Obra de Kolb provoca deslocamentos espaciais entre o real e a fantasia
No processo da erosão controlado pela ação do homem, a que estamos habituados no dia-a-dia de uma cidade, decorrentes de uma ação contínua de aplainamentos, rasgos e recortes visuais do espaço, raramente detém nosso olhar no material menos nobre rejeitado nessa empreitada, o barro, e de onde ele provém. Lidar com a cidade é lidar com uma complexidade infinita de formas em contínuo ajuste, cuja coerência somente se demonstra por uma escolha discriminada, a partir da própria vida.
Este o Leitmotiv subjacente à obra de Ricardo Kolb, que a atual intervenção proposta na antiga Cervejaria Antártica de Joinville, futuro Museu de Arte Contemporânea Schwanke, terminou revelando, e por ele apropriadamente nomeada “Matéria Básica-Barrancos”.
Diante do desafio de criar uma obra de arte a instaurando como intervenção, que pressupõe coerência com o espaço existente e ao mesmo tempo provocar um estranhamento, conseguiu dar prosseguimento a um olhar arbitrário em sua essência, premissa básica na valorização e nascimento de uma forma artística.
Entretanto, que invenção seria possível que alterasse o espaço, criando uma descontinuidade no fluxo narrativo do conhecimento consagrado pelo hábito? É o surgimento do não-lugar, na própria etimologia do U topos, a utopia na função de convivência entre o real e o utópico, nas palavras do psicanalista Edson Luiz André de Souza como um “desassossego do presente acossado pela responsabilidade do amanhã”, uma simples insatisfação do presente e desejo de transposição.
Como obra esta intervenção cria um paradoxo com o site-especific, já que ao buscarmos as especificidades de um lugar estamos contrariando a homogeneização do mundo, e quando instalamos objetos em um espaço existente não são as formas criadas, mas o lugar que define as formas. Cristina Freire coloca, aliás, claramente, que hoje não são mais os objetos que se instalam no espaço, mas, o contrário, é o lugar que define as coisas.
Kolb propôs esse estranhamento ao deslocar os barrancos como não-lugar, aquela experiência de não sabermos o que está diante de nós e o que não está, se o espaço em que nos situamos existe na realidade material ou psíquica.
Este processo de duplicação do real na filosofia tem sua estrutura fundamental no discurso metafísico desde Platão, considerando-se que o real imediato, aquele que consideramos como tal, só pode ser compreendido quando considerado como expressão de um outro real supra-sensível, ou seja, como idéia. Seguindo esse raciocínio a essência do objeto não poderá se repetir jamais, sendo impossível sua reconstituição quer temporal, quer espacial, uma vez que não se pode duplicar uma realidade aparente.
A partir de Hegel, porém, o interior (ou suprassensível em termos metafísicos) surge como fenômeno em sua essência, elevando-se o sensível ao inteligível. O duplo então não será mais uma réplica imediata do fenômeno, passa a ser manifestação de sua essência, que modernamente Lacan irá considerar não outro real, mas um significante, aquilo que buscamos em outro lugar como símbolo de uma ausência. Fará então sentido, em termos de arte, considerarmos a duplicação não como uma fuga da realidade do aqui para outro espaço, mas, pelo contrário, o mecanismo de convergência de outro lugar para aqui, a transposição de um elemento como soma de todos os elementos, de uma realidade própria como série infinita de realidades condensada no instante.
O não-lugar instaura-se na obra de Kolb como soma de todos os instantes de convergência de seu olhar sobre estruturas, na maioria artificiais, fruto da ação mecânica da mão humana sobre a paisagem. Surgem assim taludes como clivagens do solo, ora seccionando o ângulo reto, ora formando íngremes paredes escarpadas, nas outrora suaves ondulações da paisagem local. É uma experiência estética que Dufrenne situa como um instante de origem, em que o homem confundido inteiramente com as coisas, experimenta a conformação coetânea ser-mundo, reconduzindo o pensamento à sua origem, e ao procurar acordo com o mundo reconcilia-se consigo mesmo. Esse processo psicológico foi definido por Freud como “sucessão de um jogo audacioso da fantasia e de uma implacável crítica em nome da realidade”.
Neste percurso pela criação de um não-lugar, Kolb aparece como fascinado pela matéria básica, uma massa ideal criada pelo barro, síntese da maleabilidade da forma e ao mesmo tempo da resistência, em perfeito equilíbrio.
Sua substância é a terra, elemento primeiro da natureza, que desponta infinitamente ao olhar circunvagante, na topologia dos relevos. Bachelard, em seus ensaios sobre a imaginação das forças, é o primeiro a apontar a dificuldade de evocar o peso psíquico das imagens terrestres. Aqui, particularmente, parece-me que o melhor modelo aplicável é o desenvolvido por Didi-Huberman. Diz ele que uma forma será primeiramente apreendida em sua fatura, aqui significando textura e materialidade, depois pela singularidade do material e seu significado. Para compreendermos a forma deve-se então compreender o caráter imanente dessa unidade da matéria, depois o reconhecimento da forma em sua organicidade.
Vejamos o caso dos taludes, apresenta inicialmente uma fatura própria, uma textura única, resultante do deslizamento natural ou do corte provocado, tem superfície contínua, lisa, desnuda, regular, e sua matéria essencial é a terra. Contudo, o corte introduzido nessa matéria e que o forma, revela sua organicidade, se na superfície horizontal aparenta ser liso, dependendo da quantidade de água absorvida impossibilitando individualizar os minúsculos grãos, quando observado no biselamento que caracteriza o talude mostra-nos uma fenomenologia própria. O peso introduzido pela gravidade aparece nas camadas sedimentadas, alternadas como anéis de crescimentos vegetais, extratos de material mais fino aparecem compactados, recalcados na sucessão de camadas apontando para tempos materiais diversos.
Se essa é a origem, pensemos na intervenção. O não-lugar criado pelo artista é um questionamento sobre a realidade, do aceitamento sem reservas do posicionamento de coisas no espaço, não se tratando de uma negação, mas da possibilidade de existência em outro lugar. Trataria-se, portanto da aparência de uma ilusão e como Clément Rosset bem diz, em sua forma mais corrente de afastamento do real, não como recusa da percepção, mas como deslocamento para outro lugar. Cria-se assim o duplo, como ilusão metafísica paradoxal de ser ao mesmo tempo ela própria e a outra, o não-lugar e o lugar.
Ao deslocar os taludes para o novo espaço o artista cria metáforas, aludindo à essência das formas e ao que Didi-Huberman chamou de “fenômenos de obscurecimento”, visibilidades singularmente transformadas. Dessa maneira, já ao adentrarmos na antiga fábrica nos deparamos com quatro grandes telas inclinadas em 45° e apoiadas nas paredes, pinturas feitas com terra que sugerem nos tons intercalados os extratos dos taludes, e pela própria disposição à transposição do olhar. Surgem aí os barrancos, irrompendo o cimento, apoiando-se nas colunas de alvenaria existentes, ou criando barreiras entre elas. Um olhar mais atento irá gerar estranhamento, esses barrancos apóiam-se ou as colunas nascem dentro deles como transformação da matéria, uma vez que na base a terra parcialmente inclina-se, fazendo surgir o artefato humano. As superfícies de topo aparecem também onduladas, alisadas como barro primitivo, deslizantes, quase sensuais ao toque, orgânicas, e no contraste entre o intocado e a lateral exibindo o corte do talude. O próprio corte ora se apresenta regular, alisado como fatia da crosta terrestre, ora como entre as colunas desbarrancando, indicando não se tratar de um muro transposto, mas algo de caráter orgânico, que não se manteve pela erosão natural.
Junto a esses taludes “naturais” a criação vai além, um retângulo perfeitamente regular e plano mostra marcas de pequenos retângulos como sinais de futuros cortes, e ao lado blocos pequenos semelhantes a tijolos de taipa, a forma mais antiga de invenção humana na construção de habitações. Igualmente, em destaque, isolado como escultura, um pequeno grupo de blocos empilhados aponta para essa nova função da forma, que é formadora na medida de ser capaz de deformar, desconstruir dialeticamente formas já construídas, relembrar através da memória aquilo que foi destruído.
Este fragmento sintetiza todo o deslocamento entre aquilo que está diante de nós e não está, elegia ao não-lugar como espaço de recolhimento ambíguo, entre dois silêncios, o real e seu duplo, o lugar e a utopia.
Walter de Queiroz Guerreiro, M.A.
Membro da Associação Brasileira e Internacional
de Críticos de Arte (ABCA/AICA).
No processo da erosão controlado pela ação do homem, a que estamos habituados no dia-a-dia de uma cidade, decorrentes de uma ação contínua de aplainamentos, rasgos e recortes visuais do espaço, raramente detém nosso olhar no material menos nobre rejeitado nessa empreitada, o barro, e de onde ele provém. Lidar com a cidade é lidar com uma complexidade infinita de formas em contínuo ajuste, cuja coerência somente se demonstra por uma escolha discriminada, a partir da própria vida.
Este o Leitmotiv subjacente à obra de Ricardo Kolb, que a atual intervenção proposta na antiga Cervejaria Antártica de Joinville, futuro Museu de Arte Contemporânea Schwanke, terminou revelando, e por ele apropriadamente nomeada “Matéria Básica-Barrancos”.
Diante do desafio de criar uma obra de arte a instaurando como intervenção, que pressupõe coerência com o espaço existente e ao mesmo tempo provocar um estranhamento, conseguiu dar prosseguimento a um olhar arbitrário em sua essência, premissa básica na valorização e nascimento de uma forma artística.
Entretanto, que invenção seria possível que alterasse o espaço, criando uma descontinuidade no fluxo narrativo do conhecimento consagrado pelo hábito? É o surgimento do não-lugar, na própria etimologia do U topos, a utopia na função de convivência entre o real e o utópico, nas palavras do psicanalista Edson Luiz André de Souza como um “desassossego do presente acossado pela responsabilidade do amanhã”, uma simples insatisfação do presente e desejo de transposição.
Como obra esta intervenção cria um paradoxo com o site-especific, já que ao buscarmos as especificidades de um lugar estamos contrariando a homogeneização do mundo, e quando instalamos objetos em um espaço existente não são as formas criadas, mas o lugar que define as formas. Cristina Freire coloca, aliás, claramente, que hoje não são mais os objetos que se instalam no espaço, mas, o contrário, é o lugar que define as coisas.
Kolb propôs esse estranhamento ao deslocar os barrancos como não-lugar, aquela experiência de não sabermos o que está diante de nós e o que não está, se o espaço em que nos situamos existe na realidade material ou psíquica.
Este processo de duplicação do real na filosofia tem sua estrutura fundamental no discurso metafísico desde Platão, considerando-se que o real imediato, aquele que consideramos como tal, só pode ser compreendido quando considerado como expressão de um outro real supra-sensível, ou seja, como idéia. Seguindo esse raciocínio a essência do objeto não poderá se repetir jamais, sendo impossível sua reconstituição quer temporal, quer espacial, uma vez que não se pode duplicar uma realidade aparente.
A partir de Hegel, porém, o interior (ou suprassensível em termos metafísicos) surge como fenômeno em sua essência, elevando-se o sensível ao inteligível. O duplo então não será mais uma réplica imediata do fenômeno, passa a ser manifestação de sua essência, que modernamente Lacan irá considerar não outro real, mas um significante, aquilo que buscamos em outro lugar como símbolo de uma ausência. Fará então sentido, em termos de arte, considerarmos a duplicação não como uma fuga da realidade do aqui para outro espaço, mas, pelo contrário, o mecanismo de convergência de outro lugar para aqui, a transposição de um elemento como soma de todos os elementos, de uma realidade própria como série infinita de realidades condensada no instante.
O não-lugar instaura-se na obra de Kolb como soma de todos os instantes de convergência de seu olhar sobre estruturas, na maioria artificiais, fruto da ação mecânica da mão humana sobre a paisagem. Surgem assim taludes como clivagens do solo, ora seccionando o ângulo reto, ora formando íngremes paredes escarpadas, nas outrora suaves ondulações da paisagem local. É uma experiência estética que Dufrenne situa como um instante de origem, em que o homem confundido inteiramente com as coisas, experimenta a conformação coetânea ser-mundo, reconduzindo o pensamento à sua origem, e ao procurar acordo com o mundo reconcilia-se consigo mesmo. Esse processo psicológico foi definido por Freud como “sucessão de um jogo audacioso da fantasia e de uma implacável crítica em nome da realidade”.
Neste percurso pela criação de um não-lugar, Kolb aparece como fascinado pela matéria básica, uma massa ideal criada pelo barro, síntese da maleabilidade da forma e ao mesmo tempo da resistência, em perfeito equilíbrio.
Sua substância é a terra, elemento primeiro da natureza, que desponta infinitamente ao olhar circunvagante, na topologia dos relevos. Bachelard, em seus ensaios sobre a imaginação das forças, é o primeiro a apontar a dificuldade de evocar o peso psíquico das imagens terrestres. Aqui, particularmente, parece-me que o melhor modelo aplicável é o desenvolvido por Didi-Huberman. Diz ele que uma forma será primeiramente apreendida em sua fatura, aqui significando textura e materialidade, depois pela singularidade do material e seu significado. Para compreendermos a forma deve-se então compreender o caráter imanente dessa unidade da matéria, depois o reconhecimento da forma em sua organicidade.
Vejamos o caso dos taludes, apresenta inicialmente uma fatura própria, uma textura única, resultante do deslizamento natural ou do corte provocado, tem superfície contínua, lisa, desnuda, regular, e sua matéria essencial é a terra. Contudo, o corte introduzido nessa matéria e que o forma, revela sua organicidade, se na superfície horizontal aparenta ser liso, dependendo da quantidade de água absorvida impossibilitando individualizar os minúsculos grãos, quando observado no biselamento que caracteriza o talude mostra-nos uma fenomenologia própria. O peso introduzido pela gravidade aparece nas camadas sedimentadas, alternadas como anéis de crescimentos vegetais, extratos de material mais fino aparecem compactados, recalcados na sucessão de camadas apontando para tempos materiais diversos.
Se essa é a origem, pensemos na intervenção. O não-lugar criado pelo artista é um questionamento sobre a realidade, do aceitamento sem reservas do posicionamento de coisas no espaço, não se tratando de uma negação, mas da possibilidade de existência em outro lugar. Trataria-se, portanto da aparência de uma ilusão e como Clément Rosset bem diz, em sua forma mais corrente de afastamento do real, não como recusa da percepção, mas como deslocamento para outro lugar. Cria-se assim o duplo, como ilusão metafísica paradoxal de ser ao mesmo tempo ela própria e a outra, o não-lugar e o lugar.
Ao deslocar os taludes para o novo espaço o artista cria metáforas, aludindo à essência das formas e ao que Didi-Huberman chamou de “fenômenos de obscurecimento”, visibilidades singularmente transformadas. Dessa maneira, já ao adentrarmos na antiga fábrica nos deparamos com quatro grandes telas inclinadas em 45° e apoiadas nas paredes, pinturas feitas com terra que sugerem nos tons intercalados os extratos dos taludes, e pela própria disposição à transposição do olhar. Surgem aí os barrancos, irrompendo o cimento, apoiando-se nas colunas de alvenaria existentes, ou criando barreiras entre elas. Um olhar mais atento irá gerar estranhamento, esses barrancos apóiam-se ou as colunas nascem dentro deles como transformação da matéria, uma vez que na base a terra parcialmente inclina-se, fazendo surgir o artefato humano. As superfícies de topo aparecem também onduladas, alisadas como barro primitivo, deslizantes, quase sensuais ao toque, orgânicas, e no contraste entre o intocado e a lateral exibindo o corte do talude. O próprio corte ora se apresenta regular, alisado como fatia da crosta terrestre, ora como entre as colunas desbarrancando, indicando não se tratar de um muro transposto, mas algo de caráter orgânico, que não se manteve pela erosão natural.
Junto a esses taludes “naturais” a criação vai além, um retângulo perfeitamente regular e plano mostra marcas de pequenos retângulos como sinais de futuros cortes, e ao lado blocos pequenos semelhantes a tijolos de taipa, a forma mais antiga de invenção humana na construção de habitações. Igualmente, em destaque, isolado como escultura, um pequeno grupo de blocos empilhados aponta para essa nova função da forma, que é formadora na medida de ser capaz de deformar, desconstruir dialeticamente formas já construídas, relembrar através da memória aquilo que foi destruído.
Este fragmento sintetiza todo o deslocamento entre aquilo que está diante de nós e não está, elegia ao não-lugar como espaço de recolhimento ambíguo, entre dois silêncios, o real e seu duplo, o lugar e a utopia.
Walter de Queiroz Guerreiro, M.A.
Membro da Associação Brasileira e Internacional
de Críticos de Arte (ABCA/AICA).