O Pensamento Vivo de Neergaard

Toda obra de arte e todo artista pretende ultrapassar os limites regionais, ser reconhecido por sua proposta e sua linguagem, fazendo com que a forma pela qual encara o mundo, adicione algo ao nosso conhecimento e nos dê outra maneira de nos relacionarmos com nossa própria existência. Essa é uma das razões da existência da Arte, colocar o homem dentro da realidade, e este se auto-afirmar como ser pensante.
A obra escultórica, de Jesper Neergaard, passa a impressão inicial de se tratar de mais um artista abstrato, conceituado às vezes como estruturalista, manipulador de formas, que se repetem num jogo de combinações repetitivas, e talvez monótonas. A manipulação mais acurada de cada escultura, de sua relação com os títulos, fornece uma pista clara de suas intenções.
Seu trabalho consiste em imaginar o bloco a partir de pequenas seções, elementos empilhados, como se encontrasse na natureza seixos, lascas, pedras, que pudessem ser amontoadas em camadas, formando pilhas que comporiam a forma idealizada. Embora como todo artista busque uma linguagem absolutamente original, não pode ele se libertar de grandes nomes da escultura neste século: Brancusi pela síntese e pela energia interna, e Henry Moore pela preocupação maior com a superfície e pela tensão entre os volumes.
A concepção do todo escultórico como empilhamento de pedras, tem a meu ver uma forte ligação com tradições nórdicas, as colunas de pedras chamadas Cairns, elementos sagrados pré-históricos que seriam a ligação entre céu e terra. Em todos os países e todas as culturas, as pedras são fixadores dos espíritos, um dos elementos mais simples da natureza, porém quando agregados, funcionam como acumuladores da força vital. Transpira em toda sua obra um conhecimento de áreas paralelas na filosofia, literatura e psicologia.
Atrás dos mitos nórdicos, das Nornas (Urd, Verdand e Skuld, correspondendo ao Passado, Memória e Natureza) como deusas do destino equivalentes às Parcas da Mitologia greco-romana, de Malquisedec, o rei-sacerdote que representa a união do poder espiritual e temporal numa só pessoa, de Heie o espírito-guardião da Terra, existe sempre a obra de arte como elemento de ligação entre percepção do mundo e o sentimento, a obra sendo a forma visível da percepção e a expressão do sentimento.
Nada ali é abstrato, subsistem os sentimentos comuns a todos os povos e a todo ser humano, poder e compaixão, amor, vida e morte. Cabem ali todas as interpretações, todos os enfoques, a carga psicológica do símbolo reinterpretado pelo artista, a concepção mental da obra como soma de conhecimentos transformados em elemento vivo, táctil, pulsante.
Formas fálicas, formas vulvares, mysterium coniunctionis junguiano, união dos opostos, alquimia mágica sexual, resgate das fantasias humanas, cabem aqui todas as interpretações, todas as leituras, toda transcrição em palavras do que o artista não viu, ou ocultou, ou quiçá sejam devaneios de uma leitura estimulada pela projeção de nosso próprio inconsciente.
É uma pedra, mas elástica, contida dentro dos limites do bloco original, passando sua mensagem, que pela universalidade dos temas vai além de suas origens, expressando aquilo que chamamos Arte.

WALTER DE QUEIROZ GUERREIRO
Historiógrafo e Critico de Arte (ABCA/AICA)