Tambores sagrados do Japão

TAMBORES SAGRADOS DO JAPÃO


A imponência de um gigantesco tambor, 1,70 m de diâmetro, e dois jovens japoneses postados em suas extremidades, tensos na expectativa, indica algo inusitado. Num gesto simultâneo, como o kata das artes marciais, inicia-se o ataque ao couro esticado do o-taiko, o grande tambor, num compasso simples, um músico batendo o ritmo básico, o outro improvisando a resposta. O ritmo cresce, os sons se intensificam com o pulsar do coração até que ambos são um só, com o som, o ritmo, os ouvintes e o ar, envoltos pela magia do grande tambor.
De acordo com o tema entrarão outros tambores, o som das cítaras de onze cordas (koto) e dos alaúdes de longos braços (shamisen), o agudo das flautas de bambu vazando o ar, enquanto o troar do tambor mantém o suspense até o clímax que rompe a tensão, num corte radical.
O auditório fica eletrizado pela performance, carregado da energia sexual do som, talvez memória inconsciente de uma lembrança uterina, rememorando a proteção materna.
A origem do o-taiko pertence ao passado remoto da Ásia, quando levado num carro de bois para o centro das batalhas estimulava o combate, e era tão de-terminante que em caso de derrota seus intérpretes eram executados, por não terem afugentado o inimigo. Igualmente, na rotina diária das aldeias, a vida centrava-se no templo xintoísta, onde permanecia o tambor, identificando pela batida a comunidade. E mais ainda, os limites geográficos eram determinados pela distância que os aldeões podiam escutar o grande tambor.
O papel do tambor está ligado diretamente à história sagrada do Japão, ao culto original do xintoísmo. O xinto (caminho dos deuses) se baseia num sincretismo mágico-religioso cercado de significados próprios, em que se considera que todas as coisas, vivas e inertes, em número infinito, árvores, rochedos, água, enfim tudo, é habitado pelos espíritos universais. Eles são os kami, para os quais não existe representação, sabendo-se apenas de sua presença.
Fundamentalmente o xinto é culto à Natureza, rito de caráter agrário, em que o exemplo dos kami pela sua essência primordial, pura, deve ser seguido, nunca invocado, mas venerado.

Os primeiros sacerdotes xintoístas eram xamãs, pertencentes ao clã dos Yamato e que traçavam sua origem divina como descendentes da deusa Amaterasu, no caso o sol. Lembremos que o sol no Japão surge toda manhã das águas marinhas e sendo gerador da vida, tem caráter feminino. Essa é a razão pela qual os xamãs nas festas de purificação (matsuri), purificavam-se pela água, vestiam-se de mulher e entravam em transe diante de árvores sagradas (símbolos fálicos da Terra), à meia-noite. Esses rituais visavam principalmente a fertilidade, e os tambores tinham função de afastar os maus espíritos (tengu), capazes de produzir desastres. Acalmavam igualmente o deus do trovão Susano-o, irmão de Amaterasu, que provocou a divisão entre dia e noite.
O primeiro imperador do Japão, Jimmu Tennô, no ano 660, pertencente ao clã dos Yamato fixa-se na ilha de Honshu, estabelecendo em Nara a primeira capital, que se tornaria a cidade mais sagrada do Japão, e em Ise o templo mais importante. Sendo a mais alta dignidade xintoísta é o descendente direto de Amaterasu, filho do Sol na Terra.
Xinto e tambores formam uma unidade, o som dos tambores se identificando com o som do trovão, do rufar da chuva, do zunir do vento, da água correndo sobre as pedras e das ondas quebrando nos rochedos, é a identificação natural entre o xamã e os kami, que não falam através dos tambores, apenas são homenageados como personificação da natureza.
Mas os tambores sagrados vão além do o-taiko, cujo couro é esticado com cravos de ferro, existem menores cuja tensão se faz através de cordas, até os pe-quenos shime-taiko, que emitem um alto diapasão, afinado continuamente num trabalho extenuante de repuxar e martelar cada laçada de corda.
A execução dos tambores japoneses implica numa sincronia perfeita de mãos e pés, performance atlética que faz parte do ritual, em que os gestos coreográ-ficos não são simples espetáculo, são a evocação ritual dos kami, a invocação à boa colheita, a chegada da primavera e a identificação dos homens com a terra.
Ouvir os tambores sagrados do Japão é ir além da futilidade dos shows, é se liberar das amarras geográficas e bater o coração em uníssono com a Mãe-Terra.



WALTER DE QUEIROZ GUERREIRO
Historiógrafo e Crítico de Arte (ABCA/AICA)