos através de grades.
Os dois grandes painéis remetem aos hemisférios cerebrais, as pontas soltas dos arames às sinapses, às possibilidades imensas da recepção quais antenas sondando o lado daqui, um arquivo aberto pronto a receber mais e mais dados, tentando processar e compreender o sentido da vida. São neurônios, sinapses, fissuras, medula espinhal, quiasmas, interligados, expostos, o hardware da maquina, aqui e ali um vestígio do ser complexo, o contorno humano.
As emoções conflitantes conduzem à segunda sala, concebida como sequência de caixas-objeto, instalação em que cada elemento é um instante dessa maquina pensante. A proposta de inicio remete à teoria funcionalista da “caixa- preta”, tratando a mente como um sistema fechado em que não existiriam os Qualia, aquela soma de impressões e reprocessamentos das imagens formadas, em que os estados mentais teriam relações causais diretas, entradas no sistema de um lado, saída no outro.
Entretanto, a primeira caixa-preta revela bem outra coisa: um feixe de fios metálicos envolve um cristal de rocha, um fio único destaca-se envolvendo um novelo emaranhado de outros fios, abaixo outro fio elétrico já queimado pelo tempo. O cristal está ali, exatamente nos lembrando de ser ele o estado intermediário entre o visível e o invisível, nossa capacidade de clarividência, cristal como símbolo da intuição, do conhecimento, da consciência.
As caixas-pretas interligadas contam fragmentos de uma história, sem sequencia, como as mensagens de um sonho. Ficaram ali os resíduos do dia, os anseios e frustrações, as associações e fantasias recorrentes, a soma das caixas interligadas gerando um sistema não linear, em que as partes produzem uma linguagem, uma mensagem. Há imagens que se repetem: os pequenos feixes amarrados, presentes em toda a exposição, feixes de nervos e também alusivos a um estar ligado, positivo como integração, negativo como maldição do apresamento.
O feixe de gravetos queimados vai mais além, símbolo da transitoriedade, da sucessão de vida e morte, do que a morte significa para o corpo. Os fios paralelos que atravessam várias caixas seriam os cordões neurais ou as linhas retas de um encefalograma existente, quando todos os sinais vitais se extinguiram?
Numa caixa, de um lado uma página manuscrita, do outro a fotografia de um alienado. Escrita, manifestação visível do Verbo, palavras como força atuante, a materialização da revelação, o universo dos signos como manifestação material da mente. Na outra extremidade, espremido no canto, a foto do alienado, figura inquietante, o limite da palavra, o vazio existencial, a ausência do saber e da cultura. Ele é o vácuo, mas o vácuo necessário, pois se desligou da totalidade humana e da vida material vivendo no seu mundo interior, fora de todas as normas da sociedade e atingindo a transcendência.
Aqui e ali crânios, sede do pensamento e representação macrocósmica do homem, símbolo da morte física e do renascimento espiritual, da mesma maneira que as vértebras, transmutadas metaforicamente em latas enferrujadas, suportes da verticalidade na afirmação do Self, como totalidade da psique humana. O centro da instalação, com seu amontoado de latas remetem a essa vivisseção, ao desmantelamento da psique, ao encefalograma como instrumento de sondagem do mistério maior.
Kolb propõe assim uma percepção do irracional, dos recônditos da mente armazenados no comportamento diário. O transbordamento dessa caixa-preta é interminável, porque uma associação leva a outra, uma imagem a outra, como objetos resgatados no porão escuro da mente. No ofício das trevas alguns devem velar, e da vigília de Kolb sobrevivem os sonhos do lado escuro da existência.
Walter de Queiroz Guerreiro, Prof. M.A.
Critico de Arte ( ABCA/ AICA)