FRINÉIA, MULHER - OBJETO ?
Antônio Parreiras (RJ 1860–1937), pintor de paisagens, gênero e história, foi um dos mais versáteis profissionais da pintura brasileira na virada do século 19, com obra vasta e eclética, acusado de academismo e, no entanto renovador em todos os temas de-senvolvidos. A crítica o rotulava como impressionista, mais próximo talvez dos macchiai-oli italianos, porém tendo desenvolvido linguagem plástica própria. A pintura do nu fe-minino era então considerada “prova de bravura”, e as por ele executadas foram bem recebidas na Europa, pelo clima erótico nas figuras lânguidas e opulentas. O toque pes-soal de Parreiras foi no colorido claro, muito luminoso, na liberdade da pincelada densa como se o corpo fosse paisagem, livre da rigidez do modelo no atelier. Os títulos ilustram sua visão feminina: Danae, Perversa, Flor brasileira, Nonchalance, Frinéia.
Phrynea foi executada em 1909, participando com destaque no Salão de Belas Artes de Paris de 1910, exposta no Grand Palais e sendo adquirida pelo historiador e di-plomata Manuel de Oliveira Lima de quem o artista foi amigo, como também o foi do historiador Rocha Pombo; em 1911 graças a ela distingue Parreiras com o título de dele-gado da Societé Nationale des Beaux Arts. Obra provocante mesmo em sua época, tanto na pose quanto nos detalhes, nua, porém calçada com sandálias amarradas por fitas en-trecruzadas nas pernas, e um cinto logo abaixo dos seios símbolo na antiguidade grega do corpo da mulher consagrado a Afrodite, desenfreava a imaginação erótica no simbo-lismo sexual. Com a morte de Oliveira Lima em 1928 sua viúva cumpre o testamento doando vasta biblioteca e obras de arte para The Catholic University of America, com uma exceção óbvia: Frinéia, encaminhada ao National Press Club - NPC em Washing-ton. Clube de jornalistas estritamente masculino ali permanecerá no salão principal até 1982 quando são admitidas mulheres jornalistas, a obra é então considerada inconveni-ente pela hipocrisia e puritanismo endêmicos, condenando-a ao ostracismo. É recolhida aos depósitos, e em 1998 submetida à votação da Diretoria definitivamente exclusa da coleção da instituição, por nove votos contra um. O motivo da cassação da obra: trata-se de obra politicamente incorreta, ars non grata, símbolo de época em que as mulheres não podiam pertencer aos quadros sociais, e em que Frinéia seria uma outsider, portanto uma mulher de costumes duvidosos.
Diante de tamanho absurdo, do julgamento a posteriori do comportamento de uma personagem histórica, resta o espanto pela ingenuidade ou pelo desconhecimento do passado, ficando a indagação de se o júri sabia qual o papel da mulher na sociedade da época, e de quem foi Frinéia.
Na antiga cultura grega a educação estava centralizada no conceito de arete, que nos homens estaria ligada à força, destreza e valentia nas ações, sempre conduzido pela honra. Na mulher a arete própria é a formosura, não apenas como objeto erótico, mas envolta em qualidade de modéstia, moral rígida e governo do lar. Essa posição de reco-lhimento da mulher à esfera doméstica, desde a época de Homero, chega ao apogeu da cultura grega no século de ouro de Péricles, com o enfraquecimento dos laços familiares. Embora seja cada vez maior a participação da esposa nas tarefas educativas, seu direito à cultura torna-se centro de debates. O casamento até então era assunto jurídico e político, pois através dele o Estado conseguia cidadãos legítimos, importando a descendência, a ponto de se adotar filhos para garantir a herança. O divórcio é fácil bastando o repúdio, muitas vezes consentido, e se não acontece com maior freqüência é pela necessidade de devolução do dote. Exigia-se da esposa uma severidade moral, vida simples, moderação nos trajes, ausência nos sacrifícios populares aos deuses locais e nos atos de culto, reco-lhimento ao lar, enfim uma vida monótona, que acaba tornando desgastante a vida em família.
Em contraste as heteras ou hetairas, cujo significado real é o de companheira, voltam-se ao entretenimento e ao convívio masculino, exercendo papel similar ao das gueixas no Japão feudal, e ocupando o papel de mulheres libertas na sociedade. Nas he-teras reunia-se a espiritualidade com a graça feminina e a conversação, que a esposa era incapaz de conduzir. Na organização social as esposas gerariam os filhos legítimos, as heteras seriam para o entretenimento e as escravas para o sexo. A cultura das heteras chega a ponto de Gnatene, famosa cortesã escrever um tratado sobre as regras de polidez à mesa.
As heteras assumem tal importância, que no final do século V a.C. Aristófanes reedita uma lei de Péricles, pela qual só o filho do cidadão e cidadã atenienses tem direito à cidadania. Seu objetivo não é moral, para fomentar casamentos legais, e sim para evitar filhos gerados por heteras serem reconhecidos, levando à desagregação da família.
Frinéa aparece como hetera em meados do séc. IV a.C., originária da Téspia e começa sua vida como vendedora de alcaparras. Figura miúda, mas de extraordinária beleza, torna-se tocadora de flauta, hetera e sacerdotisa de Afrodite. Posa como modelo do pintor Apeles de Cós para a Afrodite Anadiomene (a que surge das águas) pelo cos-tume de submergir nua com os cabelos soltos nos festivais de Poseidon e nos Ritos de Eleusis, o que em si já indicava notável cuidado em se vestir e jamais freqüentar os ba-nhos públicos. Participa do círculo de Sócrates e de Aristófanes que a tem em alta consi-deração, citando num de seus diálogos que a hetera depende de sua amabilidade, en-quanto a esposa apoia-se em seus direitos, daí ser preferível a primeira a ultima. Frinéia torna-se amante do escultor Praxiteles, servindo de modelo à Afrodite de Cnidos, a pri-meira escultura sensual, e a mais importante da antigüidade. Nela Praxiteles pretende dar ao observador a impressão de que a deusa foi surpreendida no banho e com a afetação e modéstia cobre o sexo, enquanto um leve sorriso cúmplice malicia o semblante.
Acusada de blasfêmia, que era crime capital, é levada ao Areópago e defendida por Hiperídes, que temendo perder a causa, rasga-lhe a veste desnudando o seio. O artifí-cio causa temor diante da beleza da sacerdotisa de Afrodite, lembrando-se que em Delfos ao lado de Eros e Afrodite existia a escultura de Frinéa em ouro, e é perdoada.
Na maledicência da época Frinéia era apelidada o “funil,” porque através dela se escoa-riam as fortunas, e de que ela teria proposto reconstruir as muralhas de Tebas, desde que se colocasse a placa “destruídas por Alexandre e restauradas por Frinéia”.
Durante o neoclassicismo, com o interesse renovado pela Antigüidade, Frinéia volta a interessar pintores tão diversos como Jean-Léon Gérôme que reproduz a cena do “Julgamento no Areópago” (Museu do Louvre) e Henryk Smieradzki com o “Festival de Poseidon” (Museu de Leningrado). Poetas como Charles Baudelaire e Rainer Maria Ril-ke nela se inspiraram, assim como Gounod compondo dança em um balé.
Diante do perfil da sociedade grega e da atual sociedade americana, pergunta-se até onde irá esse contínuo revisionismo de valores e de integridade moral, obcecada pelo politicamente correto, na vontade de agradar a todas as frações sociais e ao chamado equilíbrio entre os sexos. O movimento de emancipação feminina nos USA chega às rai-as do ridículo ao proibir a Maja desnuda de Goya, como símbolo da mulher-objeto, em salas de educação artística. Baudrillard já assinalou a vitória de Pirro das mulheres ame-ricanas na questão do assédio sexual, e do ressentimento feminino pela liberdade que conduz a uma nova servidão nas relações humanas.
Se a exclusão da obra de Antônio Parreiras do National Press Club foi o receio de incorrer na terceira cláusula da Emenda Helm, em que basta uma obra de arte ser “o-fensiva” a alguém por qualquer motivo que seria o suficiente para perder subvenções fe-derais, ou se a democracia americana está se tornando uma paródia de fim de século, cabe ao julgamento e bom senso dos estranhos ao ninho americano.
O falecimento do julgamento da arte nos USA não implica na concordância com os padrões de comportamento politicamente corretos. Frinéia, objeto do desejo, passados vinte e cinco séculos, continua foco de polêmica na versão de Antônio Parreiras, e de atenção na Afrodite de Cnidos greco-romana, cópia da escultura de Praxiteles inspirada em Frinéia, nas coleções do Museu do Vaticano.
Em 1999 foi cogitada a possibilidade de doá-la ao Brasil para se integrar às cole-ções do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, mas o valor pecuniário falou mais alto, a obra é posta em leilão até ser arrematada em 2006 por colecionador brasilei-ro, voltando enfim ao nosso patrimônio artístico.
Walter de Queiroz Guerreiro
Historiógrafo e Crítico de Arte
Antônio Parreiras (RJ 1860–1937), pintor de paisagens, gênero e história, foi um dos mais versáteis profissionais da pintura brasileira na virada do século 19, com obra vasta e eclética, acusado de academismo e, no entanto renovador em todos os temas de-senvolvidos. A crítica o rotulava como impressionista, mais próximo talvez dos macchiai-oli italianos, porém tendo desenvolvido linguagem plástica própria. A pintura do nu fe-minino era então considerada “prova de bravura”, e as por ele executadas foram bem recebidas na Europa, pelo clima erótico nas figuras lânguidas e opulentas. O toque pes-soal de Parreiras foi no colorido claro, muito luminoso, na liberdade da pincelada densa como se o corpo fosse paisagem, livre da rigidez do modelo no atelier. Os títulos ilustram sua visão feminina: Danae, Perversa, Flor brasileira, Nonchalance, Frinéia.
Phrynea foi executada em 1909, participando com destaque no Salão de Belas Artes de Paris de 1910, exposta no Grand Palais e sendo adquirida pelo historiador e di-plomata Manuel de Oliveira Lima de quem o artista foi amigo, como também o foi do historiador Rocha Pombo; em 1911 graças a ela distingue Parreiras com o título de dele-gado da Societé Nationale des Beaux Arts. Obra provocante mesmo em sua época, tanto na pose quanto nos detalhes, nua, porém calçada com sandálias amarradas por fitas en-trecruzadas nas pernas, e um cinto logo abaixo dos seios símbolo na antiguidade grega do corpo da mulher consagrado a Afrodite, desenfreava a imaginação erótica no simbo-lismo sexual. Com a morte de Oliveira Lima em 1928 sua viúva cumpre o testamento doando vasta biblioteca e obras de arte para The Catholic University of America, com uma exceção óbvia: Frinéia, encaminhada ao National Press Club - NPC em Washing-ton. Clube de jornalistas estritamente masculino ali permanecerá no salão principal até 1982 quando são admitidas mulheres jornalistas, a obra é então considerada inconveni-ente pela hipocrisia e puritanismo endêmicos, condenando-a ao ostracismo. É recolhida aos depósitos, e em 1998 submetida à votação da Diretoria definitivamente exclusa da coleção da instituição, por nove votos contra um. O motivo da cassação da obra: trata-se de obra politicamente incorreta, ars non grata, símbolo de época em que as mulheres não podiam pertencer aos quadros sociais, e em que Frinéia seria uma outsider, portanto uma mulher de costumes duvidosos.
Diante de tamanho absurdo, do julgamento a posteriori do comportamento de uma personagem histórica, resta o espanto pela ingenuidade ou pelo desconhecimento do passado, ficando a indagação de se o júri sabia qual o papel da mulher na sociedade da época, e de quem foi Frinéia.
Na antiga cultura grega a educação estava centralizada no conceito de arete, que nos homens estaria ligada à força, destreza e valentia nas ações, sempre conduzido pela honra. Na mulher a arete própria é a formosura, não apenas como objeto erótico, mas envolta em qualidade de modéstia, moral rígida e governo do lar. Essa posição de reco-lhimento da mulher à esfera doméstica, desde a época de Homero, chega ao apogeu da cultura grega no século de ouro de Péricles, com o enfraquecimento dos laços familiares. Embora seja cada vez maior a participação da esposa nas tarefas educativas, seu direito à cultura torna-se centro de debates. O casamento até então era assunto jurídico e político, pois através dele o Estado conseguia cidadãos legítimos, importando a descendência, a ponto de se adotar filhos para garantir a herança. O divórcio é fácil bastando o repúdio, muitas vezes consentido, e se não acontece com maior freqüência é pela necessidade de devolução do dote. Exigia-se da esposa uma severidade moral, vida simples, moderação nos trajes, ausência nos sacrifícios populares aos deuses locais e nos atos de culto, reco-lhimento ao lar, enfim uma vida monótona, que acaba tornando desgastante a vida em família.
Em contraste as heteras ou hetairas, cujo significado real é o de companheira, voltam-se ao entretenimento e ao convívio masculino, exercendo papel similar ao das gueixas no Japão feudal, e ocupando o papel de mulheres libertas na sociedade. Nas he-teras reunia-se a espiritualidade com a graça feminina e a conversação, que a esposa era incapaz de conduzir. Na organização social as esposas gerariam os filhos legítimos, as heteras seriam para o entretenimento e as escravas para o sexo. A cultura das heteras chega a ponto de Gnatene, famosa cortesã escrever um tratado sobre as regras de polidez à mesa.
As heteras assumem tal importância, que no final do século V a.C. Aristófanes reedita uma lei de Péricles, pela qual só o filho do cidadão e cidadã atenienses tem direito à cidadania. Seu objetivo não é moral, para fomentar casamentos legais, e sim para evitar filhos gerados por heteras serem reconhecidos, levando à desagregação da família.
Frinéa aparece como hetera em meados do séc. IV a.C., originária da Téspia e começa sua vida como vendedora de alcaparras. Figura miúda, mas de extraordinária beleza, torna-se tocadora de flauta, hetera e sacerdotisa de Afrodite. Posa como modelo do pintor Apeles de Cós para a Afrodite Anadiomene (a que surge das águas) pelo cos-tume de submergir nua com os cabelos soltos nos festivais de Poseidon e nos Ritos de Eleusis, o que em si já indicava notável cuidado em se vestir e jamais freqüentar os ba-nhos públicos. Participa do círculo de Sócrates e de Aristófanes que a tem em alta consi-deração, citando num de seus diálogos que a hetera depende de sua amabilidade, en-quanto a esposa apoia-se em seus direitos, daí ser preferível a primeira a ultima. Frinéia torna-se amante do escultor Praxiteles, servindo de modelo à Afrodite de Cnidos, a pri-meira escultura sensual, e a mais importante da antigüidade. Nela Praxiteles pretende dar ao observador a impressão de que a deusa foi surpreendida no banho e com a afetação e modéstia cobre o sexo, enquanto um leve sorriso cúmplice malicia o semblante.
Acusada de blasfêmia, que era crime capital, é levada ao Areópago e defendida por Hiperídes, que temendo perder a causa, rasga-lhe a veste desnudando o seio. O artifí-cio causa temor diante da beleza da sacerdotisa de Afrodite, lembrando-se que em Delfos ao lado de Eros e Afrodite existia a escultura de Frinéa em ouro, e é perdoada.
Na maledicência da época Frinéia era apelidada o “funil,” porque através dela se escoa-riam as fortunas, e de que ela teria proposto reconstruir as muralhas de Tebas, desde que se colocasse a placa “destruídas por Alexandre e restauradas por Frinéia”.
Durante o neoclassicismo, com o interesse renovado pela Antigüidade, Frinéia volta a interessar pintores tão diversos como Jean-Léon Gérôme que reproduz a cena do “Julgamento no Areópago” (Museu do Louvre) e Henryk Smieradzki com o “Festival de Poseidon” (Museu de Leningrado). Poetas como Charles Baudelaire e Rainer Maria Ril-ke nela se inspiraram, assim como Gounod compondo dança em um balé.
Diante do perfil da sociedade grega e da atual sociedade americana, pergunta-se até onde irá esse contínuo revisionismo de valores e de integridade moral, obcecada pelo politicamente correto, na vontade de agradar a todas as frações sociais e ao chamado equilíbrio entre os sexos. O movimento de emancipação feminina nos USA chega às rai-as do ridículo ao proibir a Maja desnuda de Goya, como símbolo da mulher-objeto, em salas de educação artística. Baudrillard já assinalou a vitória de Pirro das mulheres ame-ricanas na questão do assédio sexual, e do ressentimento feminino pela liberdade que conduz a uma nova servidão nas relações humanas.
Se a exclusão da obra de Antônio Parreiras do National Press Club foi o receio de incorrer na terceira cláusula da Emenda Helm, em que basta uma obra de arte ser “o-fensiva” a alguém por qualquer motivo que seria o suficiente para perder subvenções fe-derais, ou se a democracia americana está se tornando uma paródia de fim de século, cabe ao julgamento e bom senso dos estranhos ao ninho americano.
O falecimento do julgamento da arte nos USA não implica na concordância com os padrões de comportamento politicamente corretos. Frinéia, objeto do desejo, passados vinte e cinco séculos, continua foco de polêmica na versão de Antônio Parreiras, e de atenção na Afrodite de Cnidos greco-romana, cópia da escultura de Praxiteles inspirada em Frinéia, nas coleções do Museu do Vaticano.
Em 1999 foi cogitada a possibilidade de doá-la ao Brasil para se integrar às cole-ções do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, mas o valor pecuniário falou mais alto, a obra é posta em leilão até ser arrematada em 2006 por colecionador brasilei-ro, voltando enfim ao nosso patrimônio artístico.
Walter de Queiroz Guerreiro
Historiógrafo e Crítico de Arte