ANTONIO DIAS UM ARTISTA VISCERAL

ANTONIO DIAS UM ARTISTA VISCERAL

Na antologia de um rebelde o sonho da emoção
 
Será o Brasil o “País inventado”, título da retrospectiva de Antonio Dias no Museu de Arte Moderna (MAM – SP,2001), ou o país somos todos nós, fragmentos microscópi-cos, poeira do Universo desenhado pelo artista, em quarenta anos de carreira?
Antonio Dias ocupa espaço único na arte contemporânea brasileira, trafegando com desenvoltura entre o neoconcretismo da década de 70 e a arte conceitual dos dias atuais, do rigor modernista do domínio da expressão ao acabamento impecável da proposta, com o rigor intelectual dos conceitos expressos em suas instalações. Foi e continua sendo um artista político, porém sua politização vai além das fronteiras nacionais, denunciando a tortura policial nos anos de chumbo, à violência presente em escala mundial, revelando os interesses dos mercadores de armas internacionais na Bósnia camuflados pelos interesses étnicos, pela capacidade de uma revolta pessoal ante a indiferença de uma pretensa civilização global.
Contudo, não existe em sua obra apenas o registro político de um homem afinado com seu tempo, transparece nele uma busca incessante nas respostas essenciais à pergunta quem somos nós, através da diversidade de sua visão de horizontes e pela discussão de todas as hipóteses possíveis, entre a obra plástica e o observador.
E no início, eram os cubos do universo (1969), a questão sempiterna da imensi-dão, a solidão, o universo somos nós, o vazio entre a energia (mental?) e a memória, a célula isolada no pretume, signo solitário de um santuário criado na imensidão. Os cubos são a conseqüência direta dos tapetes double face, verso e reverso de uma camuflagem da palavra, o branco do deserto salpicado de grãos de areia, o negro do universo salpicado de luz. O sentido da palavra é circular, como circular é o ouroboros, a capacidade do movimento e o eterno retorno, e o expectador no centro do processo tentando definir, dar nome àquilo que é relativo.
Os cubos do universo, “The beginning e The end” são exatamente isso, e ele não esconde o caminho, o título dado é claro “The space in between” (o espaço entre eles) e qual é este espaço? É o mesmo entre GOD e DOG nas telas da série Pretume, o lugar de todos nós, meros expectadores entre campo e matéria, aquele intervalo entre uma grande concentração de energia do início e a dispersão no fim, a pulsação entre forma e vazio, a relatividade na percepção. GOD e DOG são igualmente isso, a eterna dúvida existencial de quem é o homem entre Deus e o Cão, talvez apenas aquele ser que busca um lugar para a palavra, um lampejo de consciência e reflexão de que não existem autonomias, especularidade, somos o próprio reflexo, espelho da totalidade da criação e destruição. Na casualidade do universo, Deus joga dados.
Essa consciência de nosso destino os artistas do Nepal o tiveram, quando Antonio Dias lá elaborou seus quatro enormes círculos de papel artesanal, impregnados de argila e folhas de chá. Rasgando um deles ao meio, vazando o centro de outro, o conjunto passa a idéia da existência e não-existência, e a pedido de Dias deram-lhe o nome Niranjanirakhar (1997), que simplesmente é a resposta a uma questão eterna, qual é a forma de Deus? O azul é vasto.
No mergulho do verdadeiro espaço, que é o da imensidão íntima do próprio corpo, Antonio Dias que já ficara na superfície da pele, na instalação “Flesh Room With Anima” (1978) vai além, analisa o homem-máquina numa dissecção do corpo fragmentado. Vai dessa maneira de encontro a uma tendência de fim de século, no desmembramento do corpo físico, com sua multiplicidade de conteúdos e conexões, de intimidades e descobertas, em imagens-padrão expostas ostensivamente à contemplação. A instalação da terceira sala, “Todas as cores dos homens” (1995), com seu caráter decla-radamente fálico, é a radiografia do corpo visceral, de um relato possível de órgão e função, da transmutação alquímica entre vida e morte. De um modo constante em suas ocupações de espaço, uma planta baixa constrói a distribuição, sobrevivendo um padrão que pode ser interpretado pelo observador. Tubos de vidro soprado na forma de pênis eretos, contendo água, grafite, malaquita, ouro e vinho, propõe uma celebração ao fetichismo do sexo. A fragilidade do vidro é a advertência implícita à agressividade sexual, contida na condição humana. Por outro lado, como matéria é transparente, permite a união dos contrários, a forma fálica explícita e o conteúdo tornado visível. É através da tradição alquímica que Antonio Dias passa sua mensagem, do princípio fundamental da vida no vermelho do vinho (e do sangue) chega-se ao verde da malaquita, do desabrochar da vida e da existência, da fecundidade da água (no caso mineral) ctonica e incontaminada ao brilho do ouro, filho dos desejos da natureza e transmutações dos anseios mais vulgares, em imagem da perfeição.
Diametralmente oposto é o sentido do ouro aplicado à grande tela “Demônio” (1996), aqui mesclado ao cobre, expandindo-se em um campo vermelho-sangue, ouro: a quintessência do cobre, signo do valor de troca, ícone máximo da economia de mercado e demônio na acepção original da palavra, associado à vontade divina e ao destino do humano.
A variação de significados é a marca real de uma obra continuamente questio-nando signos arbitrários e o real sentido simbólico, distante talvez da marca que a curadora Sonia Salztein imprime em sua leitura, enxergando uma forma retangular recor-tada em L, resíduo do neoplasticismo de Mondrian, e constante em sua obra. Que exista a cruz, perfeitamente delineada em trabalhos recentes como “Pessoa nefasta” (2000) da série Autonomias, ou discreta em “ICH” (1989) é indiscutível, mas parece-me redução a uma leitura minimalista de Antonio Dias, quando o que lhe interessam são jogos de olhar, exercícios de simetria fundamental, em que o observador busca estabelecer padrões de organização de uma mensagem estética. Se para ela tudo se resume em uma elaborada mensagem construtivista, em que as instalações tem expressão reduzida, que dizer de “Kasakosovokasa” (1996), um espaço de estranhamento, de negação a toda fenomenologia do espaço, incomoda sensação de um local onde não pode haver repouso. Há ali a subversão da noção de casa, e a verticalidade que pressupõe casa como refúgio é demarcada por colunas recobertas de macro-visões da pele humana, suspensas e recordando os corpos enforcados em Kosovo na “limpeza étnica”. A intimidade do refúgio em nossa imagem mental torna-se ali violentada, não sobrevivendo descanso pela penetração das sombras de uma realidade, da qual não existe fuga.
Este é o jogo contínuo de Antonio Dias, atrás da aparência imediata e da ilusão da palavra o resignificado, o outro lado da meia-noite na destilação contínua do pensa-mento, filtrando toda emoção. Palavra, brilho, cor, contenção ou explosão de formas, é o engodo de um pensamento reflexivo visceral, em que a trama da vida se traduz em miríade de fragmentos, pequenas partículas na inter-relação de todas as coisas.


Walter de Queiroz Guerreiro
Crítico de Arte (ABCA/AICA)