RELÂMPAGOS
POETA NO CAMPO DOS SONHOS
Relâmpagos de Ferreira Gullar alumiam a experiência do Ser
Ver o indizível, elidir o vácuo entre sujeito e o objeto é o caminho do poeta e do crítico. Se a meta é uma só, na ânsia de definir o indizível o crítico toma-se inter-mediário da poesia, buscando códigos de leitura que transformam em conceitos o conhecimento aberto pela percepção. Ferreira Gullar é um desses raríssimos privile-giados, para não dizer o único em nosso país, que consegue pensar a Arte como um exercício da visão, de uma maneira sensorial, e como poeta máximo que é, transpor em palavras o relâmpago da experiência estética.
Qual verdadeiro xamã, intermediário entre o mundo evanescente da Arte, de sonhos do Grande Espírito experimentados pelo homem em estado de vigília, cada abordagem em sua última obra “Relâmpagos (dizer o ver)” é uma lição para nós críticos, e para aqueles que ambicionem alcançar o significado ambíguo e intrínseco do que seja arte. Nós outros habitualmente analisamos a materialidade da obra de arte através de ferramentas formalistas, semiológicas, estruturalistas e psicológicas, dependendo de nosso enfoque ou formação particulares, enquanto Gullar, dotado da síntese poética vai ao cerne da criação, vivencia a experiência sensual do ser. Seu instrumento é a palavra acima do código lingüístico, palavra poética como via de conhecimento, não como representação, porém como existência, elas são. A palavra como tal é aí participação, conhecimento além da separação entre o Eu e o mundo.
Quarenta e nove ensaios revelam seu próprio deslumbramento, e uma res-posta para o que é Arte. Arte que se descobre em Michelangelo, tornando-se um nosso contemporâneo ao se adiantar cinco séculos à sua própria época, mostrando a expressividade do inacabado, da forma nascendo da pedra bruta, e na Pietá Ron-danini da “precariedade do ser humano”. Na vertigem da criação artística em Iberê Camargo sente-se “o instante em que as formas identificáveis se dissolvem no fun-do, fundem-se na pasta primitiva em que o artista transforma a matéria em pintura. Uma pasta escura e, no entanto luminosa, uma espécie de lama estelar, plena de energia, donde deve surgir a fala ameaçada do homem que arriscou perder-se na matéria”.
Questões teóricas cruciais na arte aparecem como clarões na limpidez dos textos, ao compararmos, por exemplo, o problema espacial em Constantin Brancusi e Alexander Calder. Se a questão espacial em Brancusi aparece de modo indireto, presa ao problema do suporte, o tradicional soclo, base que suporta a escultura, Gullar revela a importância do isolamento para que possamos entendê-la como forma singular no espaço, o tênue reflexo de “Leda”, o cisne sobre o mármore branco polido que lhe imprime leveza e flutuação. Na “Coluna sem fim”, ao eliminar o suporte transforma-a na própria escultura-suporte e antecipa o não-objeto, conceito criado por Ferreira Gullar para classificar neoconcretos como Lygia Clark.
Por outro lado, o espaço de Alexandre Calder é a própria escultura, e como Gullar aponta, a escultura se constrói pela ampliação do tempo, nos móbiles a continuidade tempo-espaço faz com que “um se verte no outro e se recupera nele”.
Pela abrangência dos artistas tratados fica claro que a esterilidade da lin-guagem contemporânea, eivada da orientação ditatorial dos curadores que buscam justificativas conceituais para o deserto de idéias das instalações, não emociona Ferreira Gullar que procura no artista ainda a fagulha do ser singular, o surgimento da obra de arte como matéria transformada em expressão. É esse seu recado na “Guitarra”, objeto criado por Picasso em 1913: “aí está uma lição para muitos artistas de hoje que pretendem fazer arte com material pobre, restos de lixo, sucata – o ma-terial pode ser nobre ou pobre, não importa, mas a forma, qualquer que seja tem que se impor à nossa visão por sua expressividade, tem que se destacar entre todas as formas pela força inusitada que só os verdadeiros artistas sabem imprimir à matéria do mundo”.
Seu relâmpago sobre a obra de Emygdio de Barros (1895-1986) interno psi-quiátrico no Engenho de Dentro nos dá a receita de toda a Arte: “realiza a suprema aspiração da arte — criar um universo de significação própria que nasce da experi-ência, mas a ultrapassa para se tornar, ele mesmo, experiência de criar”. Esse o verdadeiro sentido da arte e da vida, transformar o mundo porque aí como ser hu-mano conseguirá alcançar o que existe latente, a experiência. Afinal experiência é a forma como interiorizamos a realidade, em um encontro contínuo de construção e desconstrução, na caminhada pessoal do Ser.
Através da visão da própria essência, encontrada em algo que seja total-mente nova, reconhecível com clareza, que ilumine toda a existência e que não possa ser expressa em palavras, reside o desafio que a Arte nos trás, através de relâmpagos da consciência. Essa busca da essência no mundo real pode-se resumir a um aproveitamento daquilo que não serviria para mais ninguém — “só para a beleza”, como a transmutação de restos civilizatórios executados por Gabriel Joaquim dos Santos (1892-1985), exemplo extremo de sensibilidade cromática, construindo a metáfora poética da Casa da Flor.
No outro extremo, a escultura parida do zero de Amilcar de Castro, nascida do ferro como matéria muda, erguendo os planos como “pétalas adormecidas que surjam do nada”.
Como no Zen, tudo é uma questão de experiência, as palavras por mais justas e precisas que sejam não passam de ruídos no ar. Passam, e fica o silêncio e apenas um dedo se ergue indicando o caminho é o do poeta no campo dos sonhos.
Walter de Queiroz Guerreiro
Membro da Associação Brasileira e
Internacional dos Críticos de Arte (ABCA/AICA)
SERVIÇO
Relâmpagos (dizer o ver), de Ferreira Gullar
Editora Cosac & Naify, 2003, 176 p. 76 ilustrações.