Aos 400 anos de seu nascimento seus autorretratos revelam o artista afinado com seu tempo e consigo mesmo
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Desde a antiguidade clássica autores têm se debruçado sobre o desejo de preservar os traços físicos de outrem e os de si mesmo, através do autorretrato. Plínio o Velho, Vasari, Alberti, Filóstrato, e Ovídio questionaram essa necessidade de evocar a própria imagem, relembrando o mito de Narciso, que modernamente Freud irá interpretar. Ovídio, no célebre monólogo de Narciso, fala: “estou seduzido, vejo, mas o que vejo e me seduz, não posso pegar...” Reside aí o fundamento do narcisismo, é ele o princípio de uma simbiose do indivíduo com a própria representação, que só pode ser separada se a polaridade eu-tu do espelho se transformar em ela, a obra pictórica com a vida própria.
O inicio da Renascença introduziu com caráter permanente a tradição da pintura de retratos no Ocidente e isso, juntamente com a mudança da posição social do artista no norte europeu levam Albrecht Dürer (1471-1528), já aos treze anos ter ambições pessoais suficientes para criar um autorretrato desenhado com ponta de prata. Pintará outros autorretratos a óleo, inclusive com cabelos soltos numa vista frontal visto pelos críticos como imitação de Cristo, e convém não esquecermos que ele se via como um demiurgo. Nada, porém pode ser comparável à fixação de Rembrandt Van Rijn (1606-1669) pelos autorretratos, já que desde 1630 até sua morte criou uma vasta galeria, com cerca de noventa, únicos na história da arte. O retrato, por sua própria natureza, é o registro de características particulares de como um ser humano é visto por outro, carregado de sinais psicológicos determinantes do caráter. O que teria conduzido Rembrandt a produzir tantos autorretratos, a vontade de se conhecer, ou de se representar como ator e personagem da história humana? Sua vida inteira é um estudo da própria fisionomia, na tentativa de representar as mudanças fisionômicas sob pressões físicas e psicológicas como um diário da própria existência. No século XVII a vontade de autoconhecimento era vista sob prisma religioso, e Rembrandt entrou em contato com religiões e seitas diversas, desde a sua própria (calvinista), até aproximações com a comunidade judaica de Amsterdã, igreja Menonita, Socinianos e Anabatistas, encontrando nelas um fundo de controle emocional e sabedoria ética. Erraríamos se atribuirmos apenas é introspecção religiosa esse estudo do próprio rosto, na verdade Rembrandt estava influenciado por teorias artísticas então em desenvolvimento, a doutrina das expressões emocionais, por exemplo, de Charles Le Brun (1619-1690) diretor da Académie Royale. A face era então vista como centro focal da personalidade com status simbólico, representando todo o sentimento humano. Para Rembrandt o importante não era a revelação do íntimo do ser humano, mas a capacidade de reproduzir a ampla gama dos estados emocionais, e para isso nada melhor que representá-los através de poses e gestos, como um ator dramático atuando para si mesmo. Talvez resida aí a explicação de uma frase enigmática, em que procura passar sua visão da arte: “tento produzir o maior e mais natural movimento”. Esses contínuos ensaios, em que Rembrandt se traveste de outro personagem, corresponderia ao aprofundamento de seus anos de aprendizado com o pintor histórico Pieter Lastman, marcante por um estilo teatral, mas a quem faltava o lado humano e emocional que iria caracterizar seu aluno.
Seus primeiros autorretratos, gravuras em metal de 1630, exploram sentimentos levados ao extremo: desafio, espanto, medo, e numa delas, talvez o primeiro, chora e arreganha os dentes como um animal acuado. Evidente ser possível interpretar psicologicamente essa variedade de poses, algumas revelando a frustração de um artista que ambicionava ascensão social e reconhecimento por seus colegas, ora tomado por anseios megalomaníacos, ora em depressão nos períodos críticos de sua vida, porém não esqueçamos também que esses autorretratos são instrumentos refinados de um artista integrado com seu tempo, buscando acima de tudo, no realismo, traçar o retrato do homem. Os autorretratos formam assim uma autobiografia desde a juventude até a morte, como evolução artística e pessoal. Se no autorretrato de 1640, Rembrandt repete a pose do “Ariosto” de Tiziano, o braço apoiado no parapeito e a figura olhando de lado, consciente de seu papel de gentil homem burguês e respeitado, no seu ultimo autorretrato de 1669, como “Zeuxis” expressa toda a vulnerabilidade da velhice, figura frágil que ri de si mesma. Esta obra, que poderia ter enveredado pela pintura histórica ou mitológica, entretanto não a fez por opção, preferindo retratar a realidade, além da beleza e fealdade. Em “Zeuxis” ele se vê como no episódio relatado sobre o pintor grego Zeuxis, que pôs fim à própria vida sufocado pela risada, ao retratar uma velha mulher encarquilhada. Em outro de seus últimos autorretratos, este de 1661, evoca um episódio contado por Plínio, o Velho: Apeles, o maior pintor grego visita seu mestre Protógenes, e não o encontrando deixa um recado na parede, um círculo perfeito à mão livre afirmando: eu estive aqui. Na mensagem de Rembrandt ele posa, e atrás de si dois semicírculos dão o recado – ele é o sucessor de Apeles, está no centro de duas forças opostas, o lugar onde se concentra a energia.
A fim de assumir diferentes papéis, Rembrandt reúne em seu estúdio grande variedade de vestimentas, armas e armaduras, jóias e adereços, que irão servir a si mesmo e a seus alunos, como grande guarda-roupa teatral. Dessa maneira, como artista realista que é se traveste de cavalheiro da nobreza com colares de honra e capas debruadas de peles, com turbante oriental como sultão, simples burguês com sua boina, oficial das milícias, ou simples pedinte com roupas esfarrapadas. Consegue assim saltar de uma classe social para outra, interpretando pela observação continua as expressões individuais características de uma nova realidade criada pela revolução burguesa na Holanda, marcada por estruturas sociais que permitem flexibilidade, permeabilidade e dinamismo. É essa adaptação social que ele nos mostra quando se retrata como oficial de infantaria, que naquela época eram proprietários das unidades que comandavam. O que o distingue de um civil é apenas um gorjal de aço, eventualmente um colete de couro e a echarpe com as cores da companhia, fora isso apenas um chapéu emplumado e certa galhardia na atitude teatral, de um heroísmo que não exerciam.
Vemos assim num período de quase quarenta anos o artista se autorretratar sob prismas diversos: de início experimentando expressões faciais variadas, tentando expressar as emoções humanas e seus equivalentes fisionômicos como caretas, passando depois a cenas posadas e gestos convencionais dos personagens interpretados ao retratar a realidade de sua época, finalmente voltando ás interpretações fisionômicas nos últimos anos se sua vida, agora acrescidos de uma mise-em-scène psicológica – ele se auto-retrata e faz uma avaliação de sua própria existência.
Não fugiu da realidade nem glamorizou a figura humana e a si mesmo como em um espelho, experimentou a dramatis personae, personagem única de um drama vivido, encenou um teatro barroco na iluminação contrastada de luz e sombra, gerando no contorno difuso o movimento pictórico que tanto desejava. Seus autorretratos constituem-se assim no triunfo do eu na miragem do espelho, domínio sobre si-mesmo, e por extensão do mundo. 
 
 
 
 
Walter de Queiroz Guerreiro
Historiógrafo e Crítico de Arte (ABCA/AICA)