LITERATURA GAÚCHA - DAS ORIGENS AO PARTENON LITERÁRIO (1868) - BREVE CONTRIBUIÇÃO (ESTUDO DOS AUTORES)

Estudo dos autores

     Delfina Benigna da Cunha (1791-1857) - Cega desde os 20 meses de idade e nossa primeira poetisa, Delfina Benigna da Cunha era pensionista do Governo Imperial, o que deve tê-la influenciado no extremoso zelo que dedicava ao imperador. Já no início da nossa literatura estavam dadas as ligações perigosas entre arte e poder, comprometendo a independência do escritor, problema sempre atual em nossa literatura. Mas poderá alguém condenar essa mulher pobre e desprovida de recursos?
     A poesia de Delfina é marcadamente confessional, assumindo tons lamurientos e de autopiedade. Chega, por vezes, a ser irritante seu tom de súplica e denotador da inexistência de qualquer estima para consigo mesma. Seu lirismo é de uma completa evasão e de refúgio em suas próprias dores, o que levou Guilhermino César a defini-la como "flor bizarra de um acampamento de guerra".
     Mas se há toda uma produção poética de Delfina que, em termos gerais, tende a ter mais valor histórico que literário, há, também, momentos de raro lirismo bem-sucedido, como o deste soneto, frequentemente destacado por todos os que se debruçam sobre sua obra:

 Vinte vezes a lua prateada
 Inteiro rosto seu mostrado havia,
 Quando terrível mal que já sofria,
 Me tornou para sempre desgraçada.

 De ver o sol e o céu sendo privada,
 Cresceu a par de mim a mágoa ímpia;
 Desde então a mortal melancolia
 Se viu em meu semblante debuxada.

 Sensível coração deu-me a natura,
 E a fortuna, cruel sempre comigo,
 Me negou toda a sorte de ventura.

 Nem sequer um prazer breve consigo;
 Só para terminar minha amargura
 Me aguarda o triste, sepulcral jazigo.

 
     Do seu ponto de vista desprovido de isenção, já que vivia às expensas do Império, Delfina ainda atacaria em versos a figura de Bento Gonçalves, então líder dos farroupilhas em armas contra o centro, fazendo um contraponto, não menos tendencioso, à sua mitificação.
     Araújo Porto Alegre (1806-1879) - Teatrólogo, arquiteto, historiador, pintor e poeta, Manoel de Araújo Porto Alegre foi uma das figuras mais fulgurantes das letras brasileiras e rio-grandenses. Para dar expansão à sua sede insaciável de vida e de arte, morou em Porto Alegre, Rio de Janeiro e Paris, onde foi discípulo do famoso pintor Debret. Homem de gênio, foi, junto com Gonçalves de Magalhães, introdutor do Romantismo no Brasil. Só isto bastaria para imortalizar seu nome. Mas ele queria mais.
     A crítica tem sido muito severa com Porto Alegre, reconhecendo seu papel de vanguarda no Romantismo, eventuais momentos de brilho em seus poemas, mas negando-lhe um maior valor literário. Assim se posicionaram estudiosos como Alfredo Bosi e José Guilherme Merquior. Igualmente Guilhermino César lhe fez severas restrições, pesados débitos no atacado, que procurou compensar com alguns créditos no varejo.
     Mas esse quadro adverso a Porto Alegre tem uma base real. Sua poesia em obras como "As Brasilianas" (1863) é rebuscada, artificial demais. Nada lhe infunde sopro de vida, paixão vital. É produto do predomínio da razão sobre a emoção.
     De tais defeitos apenas secundariamente vai padecer o poema Colombo, escrito em 1866. Formado por um prólogo e quarenta cantos, vai alternar momentos quase inacessíveis ao leitor comum com momentos de intenso conteúdo dramático e de beleza plástica. Já favorecendo um clima de revisão favorável à obra de Porto Alegre, embora destacando a intempestividade do poema, assim escreveu o exigente crítico José Veríssimo, em História da Literatura Brasileira:
     "Por mais difícil que se nos antolhe a leitura deste extensíssimo poema, merece ele que vençamos a nossa hodierna repugnância de ler grandes epopeias e o leiamos. Há nele uma realmente assombrosa imaginação e fecundidade de invenção, insignes dons de expressão verbal, como raro se achará outro exemplo da poesia da nossa língua, magnificências de descrições verdadeiramente primorosas, revelando no poeta o artista plástico um nobre intuito quase sempre felizmente realizado de pensamento, correção quase impecável de versificação, vernaculidade estreme, engenhosas audácias de criação e de expressão, e outras qualidades que o fazem uma das mais excelentes tentativas para reviver na nossa língua, se não nas literaturas contemporâneas, essa espécie de poemas. (...)"
     E nesse julgamento ao longo da história, quando a memória de um homem e sua obra ficam à mercê do permanente e instável senso crítico dos que lhe sucedem, parece que a balança do tempo vai ficando um pouco menos desfavorável a Porto Alegre. O crítico e professor Donaldo Schüler, em A poesia no Rio Grande do Sul, destaca o pioneirismo do poeta ao denunciar o massacre dos povos ameríndios, com versos antológicos e carregados de conteúdo dramático:
  Qual ingente trovão soa um gemido
  De quatorze milhões de desgraçados  
  Perdendo a pátria, a liberdade, e a vida!
  E vê nesse deserto, envolto em fumo,
  Sobre um monte de corpos dessangrados,
  O estandarte da Ibéria triunfante,
  Qual cruz funérea memorando um crime!

  ....................................................................
          Donaldo Schüler lembra ainda a marcada diferença entre Araújo Porto Alegre e o mineiro Basílio da Gama. Este, ao escrever O Uraguai, tematizando os Sete Povos das Missões, lança honrarias ao conquistador. Porto Alegre, por sua vez, mantém uma independência crítica notável em todos os sentidos.
Manoel de Araújo Porto Alegre foi um homem de seu tempo e do tempo dos outros que viriam. Brasileiro e universal, foi um cidadão do mundo. Sua inteligência poderosa nem sempre teve as condições mais favoráveis para acompanhar as angústias e os anseios do criador. Entretanto, em tudo aquilo que Porto Alegre principiou a envolver-se, e foram tantas as áreas que reclamaram sua atenção, restou o indício de um homem em franca expansão de sua genialidade. Se um homem é sua circunstância, como afirma Ortega y Gasset, as limitações do meio a que Porto Alegre esteve sempre submetido lhe haverão de servir como atenuantes no tribunal da história.
     Caldre e Fião (1821-1876) - Médico, jornalista, deputado, romancista e teatrólogo, Caldre e Fião é um nome capital da nossa literatura, sendo o autor do primeiro romance rio-grandense, A Divina Pastora, e fundador e primeiro presidente do Partenon Literário. Morou no Rio de Janeiro, onde exerceu a medicina e envolveu-se com as lutas abolicionistas, sendo alvo de perseguições que o devolveram à terra natal.
     Seu primeiro romance, A Divina Pastora, transformou-se num enigma bibliográfico sem precedentes e desapareceu por 145 anos, sendo apenas recentemente redescoberto e reeditado pela Rede Brasil Sul em 1992. Uma hipótese da causa de tal desaparecimento seria a vingança de um mercador de escravos, que teria dado sumiço ao livro retirando-o das livrarias. Sobre esse livro, assim escreveu o professor e crítico Flávio Loureiro Chaves:
     "O leitor interessado em reviver a Porto Alegre de 1845 aí encontrará matéria vasta, dos toponímicos desaparecidos ao registro objetivo dos hábitos sociais. Embora pertencente à primeira geração 'romântica', Caldre e Fião não renunciou à atitude realista quando tratou de configurar o Rio Grande do Sul e sua capital, oferecendo aos círculos intelectuais da corte imperial um cenário até aí absolutamente desconhecido na literatura brasileira."
     Ainda que grafando em itálico termos regionais, talvez para demonstrar-se incorporado à literatura nacional, Caldre e Fião, em seus romances, propiciará que nossos motivos locais e históricos apareçam pela primeira vez aos olhos dos demais habitantes do País. Sua prosa é romântica e, por vezes, ingênua, mas sem deixar de prenunciar certos elementos realistas que fariam a fortuna do movimento que sucedeu ao Romantismo.
     Nos romances de Caldre e Fião, há um predomínio da ação sobre o enfoque da subjetividade das personagens e isso se deve atribuir ao fato de que foram escritos para serem publicados em folhetins, ou seja, as publicaçoes períódicas do romances, que eram feitas por capítulos, independentes e articulados entre si, nos jornais da época. Ainda que haja um fio condutor da história, a trama central, é visível a intenção do autor de, em cada capítulo, intercalar episódios paralelos como isca para atrair o leitor. O resultado disso é uma profusão de personagens e de acontecimentos, o que obriga o leitor a um exercício constante de memorização.
     Toda a narrativa de Caldre e Fião tem um fundo pedagógico e moral. A finalidade é sempre a vitória do bem e da virtude. É por isso que suas personagens recebem sempre aquilo que semearam. A uns, a ventura; a outros, o castigo. Há mocinhos, como Almênio, e bandidos, como Francisco, além de donzelas, como Edélia e Clarinda. Guardadas as devidas proporções, mais do que assinalar a presença do Romantismo no Rio Grande do Sul, afirmando uma consonância literária, como explicitou Guilhermino César, a obra de Caldre e Fião parece encerrar uma gênese que a remete a um parentesco distante com os romances de cavalaria. Ingredientes é que não lhe faltam.
     Enredo dos romances de Caldre e Fião
     A Divina Pastora (1847) _ Personagens: Almênio, Edélia, Clarinda, Francisco, Bernardo, Henridrichs
Almênio, inicialmente rebelde e depois legalista na Revolução Farroupilha, é apaixonado por sua prima Edélia, "a divina pastora", que o despreza e ama o vilão Francisco. Almênio, desiludido, começa a nutrir uma paixão por Clarinda, com quem acaba se casando. Edélia, tardiamente, descobre que ama Almênio. Entristecida, passa a direcionar sua vida a obras de caridade, no que vai encontrar algum alento para sua solidão.
     O Corsário (1851) - Personagens: Vanzini, Maria, João Martinho
     Maria, moça praiana, encontra o corsário Vanzini desfalecido após um acidente marítimo na costa rio-grandense e se apaixona por ele. Após seu restabelecimento, ambos fogem e Vanzini vai envolver-se em vários episódios da Revolução Farroupilha. Entrementes, Maria descobre que não é amada por Vanzini, que está mais interessado em bens materiais do que nas coisas do espírito. Mais tarde, Maria casa-se com o vaqueano João Martinho.  
     Apolinário Porto Alegre (1844-1904) - Figura de proa do Partenon Literário, Apolinário Porto Alegre foi poeta, prosador, crítico, professor e jornalista. Se a literatura do Rio Grande do Sul deve muito ao Partenon, o Partenon é, em quase tudo, obra de Apolinário, o que basta para assegurar-lhe um lugar de destaque entre nossos escritores.
     Apolinário Porto Alegre iniciou-se na prosa para, depois, fazendo um caminho inverso ao de muitos escritores, transitar pelas veredas da poesia. Depois de publicar um romance histórico, Os Palmares (1869), inspirado nos quilombos nordestinos, volta-se para os temais locais, dos quais então passaria a retirar a seiva que o nutriria permanentemente em sua intensa vida intelectual.
     Essa reviravolta de Apolinário Porto Alegre encontra seu decisivo antecedente em uma discussão entre dois peões, presenciada pelo escritor. Depois de ouvi-los com seus termos dialetais e peculiares, dos quais ele não depreendeu nada, Apolinário sentiu-se "um manequim da Europa". Tinha cultura erudita, mas desconhecia a cultura popular de seu povo.
     O Regionalismo de Apolinário Porto Alegre pode ser perfeitamente representado por Bromélias (a primeira parte deste livro de poesias), Paisagens (contos) e O Vaqueano (novela). São textos que, no conjunto, não chegam a atestar qualidades literárias. Entretanto, são afirmativas da consistência do Regionalismo, uma derivação madura e consumada de um processo cujo fio inicial se encontra na cor local das obras de Caldre e Fião. E, principalmente, servem para caracterizar a criação do "monarca das coxilhas".
     Mas os maiores frutos da obsessão regionalista de Apolinário Porto Alegre serão dados pela sua incansável pesquisa de tudo aquilo que pudesse se relacionar com a vida cultural da Província. Recolhendo vocábulos típicos, fatos históricos, lendas, Apolinário, em seu Popularium Sul-Rio-Grandense, viria a escrever uma enciclopédia linguística, histórica, sociológica, literária e etnocultural das coisas do Rio Grande do Sul.
     Apolinário Porto Alegre, pela sua obra literária, pela disposição infatigável para a pesquisa, pelo seu republicanismo progressista e antiescravista, por sua insubstituível presença na formação de nossa literatura, foi um descortinador de caminhos. Mais do que por tudo aquilo que realizou em nossas letras, devemos valorizá-lo pelo que anteviu. Muitos o superariam no tema que inaugurou, o Regionalismo, mas no bronze do tempo ficaria gravada para sempre sua indiscutível precedência.
Enredo
     O Vaqueano (1872) - Personagens: José de Avençal, Moisés, Rosita, José de Capinchos, André
Filho de um estancieiro de ascendência portuguesa, o menino José é salvo por uma mucama negra num atentado que dizimou a família. Levado para a casa do Cavalheiro de Amaral, um português de origem nobre, que toma a si a educação da criança, cresce com a ideia de vingar a morte de seu pai. Moço, José parte, sendo protegido pelo mulato Moisés, desconhecendo ser este seu irmão. Num baile, o moço conhece e se apaixona por Rosita, filha de José de Capinchos, sobre quem repousam acusações de ser o assassino de Gil de Avençal. Reconhecendo em Capinchos o executor do crime, José busca-o para matá-lo e é substituído nessa tarefa por Moisés. A rivalidade entre José e André, filho de capinchos, acentua-se e é este quem agora pretende vingar-se. Integrado ao exército farroupilha, como vaqueano, José recebe a visita de Rosita que, compreendendo a impossibilidade de realização de sua união, mata-se. Avençal e André, na cena final, morrem: o primeiro, numa explosão por ele provocada; o segundo, arrojando-se ao mar. (Texto de Maria Eunice Moreira)
     Oliveira Belo (1851-1919) - Bacharel, historiador, conferencista, escritor, deputado e, segundo Ari Martins, presidente de nada menos do que de três províncias (Sergipe, Rio de Janeiro e Santa Catarina), coube a Oliveira Belo ombrear com Apolinário Porto Alegre na tarefa de sedimentar o Regionalismo no Partenon Literário.
     O livro definitivo de Oliveira Belo é Os Farrapos, um romance que tem em primeiro plano uma série de episódios da chamada Revolução Farroupilha e, como pano de fundo, o amor de Juca Silva e Anita. De caráter nitidamente romântico, contudo, tem essa fórmula inovadora em relação aos demais românces românticos, que costumam colocar o amor em primeiro plano.
Para o professor e crítico Cláudio Gabiatti, essa inversão não passou despercebida e, talvez, exatamente a ênfase no enfoque nos acontecimentos propiciados pelos grupos em disputa pelo poder, legalistas e farrapos, levaram-no a classificar a obra como ficção política.
     Se Os Farrapos, por um lado, constituem mais um momento, um ápice derradeiro, na construção do mito do gaúcho, apresentado personagens heroicos e vencedores, como Juca Silva, Manoel Serrano e João Ramiro, por outro já prenuncia uma certa visão crítica, ainda que incipiente, sobre as figuras centrais da Revolução. Bento Gonçalves, Garibaldi e Davi Canabarro são apresentados de uma forma menos idealizada, com diálogos que os mostram, por vezes, mais reais, mais falíveis e, por isso mesmo, mais humanos.
     O romance, literariamente, alterna bons e maus momentos. É cansativo nas descrições, com uma linguagem rebuscada demais, bem ao gosto da época, e torna-se interessante nas passagens em que predomina a ação, capaz de absorver a atenção do leitor. Não obstante o autor ter priorizado o ambiente do Rio Grande do Sul, sua história, seus tipos sociais, Os Farrapos são um romance regional, sem ser deliberadamente regionalista. Tanto é assim que o autor, ao final do livro, oferece um glossário de termos regionais.
     O romance Os Farrapos é, por si, tese, antítese e síntese. É tese quando expõe o amor predestinado e intenso de Juca Silva e Anita. É antítese quando enlouquece o herói e apenas nas últimas linhas o recupera para Anita, deixando-os à beira de um final trágico. É tese quando reafirma o mito do "monarca das coxilhas". É antítese quando apresenta o estado deplorável em que viviam os combatentes, vítimas impotentes da guerra. É tese quando registra o perfil inquebrantável de caudilhos e dirigentes. É antítese quando esses mesmos chefes se veem acossados por dúvidas e dissensões. E é síntese quando traça um painel da Revolução Farroupilha a apenas três décadas do seu final, quando suas chagas ainda estavam semiabertas e os homens que a impulsionaram ainda podiam ser vistos cruzando as esquinas da Província.
     Enredo
     Os Farrapos (1877) - Personagens: Anita, Juca Silva, Manduca Fernandes, Manoel Serrano, Capitão Álvaro, Fructuoso, João Ramiro
     Juca Silva, noivo de Anita, vai para a guerra alistar-se nas tropas rebeldes do Capitão Álvaro, as quais abandona junto com Manoel Serrano depois de sabê-los saqueadores. Estas mesmas tropas assaltam e incendeiam a casa onde residem Anita, seu irmão Manduca Fernandes e seu pai Chico Fernandes, que pensam estar Juca Silva entre os salteadores e assassinos. O pai de Anita morre e seu irmão Manduca Fernandes jura vingança contra Juca Silva. A fim de ficar mais livre para cumprir seu intento, casa a irma com o cigano Fructuoso, malfeitor que predispusera Manduca contra Juca Silva para poder casar com Anita. Manduca, ainda no cerco a Viamão, fere Juca mortalmente.
Quando Juca Silva, restabelecido, descobre o casamento forçado, é levado pelo seu chefe, João Ramiro, a devolvê-la ao cigano. Juca enlouquece. Manoel Serrano mata Fructuoso e assim deixa o caminho livre para a reconciliação entre Juca e Anita. Ao ver Anita, que vai buscá-lo no mato onde se embrenhou para viver sua desventura, Juca recobra a razão e reencontra a vontade de viver.
     Félix da Cunha (1833-1865) - Formado em Direito, parlamentar (inicialmente partidário de Silveira Martins), jornalista, poeta, dramaturgo, orador, Félix da Cunha, em sua curta e intensa existência de 31 anos, representa, nas palavras de Guilhermino César, nossa ligação com a poesia romântica.
     Félix da Cunha foi um dos mentores e também um dos destaques da geração romântica surgida em torno da revista "O Guaíba" (1856). Nela, seus versos encontraram refúgio e tipografia antes que ele os abandonasse, lançando-se aos voos mais áridos das tribunas e do pragmatismo político.
     A poesia de Félix da Cunha é água da mesma fonte sorvida por Álvares de Azevedo. Tal semelhança não é mera coincidência. Estudante em São Paulo, Félix da Cunha travou contato com os poetas do "mal do século" e veio a ser, nestas paragens extremas, seu cônsul mais ilustre. Para asseverar esta semelhança, basta transcrever este trecho do poema "A última súplica" (1855), também destacado por Guilhermino César em História da Literatura do Rio Grande do Sul, no qual sente-se o mesmo sopro de desencanto que nos transmite Álvares de Azevedo em "Lembrança de morrer":

 Em cova humilde dormirão meus ossos,
 Basta à minha ambição grossa mortalha
 E tosca pedra sem letreiro ao menos:
 Basta que à noite o orvalho dos salgueiros
 Lave a poeira que os pés dos caminhantes
 Deixaram sobre as colchas de meu leito.
 Basta que a luz de um astro rompa as nuvens
 E pouse um pouco sobre o chão da lousa.
 Isso me satisfaz: terei no orvalho
 O pranto, e no fulgor puro dos astros
 O olhar de Deus, que nunca mente aos mortos.


      É na análise da poesia de um Félix da Cunha que ganha força a tese dos que veem a literatura gaúcha em uma evolução perfeitamente integrada às fases que percorreu a literatura brasileira. Se não houvesse gaúchos, coxilhas, guerras, pampa, lides campeiras, estâncias, etc., no extremo sul do Brasil, e contemplando a obra deste poeta genuinamente romântico, bem como da geração de que fez parte em pleno solo rio-grandense, não haveria qualquer ilação em sentido contrário.
     Bernardo Taveira Júnior (1836-1892) - Professor, teatrólogo, poeta, cronista e tradutor, Bernardo Taveira Júnior é, junto com Múcio Teixeira, um dos precursores da poesia regionalista. Escreveu As Provincianas, iniciadas em 1865, concluídas em 1873 e publicadas em 1886.
     Para Guilhermino César, "no desabrochar da gauchesca rio-grandense, acima de tudo, vigorou o estímulo das correntes internas do pensamento brasileiro". Diz isso para sentenciar que o ocorrido literariamente no Prata nunca nos serviu de modelo, Modestamente, é possível dizer: sim e não. Sim quando, no caso de Taveira Júnior, analisarmos o enfoque dos tipos rio-grandenses, tropeiro, vaqueano, gaúcho, etc. São fortes, invencíveis, corajosos, intrépidos. É a mitificação do gaúcho, bem ao gosto do romantismo brasileiro. Pelo enfoque das personagens, somos românticos. E mais: afinados, ainda que tardiamente, com essa estética em nível nacional.
     Por outro lado, a contraposição à assertiva de Guilhermino César pode ser feita nos casos em que Taveira Júnior, sem qualquer reponte de romantismo, busca simplesmente retratar fielmente costumes e hábitos dos gaúchos. Quando isso ocorre, é perceptível, no mínimo, um incipiente realismo. Como exemplo, segue um cotejo de fragmentos de poemas de Taveira Júnior e do poeta argentino Jose Hernández, que escreveu Martin Fierro, clássico do gênero gauchesco. O tema de ambos é a doma:

 Logo então eis se aproxima
 Dele o domador com jeito,
 E ao bagual espantadiço
 Acomoda com preceito
 O rijo e forte buçal.
 Tiram-lhe depois o laço,
 E pelo cabresto, a passo,
 Ao palanque é conduzido.
 Caminha tão sobranceiro,
 Que às vezes querer parece
 Atrepar pelo campeiro!
 ..........................................
 
 Lança-lhe ao lombo a carona;
 Que o bagual não poucas vezes
 Faz com pinotes voar _
 Lança-lhe após o lombilho,
 Em que se tem de sentar,
 E por cima a forte cincha,
 Que o tem de segurar.
 Mas ao sentir o apertão
 Pelo látego pendente
 Da argola do travessão,
 Incha o lombo, curveteia;
 Mas não consegue livrar-se
 Das garras da compressão!
 Lança-lhe após o pelego,
 Que segura a sobrecincha,
 E, finalmente, na boca,
 Pela parte inferior,
 Presa pelo barbicacho,
 As rédeas de domador.
 ......................................
 Mas sobre o lombilho parece pregado,
 Parece uma estátua de gênio imortal!
 Não perde os estribos, um só movimento
 Nos altos corcovos do fero bagual!
 
 E o bravo campeiro
 No potro bizarro
 Folheiro se ostenta,
 Fumando o cigarro.
 (Taveira Júnior)

 Este apresilha as esporas,
 um outro vai a cantar,
 mais um pelego buscar;
 aquele, um laço enrolando;
 e os pingos, a relinchar,
 junto ao palanque os chamando.

 E quem fosse domador,
 se dirigia ao curral,
 onde estava o animal
 bufando que se peleava.
 Mais bravo que sua avó,
 espinoteava o bagual.

 E o gaúcho inteligente,
 assim que o potro pegou,
 as pilchas lhe acomodou,
 e foi montando em seguida,
 _ que o homem mostra na vida
 os dons que Deus lhe mandou.

 E nas várzeas corcoveando,
 se espedaçava o sotreta,
 enquanto pelas paletas
 o riscavam as choronas,
  e ao ruído das caronas,
 se desmanchavam em gambetas.

 Ah! tempos... Era um orgulho
 ver ginetear um paisano!...
 Sendo gaúcho vaqueano,
 quando seu  rodava,
 na orelha dele pisava,
 de pé saindo, leviano.
 (Jose Hernández, traduzido por Nogueira Leiria)

 
     Os versos acima devem servir para exemplificar um dos muitos momentos em que a poesia gauchesca de Bernardo Taveira Júnior encontra pontos de contato com a lírica gauchesca uruguaia e argentina. Além de retratar uma lida comum ao gaúcho, rio-grandense e platino, há, em poucas estrofes, meia dúzia de palavras que se repetem nos versos de ambos os poetas citados. Sem falar em muitos outros vocábulos, como pingo, pilchas, esporas, etc., que embora não constem repetidos nos fragmentos acima, são corriqueiras no léxico de poetas como Taveira Júnior, Jose Hernández, Hilário Ascasubi, entre outros. O mestre Guilhermino César, ao não vislumbrar nenhuma semelhança entre poetas às vezes tão semelhantes, talvez tenha pagado um pesado tributo à sua cruzada pela conformação da literatura rio-grandense à nacional. Outra discussão seria, dentro da gauchesca, o mérito da poesia de Taveira Júnior. No caso em tela, trata-se apenas de assinalar um parentesco.
     Não se quer com isso, arremeter contra nossa filiação, em geral, à literatura brasileira e suas estéticas temporais. Contudo, quer-se afirmar pontos de contato que realmente existem na medida em que gaúchos de três países, vivenciando realidades em muito semelhantes, foram motivos literários de poetas e ficcionistas destes mesmos países. Talvez não por acaso, ou talvez por um grande acaso, as obras de Jose Hernández e de Bernardo Taveira Júnior foram escritas na mesma década do século XIX. Desde o nosso amanhecer literário, o regionalismo, nosso principal filão, já nasceu amalgamado e sem fronteiras.
     Há estudiosos da obra de Bernardo Taveira Júnior que a reconhecem válida apenas historicamente na conformação do regionalismo. Entretanto, poder-se-ia fazer duas ressalvas: uma seria a de que, se analisada sua obra pelos padrões da época, ela avultar-se-ia; outra, a de que, mesmo se julgada pela luneta de hoje, muitos de seus textos seriam reafirmados. Para ilustrarmos a última assertiva, reproduzimos um trecho de um poema em o sobrinho pede ao tio a mão da prima. Reparem no coloquialismo e na profundidade não dita dos diálogos:
 _ Parece que andas doente...
 Que é isso, rapaz? _ o velho
 Com intenção perguntou _
 Andarás tu descontente? _
 "Não, senhor... eu tinha vindo..."
 E à orelha a mão levou.
 ­_ Vamos a ver...Tinhas vindo...
 "Era, sim, senhor, em vim...
 Não sei porém se meu tio..."
 _ Mas ao que vieste enfim?
 "Pedir-lhe um grande favor."
 _ Fala, se estiver em mim...
 "Venho pedir ao senhor..."
 _ O quê? _ "Eu tinha vontade
 De breve tomar estado."
 _ Não é grande novidade...
 És moço bem comportado...
 Ah! já sei, ora adivinho,
 Queres que eu seja padrinho...
 "Mais ainda, meu bom tio!"
 A isto o velho sorriu.
 _ Não te posso inda entender...
 "Seu genro desejo ser."
 _ Olha! lá vem tua noiva,
 E como tudo tem fim
 Vai, meu sobrinho, dizer-lhe
 Que lhes dou também meu sim. _

     Na análise da obra de Bernardo Taveira Júnior há que se estar atento para não ser atropelado pelos detalhes. Temo-lo como freguês de caderno dos padrões do romantismo nacional, e isso é certo. Trata-se de um coartífice, ainda que involuntariamente, talvez, do gênero gauchesco, antecedendo a um Amaro Juvenal. E, finalmente, temo-lo como um "romancista" de costumes, bem ao gosto do Realismo-Naturalismo, optando pela fixação através da poesia, como também poderia tê-la feito, sem o mesmo êxito, por certo, valendo-se da prosa.
     Escritas as linhas acima, o mais é torcer para que um dia a maioria dos críticos da literatura rio-grandense deixe de trilhar o já surrado caminho de repetir à exaustão os juízos desfavoráveis de eminentes mestres como Guilhermino César e João Pinto da Silva acerca da poesia regionalista de Bernardo Taveira Júnior. Vendo com os próprios olhos, pode ser que realcem a figura do poeta, que nada tem a perder com isso. Já lhe tiraram tudo.
     Múcio Teixeira (1857-1928) - Ex-militar, poeta, jornalista, teatrólogo, romancista, Múcio Teixeira pertenceu ao Partenon Literário e foi um dos pontífices na articulação do regionalismo e do seu mito principal, o do gaúcho. Viajante, alternou residência entre o RS e o RJ, onde consta que usufruiu da hospitalidade de D. Pedro II.
     Guilhermino César, em estudo sobre o poeta, depois de exaltar sua inquietude intelectual, ressalta as diversas incompreensões de que foram alvos a figura e a obra de Múcio Teixeira, fruto, quem sabe, de sua nada recolhida modéstia.
     Múcio Teixeira incursionou por vários gêneros e temas, mas é com Os Gaúchos e Flores do Pampa que lhe ficou assegurada uma vaga na galeria dos principais escritores rio-grandenses.
Através das Flores do Pampa buscou Múcio Teixeira reivindicar para si a primazia no estabelecimento da lírica gauchesca, que cultuou juntamente com Bernardo Taveira Júnior. Não obstante ser esta uma questão de difícil elucidação, permitimo-nos dizer que naqueles poemas de Múcio Teixeira a que tivemos acesso, e contrariando a posição corrente dos críticos, sua poesia regionalista é inferior à de Bernardo Taveira Júnior. Ela cresce nos casos em que se torna mais intimista e menos local. Como exemplo, vejamos os seguintes fragmentos, O primeiro é gauchesco, e bem ruinzinho; o segundo é de um romantismo universalista, bem elaborado literariamente, apesar da cacofonia ('o que é que sou') no segundo verso:
  I
 Eu sou o moço Gaúcho,
 Valente como os mais guapos;
 Filho e neto de Farrapos,
 Republicano no mais!
 Com o meu poncho de pala,
 E laço e bolas nos tentos,
 Vou mais ligeiro que os ventos
 Por sangas e bamburrais...

  II
 Sendo todas as coisas, sem que se possa
 Saber o que é que sou, e o que são elas;
 Eu, na incerteza que de mim se apossa,
 Confundo a luz do olhar com a das estrelas.

 É dos meus olhos que essa luz se exala,
 Ou recolho os seus raios na retina?
 E no silêncio, em que minha alma fala,
 Vibra uma interna música divina.

     A Múcio Teixeira deve corresponder uma boa dose de crédito literário, dada a admiração que despertou em mestres como João Pinto da Silva e Guilhermino César. Contudo, episódios como aquele em que ele lançou-se a desqualificar Machado de Assis como escritor são índices de um itinerário em que a pretensão lhe é sedentária e o talento nômade.
     Lobo da Costa (1853-1888) - Poeta, ficcionista, ensaísta, jornalista, dramaturgo, Francisco Lobo da Costa foi a mais alta expressão da poesia romântica no Rio Grande do Sul. Integrou o Partenon Literário.
     Lobo da Costa, ao traçar seu destino como homem, ligou-o umbilicalmente à poesia. Optou por ser poeta como forma de dar à sua vida o único sentido que considerava válido.
     Tal opção implicou ônus que ele sempre pagou prontamente, ciente do seu crédito, via poesia, perante a existência. E se às vezes as circunstâncias não lhe foram fáceis, e efetivamente não foram, pois morreu na miséria e em delírio, o certo é que despendeu seus dias em consonância com as forças internas e exigentes que lhe revolviam o íntimo.
     Mas não se pense que a poesia de Lobo da Costa, pelas angústias de seu criador, pendeu para o isolamento. Poemas como "Adeus", "Vingança" e, principalmente, "Ranchinho de Palha" lograram êxitos inigualáveis no século XIX. Conhecidos e recitados, atravessaram a barra do tempo, com suas estrofes sempre presentes nas mentes e nos corações dos rio-grandenses. Algumas restrições ao seu estilo intuitivo e, por vezes, descuidado, não lhe comprometem a obra.
     A poesia de Lobo da Costa tematiza a saudade, o amor não correspondido, a solidão e, também, as questões sociais. É como se, resguardadas as devidas proporções, num único poeta se fundissem os ânimos de um Casimiro de Abreu, de um Álvares de Azevedo e de um Castro Alves. Sobre sua poesia, Alice Campos Moreira afirmou que "o ponto central dessa poética é o predomínio da subjetividade. O Eu e a vida interior tendem à elevação, à espiritualidade e à liberdade".
     Referindo-se ao enfoque social da obra de Lobo da Costa, Alice Campos Moreira destacou-o como militante de duas grandes jornadas. "Defensor das grandes causas: a abolição da escravatura e a República, é levado por sua visão solidária a debater as injustiças sociais. Pela primeira vez um poema cantou o soldado, herói anônimo, desajustado na sociedade que defendeu e o abandona; ou o espetáculo deprimente da legião de esquálidos e famintos nordestinos entregues à própria sorte; ou, então, a situação da mulher degradada na prostituição. Não usou o sentimentalismo para denunciar a escravidão. Sua censura era destinada às consciências, exigindo direitos e cobrando deveres. Exaltou os farrapos, que lutaram pela igualdade e justiça social."
     O lirismo de Lobo da Costa, sua solidão, seu desejo de afetos que nunca teve, sua inadequação espiritual a um mundo de materialismo desmedido constituem uma poesia  cujo eu poético manifesta-se em permanente angústia existencial. Essa poesia, representada por publicações como Lucubrações (1874) e Auras do Sul (1888), é a realização profunda da verve de um poeta que, ao sondar o insondável, extravasou limites e não coube em si mesmo.
     Fontoura Xavier (1856-1922) - Estudante de Direito em São Paulo, curso que não concluiu, diplomata, jornalista, Fontoura Xavier foi um poeta do sentimento sem deixar de ser um experimentador da linguagem poética. Publicou O Régio Saltimbanco (1877) e Opalas (1884), seu principal livro.
     O Régio Saltimbanco satiriza a figura de Dom Pedro II, bem ao gosto dos jovens poetas de São Paulo e do Rio de Janeiro na época. O poema ocasionou mal-estar em muitos dos nossos críticos, que, em desagravo ao Imperador, atribuiriam o poema à juventude do autor. Num determinado trecho, Dom Pedro II é comparado ao personagem de Miguel de Cervantes:
 Quando ele há pouco andou pelos confins de Minas,
 Exibindo-se ali sobre um cavalo a trote,
 Coalharam-se de gente os serros e as colinas,
 E, como as procissões, ao largo das campinas,
 Todos viram passar o novo Dom Quixote.

     Mas é com Opalas que Fontoura Xavier atinge seu ápice poético. O livro, hoje esgotado e a cujos textos somente tivemos acesso através de trechos transcritos por outros autores, apresenta, segundo João Pinto da Silva uma desunidade aparente, dada a variabilidade de temas, mas reencontra sua unidade na aguda sensibilidade e no estilo pessoal do autor.
Guilhermino César, analisando Opalas do ponto de vista temático, assim se expressou:
     "Em primeiro lugar, a temática:  extremamente variada e imprevista, representa por si mesma a instabilidade emocional do poeta _ linha ondulante que parte tanto das Odes Funambulescas, como das Flores do Mal. Mas, em essência, deve mesmo proceder de Bainville, de seu rigoroso cinzel, de sua imaginação prodigiosamente fértil, de sua ironia e desencanto, a família a que pertence o nosso autor. É um europeu (grifo nosso); denunciam-lhe o berço e os cenários naturais que descreve, os pró-homens americanos que admira, o tratamento que dispensa a amigos brasileiros; mas o que é organicamente nosso cultiva-o de maneira bastante convencional. Onde Fontoura Xavier se sente bem, onde nos dá a impressão de se achar, é quando elege os temas que vai encontrando pelos caminhos do mundo _ uma cena de Toledo, o Piccadilly, o esnobe de bulevar, o suicídio de Gérard de Nerval, a Avenida das Acácias, o ambiente de Paris. E por isso mesmo, notamos-lhe certo fastio, certo spleen elegante, que não se conforma com as correntes mais genuínas da poesia brasileira. Representando uma novidade gritante, trouxe, assim, à poesia rio-grandense um vinco que lhe faltava. Dá vertigens, a vertigem da altura, a sua visão ecumênica, só comparável, na literatura nacional, à de de José Geraldo Vieira, o grande romancista contemporâneo."
     O verso de Fontoura Xavier apresenta-se lapidado, buscando a rima rica. Seu lirismo provém do cotidiano, sem derramamentos de sangue, e o coloquialismo é sua marca registrada, como ocorre neste primeiro quarteto do poema Nos funerais de um poeta, em que o primeiro verso beira o insólito:
 Um instante, coveiro! o morto é meu amigo,
 E como vês cheguei para dizer-lhe adeus;
 Depois podeis levá-lo, a Satanás, contigo,
 Que sei que não pretende a salvação de Deus.

     Poeta genial e desenraizado, Fontoura Xavier forjou sua poesia como caudatária da alma global do mundo.
     Damasceno Vieira (1850-1910) - Prosador, poeta, funcionário público, orador brilhante, membro do Partenon Literário, jornalista por puro prazer, Damasceno Vieira teve uma fecunda e produtiva carreira literária. Escreveu poesia, romance, drama, crítica literária, crônica, comédia, opereta, conto. Sua obra literária divide-se em duas fases, uma romântica e outra parnasiana. Em sua bibliografia constam obras como Auroras do Sul (1879), A musa moderna (1885) e Poemetos e quadros (1895).
     A poesia de Damasceno Vieira, em sua segunda fase, é uma poesia advinda do mundo e das coisas. Não é o poeta debruçado sobre suas próprias dores , mas é o homem sensível e comovido, embora não sem uma certa impassibilidade,  com as dores do mundo e dos homens e mulheres que nele habitam. Damasceno Vieira é um espectador privilegiado que, por vezes, se surpreende com a analogia entre os dramas que intervê, e que lhe servem de motivação poética, com suas angústias existenciais e experiências vividas. É algo assim que observamos no poema "Descendo o Uruguai", de Poemetos e quadros, no qual uma jovem francesa amorosamente desiludida, secundada por uma atmosfera criada pelo canto de desamor de uma "cantante" espanhola, tem do poeta um relato enternecido, ao mesmo tempo que o desperta para uma sorte não menos desditosa.
 _ Vejam as mãos como escaldam! confiante,
 Estendeu-me-as chorosas. Nesse instante,
 Em que a vi junto a mim, amante e bela,
 Estranha sensação de luto e gozo,
 Pulsou-me o coração angustioso
 Que partilhava as dores da donzela.

     Na sua fase parnasiana, a temática clássica não lhe passa despercebida e, assim, temos mais um poeta que, nestas plagas,  achou por bem invocar a sempre lembrada Grécia e sua mitologia. É o que temos no soneto "Estátua grega", de Poemas e quadros:
 Nasceu altiva da marmórea espuma,
 Como do mar a Vênus donairosa,
 Branca mulher em que a beleza é suma
 Como d'Aspásia a forma esplendorosa.

 Seminua rainha, ela reçuma
 A soberba de Juno caprichosa
 Comove, exalta, sem mostrar nenhuma
 Alteração na face majestosa.

 Fhídias, surpreso, ao contemplar-lhe o vulto
 Curva o joelho em fervoroso culto
 E sangra-lhe paixão insana e fátua.

 Abraça e beija o escultural encanto...
 Fala-lhe... e sente, com supremo espanto,
 Que é fria e morta a divinal estátua!

     A poesia de Damasceno Vieira, ao buscar no universo exterior muitos dos seus temas, fazendo do poema uma síntese dos fatos e flagrantes que circundaram o autor, faz-se clara, lógica, passível de equilíbrio, ordenada pela síntese possível entre o universo interior do artista e o mundo, seu cenário irremovível. 

Landro Oviedo
Enviado por Landro Oviedo em 14/03/2012
Reeditado em 12/01/2016
Código do texto: T3553053
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