Vídeo + Arte

Vídeo + Arte

Vídeoarte – Afinal, o que é isso?
Na era da representação eletrônica, estaríamos usando este recurso apenas como registro dos acontecimentos, como antes foram utilizados instrumentalmente a fotografia e o cinema, ou seria esta uma linguagem específica, atendendo a uma situação comportamental em que nossa atenção é dispersa, em que apenas o ritmo acelerado das imagens nos monitores de Tv neste turbilhão vivencial da geração-imagem, pode nos provocar uma pausa de atenção no mesmo ambiente em que são recebidas e um elemento a mais no meio ambiente?
Essa é a primeira diferença, fundamental entre o cinema e o vídeo: no primeiro adotamos uma postura voyeurista, ilusionista, longe do mundo real no isolamento de uma sala de projeção. No outro a interação no dia-a-dia, viajando a mente num caos de linhas que se sucedem, sem profundidade, olhando um artefato que repete na modernidade a experiência renascentista da “camera obscura”.
Entre uma postura mimética reproduzindo o mundo externo e uma simbólica, prenhe de significados ocorre à primeira opção do artista (e nesse instante eu diria produzir vídeoarte ou simplesmente documentar o real). Segue-se a edição do material gravado e a pós-produção chegando à idéia platônica, de sugerir pela arte uma visão pessoal do mundo, da representação única possível do todo pela parte. Essa primeira opção, entre reproduzir o real ou alterá-lo é a essência da arte do vídeo, a diferença profunda entre cinema e televisão.
Embora as duas formas possam manipular a realidade através de efeitos tecnológicos, no cinema a objetividade faz parte da sua natureza ontológica, é integrante de sua constituição própria, enquanto no vídeo não há qualquer pretensão de engano, seus artifícios são explícitos, é uma arte que se desvela na própria formação das imagens.
Como arte contemporânea, o vídeo não busca captar a verdade que estaria oculta na exterioridade do real, ele não é a simples representação da realidade. No afã de refletir sobre a vida, sua elaboração é uma soma de conteúdos e na conceituação de Jean Baudrillard (1) sobre a arte contemporânea (e por extensão sobre o vídeo) diríamos: “As imagens não representam, mas simulam e a simulação se refere ao mundo sem referências, em que toda referência desapareceu”. Por essa razão em toda a arte contemporânea, e no vídeo particularmente pela sua constituição, existe um sem número de significados, ele é uma obra aberta na complexidade das interpretações possíveis e usando uma linguagem bem atual poderíamos dizer que o significado é desconstrução do significado, ele só existe num processo interpretativo e crítico pessoal, se esgotando na própria interpretação.
O que as imagens na vídeoarte teriam de tão especial que levariam a essa situação inusitada, de uma imagem cujo significado se desconstrói na própria elaboração? Jean-Paul Fargier (2), numa afirmação contundente nos diz que as imagens no vídeo são formadas mais por ruídos que por sinais. Com isso ele sinaliza que a elaboração da pós-produção, do trabalho em laboratório, tem valor especial superando a reprodução da realidade ao colocar o trabalho significante visível. O vídeo é uma imagem de ruídos, em que o artista continuamente interfere na manipulação do real, metamorfoseando o todo essencial. A escrita do vídeo em essência é isso, uma imensa saturação e dispersão, uma imagem sendo parasitada por outra, o tempo como registro contínuo pós-retiniano sendo quebrado pela aceleração, pela inserção de uma imagem com outra. Fala-se hoje em incrustação de imagens, invertem-se as relações figura-fundo, no tempo da varredura eletrônica do quadro altera-se a imagem captada.
É claro que todos esses recursos de pós-produção, hoje chegando ao limite da televisão digital com a criação de imagens através de algoritmos numéricos corre o risco de resvalarmos num barroquismo, num maneirismo laboratorial pela hibridação das imagens. Se no cinema a produção é plenamente linear, um plano após outro, cada plano de tomada uma informação áudio-visual em sua essência, na vídeoarte superpõe-se tudo, chegando a extremos no caso de um dos maiores artistas da vídeoarte, Nam June Paik, em que todas as imagens se fundem num único plano de tomada. Aliás, Nam June Paik pela distorção da imagem através de imãs, e pela interferência através do sinal modulado na corrente elétrica desconstrói a imagem pela desprogramação do software. Ao fazer isso, Paik nega a vídeoarte como arte puramente mecânica, já que cria diálogo entre homem e máquina na formação da imagem.
Na extremidade oposta, outro grande artista na vídeoarte, Bill Viola pouco se utiliza dos efeitos de pós-produção, não divide o quadro em imagens de tempos simultâneos, não emprega a câmera lenta ou acelerada, não multiplica os fundos para encadear a passagem do tempo. Por meio de técnica apurada nas tomadas, Bill Viola consegue questionar a codificação da realidade que conhecemos pelos contrastes entre imobilidade e deslizamento, parecendo que o espaço circundante e a presença humana não se encontram no mesmo campo, mas tem imagens sobrepostas. Cada plano é suficientemente longo para parecer um plano seqüência e a passagem de um plano a outro não se dá por corte ou fusão, mas por desequilíbrio entre as imagens formadas. As passagens de um momento a outro dão a sensação que todos os momentos existiriam com uma longa presença, presença que na contínua repetição do looping quebra toda a semelhança com o espaço e tempos reais. Chega-se assim a um momento em que campo e extracampo não existem mais, a nossa lógica não é mais a da memória e do raciocínio, porém, a do sonho, dando sentido onírico as imagens.
A vídeoarte tem esta possibilidade, libertar a imagem do duplo diálogo de algo pré-existente. Na filosofia a imagem desde Platão evoca a marca da mimese, ela é o espelho simbólico que reflete a realidade do mundo. Com o advento da imagem digital e da construção algorítmica da imagem, esta passa a preexistir ao objeto de referência. Entramos assim no terreno movediço da realidade: para visualizar uma imagem no vídeo digital temos que representa-la através de expressões matemáticas, os algoritmos de simulação da imagem. Ora, para formá-los recorremos a convenções de representação, estereótipos, que são resultados de toda a nossa cultura. A questão da realidade na vídeoarte é assim totalmente diversa das outras formas de representação da imagem. Pela própria constituição da imagem no monitor, na varredura das linhas a imagem se forma como síntese temporal de formas em constante alteração. Esta é outra diferença entre cinema e vídeo, no cinema cada quadro é um still, uma foto da realidade naquele instante preciso, no vídeo é a ilusão de um instante, aquele lapso de tempo da percepção humana entre uma sucessão de valores tonais na formação das linhas. A cada fração de tempo, a cada pixel formado na tela temos um estágio temporal e espacial da vida do objeto, portanto a imagem no vídeo é mais conceitual que real.
Situemos apenas dois instantes nesta longa discussão sobre a realidade, que nos parecem apropriados para a questão da imagem na vídeoarte: William James em 1910 (3) diz que “O verdadeiro é somente um expediente na nossa forma de pensar”, Jean Baudrillard (4) em 1983 fala: “No mundo pós-moderno todos os seres surgem na modalidade de simulacros”. Concluo por isso que no mundo atual, em que tudo é contingente, e inexplicável pela verdade absoluta, a vídeoarte é um ensaio sobre o inconstante, o imprevisível, uma tentativa racional e por que não dizer onírica, de reconciliação entre nossa existência e um número infinito de verdades.
E este momento de abertura é também o de risco vivido pela videoarte como expressão de pensamento, numa época em que se fortalece a capacidade visual e a fantasia das realidades virtuais, e em que o homem perde a reflexão analítica e sua capacidade única no reino animal, de dialogar consigo mesmo.


(1) in O Mal-estar da pós modernidade, cap.VII “A Arte pós moderna ou a impossibilidade da vanguarda”, Zygmunt Bauman, Zahar Ed.
(2) In Máquina e imaginário, cap. II “Hegemonia da imagem eletrônica), Arlindo Machado, EDUSP.
in Ou va la vídeo, Fargier, Paris, Ed. Étoile.
(3) in Pragmatismo e outros textos, William James, Abril Ed., 1979.
(4) in O Mal-estar da pós modernidade, cap.IX “Sobre a verdade, a ficção e a incerteza”. Zygmunt Bauman, Zahar Ed.





Walter de Queiroz Guerreiro
Crítico de Arte (ABCA/AICA)








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