Leonilson (1957-1993) baliza da Geração 80, uma das figuras mais autênticas da liberação pictórica e da quebra de todos os conceitos plásticos no Brasil, renasceu numa retrospectiva em 1993, na Galeria Thomas Cohn do Rio de Janeiro com o sugestivo titulo: “Lembrando Leonilson”.
             Figura absolutamente fiel a si mesmo na profusão de modismos desvairados, dos excessos libertários de uma geração de artistas lúdicos, em que o fazer contrastava com o pensar da geração anterior, recusando-se a aceitar os limites do retângulo da moldura como delimitação da forma, criou uma obra autorreferente, numa visão introspectiva, que pode e deve ser compartilhada na reconstituição sensível de nossa inserção na realidade.
             A Geração 80 designa aquela multiplicidade de caminhos, tendências, levantamento de questões estéticas, filosóficas e ideológicas no posicionamento frente ao mundo, sem caráter panfletário e que marcou os artistas do Parque Lage no Rio de Janeiro, expandindo-se depois para São Paulo, criando um eixo único de trocas de emoções, culto à individualidade, predomínio da emoção sobre a razão, do subjetivo que não pode ser aferido frente ao conceitualismo da vanguarda vigente, entrando em choque com a desmaterialização da arte e da destruição do objeto artístico como resíduo do trabalho, sintonizados com as tendências da transvanguarda italiana, neoexpressionismo alemão e grafite norte-americano.
             Existe um contraste violento entre o caráter plástico da obra de Leonilson e o conteúdo narrativo visível em todo seu discurso, sendo confrontada a cada instante com títulos longos, frases acumuladas, grafismos, palavras soltas, que contam uma história pessoal, que talvez possa ser intuída, porém dificilmente compreendida em toda sua extensão, a não ser por um círculo fechado. Ao mesmo tempo as estruturas complexas, os recortes matissianos das formas, as propostas transgressoras da pintura–objeto, lado a lado com a pintura presa à linha, desenhada, junto à libertação da cor e do branco que aflora a cada instante, criam uma situação única na interpretação.
Com uma obra essencialmente colorida, e que num primeiro momento talvez tivesse a intenção de um automatismo “à la Breton”, fruto do acaso, existe uma escolha da cor, que ora introduz tensão espacial pelos contrastes violentos nas cores primárias, ora acalma-se em cores complementares terciárias, em que apenas os contornos explicitam a forma. Surge aí o branco recortando figuras infantis do universo do cartum, aparecendo como a parede que se insinua através de furos na tela, ou como símbolos carregados de conotações sexuais.
             Convém não esquecer que podemos dar uma interpretação ao símbolo, uma visão pessoal do significado, que pode ou não corresponder à introjecção das qualidades sensíveis do objeto sobre o ego do artista, a percepção das formas sendo projeção do próprio ego, em que o símbolo tem caráter de indicação da vida psíquica do artista, podendo, entretanto incorrer no erro de interpretação, de uma imagem eidética reflexiva do analista (e do crítico).
             Leonilson procurou retrabalhar os símbolos criando uma linguagem essencialmente pessoal, distanciando-se dos arquétipos e afastando-se de formulações estéticas pelas releituras, buscando acima de tudo não se repetir. Este é um dos problemas essenciais na visão crítica de um artista fechado sobre si mesmo, negando a experiência comum e simultaneamente impossibilitada de apagar as imagens que afloram do subconsciente. Aparecem assim formas recorrentes, que desvendam o processo de simbolização do artista, relação entre forma e conteúdo a nível lingüístico, com a repetição da forma em contextos diversos.
             Na obra “Cara ou Coroa” surgem as duas faces da moeda como relações entre retenção e expulsão, entre densidade e esvaziamento, do caráter fisiológico da tensão traduzida na cor púrpura que ocupa o espaço esquerdo da obra, com a moeda assumindo forma fechada e linhas convergentes; no lado direito, o espaço em tons verdes mesclados de azuis é dividido por um canal central, que flui dividindo o campo, a moeda apresenta agora um orifício central, transfigurada em esfíncter, completando a oposição tensão­–distensão.

             Essa mesma simbolização reaparece num díptico pintura–objeto em que as formas circulares são vistas de dois ângulos diversos, uma delas (a aberta) carregada de símbolos fálicos.
             Noutra obra, concebida de forma trapezoidal, a borda do lado direito é formada por triângulos equiláteros em amarelo puro, remetendo o olhar para o interior e ao mesmo tempo formando autoproteção contra o mundo externo, barreira erguida como defesa às forças dissociativas do exterior, que poderiam se apoderar do espaço pictórico. Aparece ali um teclado de piano que pode se referir a Júlio Villani, contemporâneo da FAAP, ou referencia aos teclados de piano comuns aos desenhos animados. O lado esquerdo da obra é aberto, com a presença de uma fita serpentiforme que se esgueira no limite superior, símbolo carregado de significados arquetípicos. Aparece igualmente um braço levantado segurando uma concha alongada, ao mesmo tempo masculino e feminino, na ambigüidade do símbolo a sinalização de uma ambivalência. Ao centro uma figura de HQ, anti-herói de significado particular, usando chapéu com orelhas de burro, recortada em branco, em que a superfície do fundo assume o primeiro plano.
             Lado a lado com obras como estas, surgem trabalhos em que o problema levantado é puramente estético, caso de “A Porta”, bordado sobre voile, em que as bordas hachuriadas em diagonal remetem ao espaço interno. Ali, um retângulo descentrado indica a figura, pela inclusão de um simples ponto, a maçaneta. No entanto, na porção central superior existe um segundo ponto, passagem, janela, abertura, que conduz à leitura mais para o fundo. Dessa maneira, numa superfície plana existe alternância entre as funções figura–fundo, cada campo assumindo funções diversas, ora como figura, ora como fundo.
             A utilização do bordado e dos tecidos, originado pela sua admiração total por Leda Catunda, surge em outros instigantes trabalhos desta exposição (que originou dois anos depois: “São tantas as verdades” na Galeria de Arte do SESI-SP), como em “O Recruta, o Aranha, o Penélope”, ou na pintura–objeto “Manto Sagrado”, referência indireta ao caráter divino do exercício do poder, aqui simbolizado pelo manto real, com sua estola veirada (exclusiva da realeza) e pelo brasão pintado numa superfície que simula o veludo, realçando o falso brilho.
             Cada obra nesta mostra é um desafio ao intelecto, pela negação de uma linha condutora do pensamento, na multiplicidade de enfoques e situações vividas, de problemas plásticos em que espaço e tempo se superpõem num processo reflexivo.
             De fato, são tantas as verdades, título de uma obra antológica e de várias retrospectivas de Leonilson, que só podemos nos remeter a Léger, ao dizer que “ser livre e apesar disso não perder contato com a realidade, eis o drama desta figura épica, quer seja chamado inventor, artista ou poeta”.
 
Walter de Queiroz Guerreiro
 Crítico de Arte (ABCA/AICA)