LITERATURA GAÚCHA - DAS ORIGENS AO PARTENON LITERÁRIO (1868) - BREVE CONTRIBUIÇÃO (A PRODUÇÃO LITERÁRIA)
A produção literária
A intervenção contínua do deus Marte nos assuntos internos do Rio Grande do Sul remeteu para bem mais tarde o aparecimento das nossas primeiras letras. O ambiente conturbado pelas guerras de fronteira, pelos valores espartanos, pelos vaivéns da geopolítica internacional, protagonizada por portugueses e espanhóis, foram fatores decisivos para desorganizar qualquer possibilidade do nosso alvorecer literário.
Como exemplo do que acabamos de afirmar, e para que se imagine o quadro desolador da vida mental da Capitania, basta lembrar que em 1820 ainda não funcionava regularmente nenhuma escola pública nestas plagas. Em suma, estávamos pintados para a guerra, tínhamos guerreiros em todos os lares, mas ainda não estávamos preparados para a vida. Nem mesmo o advento da imigração açoriana pôde esboçar qualquer contraponto, pois os casais açorianos não vinham da metrópole, mas de uma ilha sem qualquer tradição literária.
João Pinto da Silva, em História Literária do Rio Grande do Sul, considerando este período embrionário adverso, mas rico de fatos históricos, questiona-se por que tanta singularidade no estabelecimento das fronteiras de uma província não levou seus primeiros versejadores a produzir no corredor do gênero épico. O único aproveitamento temático de nossos caminhos históricos deu-se com o poema O Uruguai, de Basílio da Gama. Talvez até porque retratar temas recentes fosse algo meio doloroso, dada a proximidade de tempo e de protagonistas, nossos primeiros poetas e poetisas escolheram o caminho da evasão. Valeram-se, para tanto, do gênero lírico, como é o caso de Delfina Benigna da Cunha. Outros, como Araújo Porto Alegre, preferiram temas nada provinciais, como é o caso de seu poema Colombo, um relato dos feitos do descobridor da América.
A história de nossas primeiras letras começa quando a poetisa Delfina Benigna da Cunha publica Poesias oferecidas às senhoras rio-grandenses (1834). Coube a esta ceguinha a honra de inaugurar nossa literatura de publicações, com um livro lírico e sentimental, invólucro de suas dores e desditas. Este reconhecimento é usual entre os estudiosos, se bem que hoje haja uma discussão sobre a primazia de Delfina, pois o professor Lothar Hessel a reivindica para Maria Clemência da Silveira Sampaio, autora de Versos Heroicos (1823). Mas há dúvidas sobre seu lugar de nascimento.
Delfina é contemporânea de Pedro Canga, um poeta popular que se aliava aos legalistas contra os farrapos. De seus escritos restaram apenas quatro sonetos. Segundo Guilhermino César, revelam apuro formal e uso adequado do arsenal metafórico dos neoclássicos.
Outra autora presente nesse momento é Ana Eurídice Eufrosina de Barandas, que publicou A Filósofa por Amor, um livro de contos e apólogos. Sua obra apresenta marcada influência da literatura francesa do século XVIII.
Na mesma linha de Delfina Benigna da Cunha aparece a figura de Caldre e Fião, nosso primeiro romancista, autor de A Divina Pastora, romance recém-descoberto, e O Corsário. Caldre e Fião é o primeiro autor que, compondo nos moldes românticos, deixou vazar uma tênue cor local em seus livros.
Após essas iniciativas isoladas de escritores ilhados no descampado cultural do RS, aparece, no início da segunda metade do século XIX, a primeira ação associativa daqueles que buscavam uma finalidade comum num mister tão ainda divorciado dos interesses imediatos dos habitantes da província. Surge em Porto Alegre a revista O Guaíba (1856) e nela vão colaborar João Vespúcio de Abreu, Félix da Cunha e Rita Barém de Melo. A ela seguem-se a revista Arcádia, de Rio Grande, e a Revista do Partenon Literário (1869), a mais importante publicação literária daquele século, capaz de alinhar em suas páginas as mais variadas contribuições temáticas e estéticas dos integrantes da entidade.
Até a ocorrência do Partenon Literário, nossos motivos locais, nossos personagens, nossa psicologia em construção, hábitos e costumes ainda não haviam tido um enfoque maior, senão em casos excepcionais. O lirismo de Delfina, o arcadismo tardio de Araújo Porto Alegre, o "francesismo" deslocado de Eurídice não permitiam supor que um dia um fenômeno conhecido como Regionalismo haveria de se arraigar para sempre em nossa literatura.
O Partenon Literário era mais que uma entidade literária: foi uma revolução cultural. Promoveu atividades teatrais, criou cursos educacionais, organizou bibliotecas, abriu espaço para a participação da mulher, defendeu coerentemente, unindo teoria e ação, a abolição da escravidão. O Partenon foi um polo avançado de civilização na luta contra o obscurantismo que teimava em submeter esta porção do Brasil meridional. Sem o Partenon, nós, os de então, já não seríamos os mesmos. Até críticos de agudizado senso crítico, como Carlos Dante de Moraes, que faz restrições à produção literária desses precursores, não puderam deixar de reconhecer seus méritos na luta pela elevação mental e cultural da província.
Constituiu-se o Partenon no grande estuário da literatura rio-grandense. É nele que vão desembocar afluentes vindos do Arcadismo e do Romantismo. E é igualmente dele que ganharão projeção rios caudatários do Simbolismo, do Parnasianismo e do Regionalismo. Todas as tendências e movimentos literários, de alguma forma, nele se fizeram representar. Vicejou no Partenon uma linha mais universalista - Romantismo, Simbolismo, Parnasianismo - e a linha de feição regionalista. Nomes como os de Caldre e Fião, fundador; de Apolinário Porto Alegre, seu principal animador; e os de Lobo da Costa, Damasceno Vieira, entre outros, tiveram no Partenon, no todo ou em parte, a caixa de ressonância de suas atividades literárias.
Que o Partenon refletisse, mesmo que difusamente, as estéticas pertencentes ao cabedal literário do país não é um fato de causar estranheza. Nada mais natural do que ouvirmos por aqui ecos do Romantismo, do Simbolismo ou do Parnasianismo. Contudo, a nota peculiar que se pode atribuir a ele é o Regionalismo, uma exaltação em prosa e verso do tipo social convencionalmente chamado de gaúcho, que encontrou no Partenon o ambiente cálido para sua mitificação de "monarca das coxilhas". Isto se dá, principalmente, na ficção de Apolinário Porto Alegre e nas poesias de Bernardo Taveira Júnior e Múcio Teixeira.
Se o Partenon é o ponto alto desta idealização, todo o Regionalismo posterior é a desconstituição do mito, que nasce altivo e forte mas é, em seguida, ferido mortalmente. Na sequência, escritores como Luís de Araújo Filho (LAF), Alcides Maya e Simões Lopes Neto farão o contraponto. Sobre essa reação, espontânea, escreveu Regina Zilberman em Roteiro de uma literatura singular:
"A desmistificação, contudo, não tardou, resultante, de certa maneira, das mudanças na estrutura tradicional da economia rio-grandense, associada à pecuária e à vida no campo. (...) Ela [a transformação] transparece, no início do século, nas obras de Alcides Maya, João Simões Lopes Neto, Amaro Juvenal, um pouco mais tarde Darcy Azambuja, que constatam, com perplexidade, frequentemente com desgosto, a nova situação. (...)"
Assinalar essa reação, presente nas obras de regionalistas posteriores ao Partenon pode servir para desfazer equívocos frequentes cometidos por alguns que cultuam o interesse na literatura rio-grandense. Muitas vezes, atribuem o atestado de óbito do mito do gaúcho ao Romance de 30, representado, entre outras obras, pela "Trilogia do gaúcho a pé", de Cyro Martins. É deveras importante a noção de "processo". A literatura de Cyro Martins é, na verdade, mais um momento nessa trajetória crítica, ainda que seja seu coroamento, dados os pressupostos teóricos e estéticos que nortearam o movimento a que obra e escritor estão indissoluvelmente ligados.
A intervenção contínua do deus Marte nos assuntos internos do Rio Grande do Sul remeteu para bem mais tarde o aparecimento das nossas primeiras letras. O ambiente conturbado pelas guerras de fronteira, pelos valores espartanos, pelos vaivéns da geopolítica internacional, protagonizada por portugueses e espanhóis, foram fatores decisivos para desorganizar qualquer possibilidade do nosso alvorecer literário.
Como exemplo do que acabamos de afirmar, e para que se imagine o quadro desolador da vida mental da Capitania, basta lembrar que em 1820 ainda não funcionava regularmente nenhuma escola pública nestas plagas. Em suma, estávamos pintados para a guerra, tínhamos guerreiros em todos os lares, mas ainda não estávamos preparados para a vida. Nem mesmo o advento da imigração açoriana pôde esboçar qualquer contraponto, pois os casais açorianos não vinham da metrópole, mas de uma ilha sem qualquer tradição literária.
João Pinto da Silva, em História Literária do Rio Grande do Sul, considerando este período embrionário adverso, mas rico de fatos históricos, questiona-se por que tanta singularidade no estabelecimento das fronteiras de uma província não levou seus primeiros versejadores a produzir no corredor do gênero épico. O único aproveitamento temático de nossos caminhos históricos deu-se com o poema O Uruguai, de Basílio da Gama. Talvez até porque retratar temas recentes fosse algo meio doloroso, dada a proximidade de tempo e de protagonistas, nossos primeiros poetas e poetisas escolheram o caminho da evasão. Valeram-se, para tanto, do gênero lírico, como é o caso de Delfina Benigna da Cunha. Outros, como Araújo Porto Alegre, preferiram temas nada provinciais, como é o caso de seu poema Colombo, um relato dos feitos do descobridor da América.
A história de nossas primeiras letras começa quando a poetisa Delfina Benigna da Cunha publica Poesias oferecidas às senhoras rio-grandenses (1834). Coube a esta ceguinha a honra de inaugurar nossa literatura de publicações, com um livro lírico e sentimental, invólucro de suas dores e desditas. Este reconhecimento é usual entre os estudiosos, se bem que hoje haja uma discussão sobre a primazia de Delfina, pois o professor Lothar Hessel a reivindica para Maria Clemência da Silveira Sampaio, autora de Versos Heroicos (1823). Mas há dúvidas sobre seu lugar de nascimento.
Delfina é contemporânea de Pedro Canga, um poeta popular que se aliava aos legalistas contra os farrapos. De seus escritos restaram apenas quatro sonetos. Segundo Guilhermino César, revelam apuro formal e uso adequado do arsenal metafórico dos neoclássicos.
Outra autora presente nesse momento é Ana Eurídice Eufrosina de Barandas, que publicou A Filósofa por Amor, um livro de contos e apólogos. Sua obra apresenta marcada influência da literatura francesa do século XVIII.
Na mesma linha de Delfina Benigna da Cunha aparece a figura de Caldre e Fião, nosso primeiro romancista, autor de A Divina Pastora, romance recém-descoberto, e O Corsário. Caldre e Fião é o primeiro autor que, compondo nos moldes românticos, deixou vazar uma tênue cor local em seus livros.
Após essas iniciativas isoladas de escritores ilhados no descampado cultural do RS, aparece, no início da segunda metade do século XIX, a primeira ação associativa daqueles que buscavam uma finalidade comum num mister tão ainda divorciado dos interesses imediatos dos habitantes da província. Surge em Porto Alegre a revista O Guaíba (1856) e nela vão colaborar João Vespúcio de Abreu, Félix da Cunha e Rita Barém de Melo. A ela seguem-se a revista Arcádia, de Rio Grande, e a Revista do Partenon Literário (1869), a mais importante publicação literária daquele século, capaz de alinhar em suas páginas as mais variadas contribuições temáticas e estéticas dos integrantes da entidade.
Até a ocorrência do Partenon Literário, nossos motivos locais, nossos personagens, nossa psicologia em construção, hábitos e costumes ainda não haviam tido um enfoque maior, senão em casos excepcionais. O lirismo de Delfina, o arcadismo tardio de Araújo Porto Alegre, o "francesismo" deslocado de Eurídice não permitiam supor que um dia um fenômeno conhecido como Regionalismo haveria de se arraigar para sempre em nossa literatura.
O Partenon Literário era mais que uma entidade literária: foi uma revolução cultural. Promoveu atividades teatrais, criou cursos educacionais, organizou bibliotecas, abriu espaço para a participação da mulher, defendeu coerentemente, unindo teoria e ação, a abolição da escravidão. O Partenon foi um polo avançado de civilização na luta contra o obscurantismo que teimava em submeter esta porção do Brasil meridional. Sem o Partenon, nós, os de então, já não seríamos os mesmos. Até críticos de agudizado senso crítico, como Carlos Dante de Moraes, que faz restrições à produção literária desses precursores, não puderam deixar de reconhecer seus méritos na luta pela elevação mental e cultural da província.
Constituiu-se o Partenon no grande estuário da literatura rio-grandense. É nele que vão desembocar afluentes vindos do Arcadismo e do Romantismo. E é igualmente dele que ganharão projeção rios caudatários do Simbolismo, do Parnasianismo e do Regionalismo. Todas as tendências e movimentos literários, de alguma forma, nele se fizeram representar. Vicejou no Partenon uma linha mais universalista - Romantismo, Simbolismo, Parnasianismo - e a linha de feição regionalista. Nomes como os de Caldre e Fião, fundador; de Apolinário Porto Alegre, seu principal animador; e os de Lobo da Costa, Damasceno Vieira, entre outros, tiveram no Partenon, no todo ou em parte, a caixa de ressonância de suas atividades literárias.
Que o Partenon refletisse, mesmo que difusamente, as estéticas pertencentes ao cabedal literário do país não é um fato de causar estranheza. Nada mais natural do que ouvirmos por aqui ecos do Romantismo, do Simbolismo ou do Parnasianismo. Contudo, a nota peculiar que se pode atribuir a ele é o Regionalismo, uma exaltação em prosa e verso do tipo social convencionalmente chamado de gaúcho, que encontrou no Partenon o ambiente cálido para sua mitificação de "monarca das coxilhas". Isto se dá, principalmente, na ficção de Apolinário Porto Alegre e nas poesias de Bernardo Taveira Júnior e Múcio Teixeira.
Se o Partenon é o ponto alto desta idealização, todo o Regionalismo posterior é a desconstituição do mito, que nasce altivo e forte mas é, em seguida, ferido mortalmente. Na sequência, escritores como Luís de Araújo Filho (LAF), Alcides Maya e Simões Lopes Neto farão o contraponto. Sobre essa reação, espontânea, escreveu Regina Zilberman em Roteiro de uma literatura singular:
"A desmistificação, contudo, não tardou, resultante, de certa maneira, das mudanças na estrutura tradicional da economia rio-grandense, associada à pecuária e à vida no campo. (...) Ela [a transformação] transparece, no início do século, nas obras de Alcides Maya, João Simões Lopes Neto, Amaro Juvenal, um pouco mais tarde Darcy Azambuja, que constatam, com perplexidade, frequentemente com desgosto, a nova situação. (...)"
Assinalar essa reação, presente nas obras de regionalistas posteriores ao Partenon pode servir para desfazer equívocos frequentes cometidos por alguns que cultuam o interesse na literatura rio-grandense. Muitas vezes, atribuem o atestado de óbito do mito do gaúcho ao Romance de 30, representado, entre outras obras, pela "Trilogia do gaúcho a pé", de Cyro Martins. É deveras importante a noção de "processo". A literatura de Cyro Martins é, na verdade, mais um momento nessa trajetória crítica, ainda que seja seu coroamento, dados os pressupostos teóricos e estéticos que nortearam o movimento a que obra e escritor estão indissoluvelmente ligados.