Brasileiros em Paris : reflexos e saudade na pintura

BRASILEIROS EM PARIS: REFLEXOS E SAUDADE NA PINTURA

O encontro de dois mundos na arte latino-americana, particularmente na brasileira, é visto através de vieses diversos dependendo da leitura histórica, sociológica ou puramente artística de seus intérpretes, sendo geralmente aceito como relação de fascínio entre Brasil e Europa, em relação de dependência aparente. Queiramos ou não, o centro artístico que serve de paradigma, encontrou-se sempre em algum outro local, nas grandes capitais do Ocidente, e para nós esse pólo irradiador foi Paris. Aqui a famosa Missão Francesa de 1816 ou Colônia Lebreton, surge como convergência de interesses de uma Academia de Artes Francesa com mestres subitamente desempregados pelo Estado Napoleônico, e transpostos para uma monarquia tropical. D. João V mais que uma visão cultural de longo alcance recebeu-os como auto-convidados, de qualquer modo trazendo uma cultura neoclássica estrangeira, e um vínculo com artistas de primeira linha, afinal Nicolas Taunay fora durante o império um dos maiores pintores das artes francesas. Alexander Von Humboldt, como membro do Institut de France, já acreditara que a Cidade do México ofereceria condições especiais para o estabelecimento de uma academia de Belas Artes no novo mundo, o que de fato aconteceu em pleno regime colonial em 1785, porém a vinda da missão propiciou a fundação da Academia Imperial de Bellas Artes em 1826 no Rio de Janeiro, tendo Jean Baptiste Debret como diretor. Com a Academia se introduz uma noção que será essencial no retorno às origens: volta à antiguidade clássica e às cópias que passam a ser fonte de inspiração, processo que modernamente chamamos de “citação”, em que uma obra recente dialoga com outra consagrada, estabelecendo vínculos entre imagens. Durante sua estada, o então diretor Felix Emile Taunay, em 1845 solicita ao governo a criação de um prêmio de viagem à Europa para aperfeiçoamento na Itália e França, que será decisivo no estabelecimento de vínculos com as metrópoles. Após a Proclamação da República a Academia Imperial cessa de existir, voltando, contudo, a funcionar como Escola Nacional de Belas Artes, mantendo uma tradição conservadora que, apesar do modelo de ensino irá formar grandes artistas, e após a criação da Universidade do Brasil será rebatizada de Escola Belas Artes. Como dissemos, de qualquer maneira o prêmio de viagem estabeleceu vínculos indissolúveis com a Europa, particularmente com Paris, e uma simples leitura de alguns premiados aponta para os reflexos dessa estadia.
Um dos primeiros premiados em 1852 foi Vitor Meirelles de Lima (Desterro/SC, 1832 – Rio de Janeiro, 1903) criando a primeira pintura histórica no Brasil, e uma das primeiras nas Américas em 1861. Trata-se da “Primeira Missa no Brasil” de relevância como arte ideológica, constituindo-se num mito fundador. Consta que o tema fora-lhe sugerido por seu mentor intelectual Araújo Porto-Alegre, pintor e diretor da academia, e assim Vitor lera e relera a carta de Pero Vaz Caminha e documentos relacionados ao descobrimento. Desde então tem havido questionamento sobre esta e outras obras posteriores, os Combates do Riachuelo, Passagem do Humaitá e Batalha dos Guararapes, desde elogios a críticas severas, sobre a fidelidade na reconstrução histórica e o convencionalismo amaneirado das composições, enfatizando o aprendizado com Paul Delaroche, posteriormente Leon Cogniet e Andrea Gastaldi, e mais, obscurecendo a presença de Horace Vernet, autor da Messe de Kabylie que Vitor teria plagiado. À época o crítico Gonzaga Duque elogia a Primeira Missa acentuando que Meirelles como Vernet “nada mais tinha que inventar salvo acessórios”. Tudo se resumia em um grupo principal no qual estivesse consubstanciada a idéia “dominante”, justificando os efeitos da perspectiva, distribuição de luz e sombra, e fidelidade a convicções íntimas. Contudo, a análise mais profunda é a do Prof. Jorge Coli, sobre a obra de Vernet apresentada no Salão de 1855. Vernet que estivera no desembarque dos franceses na Argélia e na submissão das tribos Kabila, como pintor de batalhas se emocionara com o tema, e Coli explica que Vernet teria sugerido a Meirelles a composição como citação e não plágio, o grupo central de ambos os quadros o mesmo, porém invertido, uma obra vertical outra horizontal, uma impositiva de força, outra de conciliação. Vernet tivera atuação decisiva, tanto como artista como cenógrafo no momento histórico distribuindo os grupos, construindo o altar e impondo um símbolo poderoso, a cruz como elemento do “processo civilizatório”. Schwarcz (1998) estuda a importância da obra no contexto romântico atrelado à monarquia, o fato é que a obra de Vitor é apresentada no Salão de Belas Artes de Paris em 1861, portanto dois anos antes da morte de Vernet, não havendo contestação do júri ou manifestação de Vernet, se plágio houvesse. Lembremos ainda que a Academia no Brasil recomendava a seus alunos estudar Vernet, e a citação em pintura histórica era válida e louvável.
Eliseu D’Angelo Visconti (Salerno/Itália, 1866 – Rio de Janeiro, 1944) pintor brilhante da Academia Imperial e prêmio de viagem em 1892, é o introdutor do Impressionismo no Brasil, também do Art Nouveau, e um dos poucos simbolistas ligados a Puvis de Chavannes. Aluno de Vitor Meirelles, após receber a bolsa inscreveu-se na École des Beaux Arts de Paris e ao mesmo tempo no curso de artes decorativas da École Guerin, como aluno de Eugène Grasset. Circulando nos meios parisienses teve contato direto com o grupo de Pont- Aven, particularmente com Paul Gauguin, perfilando ainda o simbolismo com Puvis de Chavannes. Dos impressionistas ficará sua composição de cor como recurso e não como finalidade em si mesma, empregada principalmente nos grandes afrescos, como no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, no teto do Foyer e no pano-de-boca, executado em Paris no ateliê de Puvis de Chavannes. Esta obra grandiosa representando a influência das artes na civilização, com mais de 200 figuras, respira o Art Nouveau pela sinuosidade das formas humanas entrelaçadas em um arabesco contínuo. Ainda do impressionismo virão paisagens de Saint Hubert (1913 – 1916) consideradas o ponto alto de sua produção paisagística, em que posteriormente o crítico Mario Pedrosa nelas apontará influências de Renoir e Pissarro, afastadas da realidade da luz brasileira. Seduzido pela arte decorativa praticou-a em todos os suportes: ferro, esmalte, marchetaria, cerâmica, produzindo sem qualquer recompensa, apenas pela convicção de aproximar forma e conteúdo numa concepção vitalista do mundo, com pioneiro das artes industriais. As obras mais famosas dialogam com o simbolismo, lembrando que a “Dança das Oréades” recebeu medalha de prata na Exposição Universal de Paris de 1900, e obras como “Gioventù” e as “Duas Irmãs” pelos indícios de desejos sensuais, ocultos nas figuras de adolescentes remetem ao movimento, da mesma forma que “São Sebastião Mártir” à antinomia êxtase/morte simbolista.
Anos depois, em 1906, Lucílio de Albuquerque (Barras/PI, 1877 – Rio de Janeiro, 1939) recebe o prêmio de viagem, irá freqüentar a Académie Julian, destino de tantos brasileiros sendo aluno de Marcel Baschet, Henry Royer e Jean-Paul Laurens, e tal como Visconti inscreve-se no ateliê de Grasset. Ainda no período inicial, em 1906 cria a obra “Despertar de Ícaro” de forte conotação simbolista pela aproximação com a Fraternidade Rosa-Cruz, e motivado pelo vôo de Santos Dumont. Transporta assim em termos plásticos uma regra estética da ordem: inscrever em um dogma um símbolo humano, idéia advinda de Puvis de Chavannes que influenciara o Salão Rosa-Cruz. Recebe por ela a pequena medalha de ouro em 1912 no Salão de Paris, e participa na Exposição Internacional de Bruxelas de 1911. Como paisagista sua formação francesa consagrou-o como dos maiores impressionistas brasileiros pela luminosidade e uso da cor na pintura de Plein Air, depurando cada vez mais a fatura, e criando resultados próximos ao expressionismo na década de vinte.
Genro de Eliseu Visconti, Henrique Cavalleiro (RJ, 1892 – 1975) aluno da Escola Nacional de Bellas Artes ainda como aluno de desenho de Daniel Bérard em 1918 recebe a medalha de ouro e logo a seguir o premio de viagem à Europa, matriculando-se na Académie Julian, porém após seis meses não suportando a disciplina cria seu próprio ateliê, abandonando os ensinamentos de seu mestre Adolphe Déchenaud e a orientação impressionista. Inicialmente estudará Cézanne preocupado com a composição, aproximando-se dos pós-impressionistas como Van Dongen na busca de valores tonais. Essa preocupação da forma simplificada na busca da cor irá gerar um ar fauve, mas sensual, algo doce nas figuras, truculento nas paisagens aonde irão abundar contrastes entre cores frias e quentes, azuis e violetas contra amarelos e laranjas, criando em Teresópolis obras ricas em textura. Irá desenvolver atuando como professor de carreira na Escola Nacional de Belas Artes, tendo alunos que também foram prêmios de viagem: Martinho de Haro, Burle-Marx e Ubi Bava.
A atração por Paris nem sempre se realizou através da Escola Nacional de Belas Artes e dos prêmios de viagem, artistas como Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Brecheret, Rego Monteiro e tantos mais, desde os tempos do modernismo dirigiram-se para a capital mundial da cultura. Anita Malfatti (SP, 1889 – 1964) que inicialmente estudara em Berlim, depois New York com a desestruturação de sua linguagem expressionista conseqüente da malfadada exposição de 1917 conhece Tarsila, participa da semana de 22, e obtem uma bolsa de pensionato artístico do estado de São Paulo para estudar na França. Permanecerá ali cinco anos como aluna de Maurice Denis, nos anos loucos da pós-primeira guerra mundial que acabaram com os hábitos da Belle Époque. Ambiente efervescente, que atraia artistas de todo o mundo juntava Nabis, Fauves, Dadaístas e Surrealistas, os recém-chegados não seguiam necessariamente os franceses, os espanhóis encabeçando os independentes, Miró descrevendo a sensação: “Essa Paris me abalou dos pés à cabeça, no bom sentido”. Matisse, Vlaminck, Dufy, Derain, Laurencin, Braque, Gromaire trabalhavam independente de escolas, Van Dongen retratava a sociedade e a moda de vanguarda imposta por Poiret. Os artistas consagrados abstinham-se de Montmartre e o bairro predileto se tornou Montparnasse, freqüentado por Antonio Gomide e John Graz ao lado de Brecheret; Oswald de Andrade conferenciava na Sorbonne, Villa-Lobos alcançava sucesso como compositor e regente, Souza Lima interpretava composições de Frutuoso Viana. Para Anita, tornar-se aluna de Maurice Denis não foi ser marcada pelo artista, que participou como teórico no período revolucionário dos Fauve, dos Cubistas, nos Nabis e na Escola de Pont-Aven. O interesse de Denis por temas religiosos, místicos e simbolistas não eram os de Anita, tendo apenas em comum o interesse nos primitivos italianos. Como um dos fundadores do Salão de Outono, talvez tenha lhe facilitado a entrada em 1924, e em 1925 visita a Exposição de Artes Decorativas que lançaria o Art Dèco que a influencia somente nos ovais da tela “A Japonesa”. Da escola de Paris irá absorver a estrutura compositiva superpondo planos, refinando o colorido e criando leves deformações nos nus, de Matisse virá a influência nos fundos trabalhados visíveis na cena de ateliê “La Rentrée”. Presente nos principais salões, é no de Outono, com a tela “Mulher do Pará” (1927) que a artista une o tema brasileiro de uma figura marginal vista num balcão em Belém do Pará com o tratamento matisseano da cor, união de dois mundos, e sua despedida de Paris.
Contemporânea de Anita em Paris é Tarsila do Amaral (SP, 1886 – 1973) ícone do Modernismo, definitivamente marcada pela estadia em Paris. A artista já ali estivera em 1920/1921 inscrita na Académie Julian sob a orientação de Émile Renard, porém após a Semana de 22 volta a Paris em 1923 aonde irá viver a verdadeira experiência francesa com Lhote, Léger e Gleizes. Estudar com Lhote imprimiu-lhe a valorização da linha, Léger lhe ensinou a monumentalidade, Gleizes a composição estruturada, orgânica de todas as partes. Virá também de Léger o retorno às cores vibrantes, a identificação com o Cubismo “mecânico”, que Picasso chamava de tubular. A novidade em Paris eram as descobertas do inconsciente e o Surrealismo estava no ápice, que Tarsila utilizaria ligando o elemento mágico ao surreal e ao antropofágico de sua própria criação, aproximando-se como pioneira no que posteriormente seria a Arte Fantástica da década de 60.
Esse caráter mítico em Tarsila é o que melhor aponta aproximação de valores formais recebidos de Léger, no tratamento da cor e no A-Plat da pincelada. Contudo, não se trata de fórmula mecânica, existe brasilidade na saudade das cores caipiras do interior brasileiro, com o que melhor se fazia na França, desafiando com audácia crítica e o público no Brasil.
Vicente do Rego Monteiro (Recife/PE, 1899 – 1970) pintor com características únicas pela aparência escultórica de suas telas, desde os doze anos cursou aulas de desenho, pintura e escultura nas Academias Julian e Calarose, tendo pintura e escultura aceitas no Salão dos Independentes em 1913.
Após a Primeira Guerra deixa oito telas com Ronald de Carvalho para participar na Semana de 22, viajando pela França com Gilberto Freire. Dotado de desenho racional, sua pintura se aproxima ao Cubismo de Léger pela volumetria dos elementos, apresentando, no entanto geometria na composição esquematizada, simétrica e monumental. Junto a Gomide, talvez seja o artista que mais se aproximou do Art Dèco, neste caso absolutamente original pela temática que ia das formas marajoaras aos egípcios e bíblicos, utilizando tons ocres e terra avermelhados como sua terra natal. Expôs no grupo da Galeria L’effort Modern junto a Braque, Picasso, Léger, Juan Griz, Gleizes e Metzinger, administrou a revista Montparnasse de Géo-Charles, participando de inúmeras exposições parisienses até a década de 60. Apesar de sua contribuição única ao Modernismo, teve suas obras recusadas ao tentar participar da VII Bienal de São Paulo em 1963.
Sorte diversa teve Di Cavalcanti (RJ, 1897 – 1976) que começara sua carreira como caricaturista e através das rodas literárias participara da Semana de 22 em São Paulo. Fascinado por Paris viaja em 1923 arriscando montar pequeno ateliê em Montparnasse, cursando por algum tempo a Académie Ranson. Anteriormente, graças a Georg Elpons incursara no Impressionismo e no Decadentismo dos simbolistas via literatura, mas logo irá circular na vanguarda absorvendo Cézanne, os cubistas e particularmente Picasso em sua fase clássica, embora posteriormente Di declarasse “em matéria de mulher, modéstia à parte, sou mais eu anti-picassiano”. Em síntese, para Picasso a figura da mulher seria um belo ideal, enquanto para Di metáfora da sensualidade, portanto signo. Sua figura feminina, dentro de uma lógica pós-cubista a partir de 1930 estará livre de rigidez, tratando a figura com sensualidade primitiva aos moldes de Gauguin com as nativas do Tahiti, é o demoníaco como erótico, no sentido freudiano da pulsão. Surgem preenchimentos de fundo ornamentais como Matisse, a cor de Delacroix que Di tanto admirava, e uma plêiade de influências da Escola de Paris: Dufy, Gauguin, Diego Rivera, Beardsley, Picasso, Grosz em certas fases, acrescentando a tudo, especialmente nos últimos anos, um nacionalismo superficial, saudades da terra que sempre marcaram sua obra.
Nos fim dos anos vinte Portinari (Brodósqui/SP, 1903 – RJ 1962) recebe em 1928 o prêmio de viagem, e assim como Di será influenciado por Picasso, absorvendo, contudo de outras fontes ligadas ao pós-cubismo, notadamente de JacquesVillon, irmão de Marcel Duchamp. Essa a origem dos contrastes coloridos simultâneos de cores complementares, solução pós-cezanneana de alternância de pequenos planos, criando volumes. Também da Escola de Paris surgirá um clima surreal, ora lembrando Yves Tanguy nos espaços oníricos, ora Chagall pelo lirismo.
Uma herança do pós-cubismo serão os painéis murais construídos com planos recortados que se na primeira impressão conduzem a Picasso, uma vez que a figura é construída em sintonia com o espaço circundante, num segundo instante percebe-se que sua distribuição de planos recortados em arestas é apenas o fundo, em um procedimento acadêmico. O estilo de Portinari será sempre uma tentativa de conciliação entre tradição e modernismo, ecletismo aparente fundindo pintura primitiva italiana, expressionismo mexicano e Escola de Paris, influenciado por muitos, apreciado e criticado em igual medida.
Antônio Gomide (Itapetininga/SP, 1895 – Ubatuba/SP, 1967) desde 1915 freqüentava a Academia de Belas Artes de Genebra (Suíça) como aluno de Gillard e Ferdinand Hodler, indo para Paris em 1923 e circulando nos mesmos meios de Di Cavalcanti. Adepto do modernismo prontamente aceita o que havia ali de melhor, desenvolvendo técnica de afresco com Marcelo Lenoir, chegando a trabalhar como seu ajudante em Toulouse. Para se manter nos primeiros anos dedica-se à arte aplicada, criando padrões de estamparia para a Maison Rodier, Dreccol e La Maitrise (Galerie Lafayette). Momento propício para o Art Dèco surgido do lado mais austero do Art Nouveau, do racionalismo da Bauhaus e da geometrização do cubismo, era o ideal para a produção em massa, adaptação aos novos materiais: baquelita, cromo, vidro, que exigiam linhas retas e simetria adequadas ao maquinário industrial. Por confluência da história é a época da descoberta do túmulo de Tutankhamon, das civilizações pré-colombianas e indígenas do novo-mundo, da arte negra e das cores quentes dos povos ditos “primitivos”. Gomide permanecerá em diálogo com Brecheret e Vicente do Rego Monteiro, expondo nos Salões de Outono e nos dos Independentes, durante sua estada de 16 anos em Paris. Voltando ao Brasil é um dos fundadores da Sociedade Pró-Arte Moderna, do Clube dos Artistas Modernos. Participando nos três Salões de Maio, entrando em choque com a crítica paulistana. Esta, se antes o aplaudira como “dos maiores pintores brasileiros da atual geração”, depois é atacado pelo decorativismo, finalmente reabilitado pelo nativismo e expressão de brasilidade.
Em 1937 Martinho de Haro (S.Joaquim/SC, 1907 – Florianópolis/SC, 1985) recebe o prêmio de viagem ao estrangeiro indo a Paris aonde irá freqüentar a Academie de La Grande Chaumière, tendo aulas com Othon Friesz, decisivas nas paisagens modernistas que iriam marcá-lo, como um moderno na província, segundo João Evangelista de Andrade Filho. Essa aproximação com os Fauve, inicialmente Friesz virá da pintura A-Plat, no achatamento da perspectiva negando a ilusão tridimensional euclidiana e renascentista. Como ilhéu sua preferência serão as marinhas, não pela temática que seria o natural, mas pela uniformização da luz em timbre elevado que a marinha, com extensas áreas de água e céu, lhe oferece nas formas que não possibilitam sombras. Virá dos Fauve, principalmente de Marquet o tratamento do céu, com cores surdas e amplas se diluindo, gradativas, para depois chocar violeta e amarelo; de Derain serão as nuvens carregadas de azul cerúleo antecipando tempestades. Também de Friesz virá uma forma particular de criar a crista das ondas, com toques curtos como rabiscos vigorosos da massa líquida que se desloca. Martinho de Haro criou um cromatismo único, sensibilidade à paisagem que se afasta do anedótico pelo encontro de luz própria, diluindo as formas sem esfumaturas, leitura poética da paisagem moderna.
Artista de dois continentes, Cícero Dias (Escada/PE, 1908 – Paris, 2003) que se iniciara em pintura na Escola Nacional de Belas Artes em 1925, ali permanecendo até 1928 quando se desilude do academicismo dos cursos, fará carreira contínua entre França e Brasil. Após sua primeira exposição em 1928 no Recife, participa de um marco na arte moderna brasileira, o Salão de 1931 no Rio de Janeiro. Expõe ali um gigantesco painel pintado em técnica mista sobre papel com 15 metros de comprimento: ”Eu vi o mundo, ele começava no Recife”. Obra polêmica escandalizou a sociedade conservadora da época pela crueza das cenas eróticas, carregada, entretanto de lirismo de base popular e absolutamente brasileira na proposta, surrealista chamado por Mário de Andrade “Anjo Músico” e “Chagall dos Trópicos” por José Roberto Teixeira Leite. Sua obra na época é mista de sonho e realidade, impregnada da simplicidade de suas reminiscências, medos infantis e odor da terra como fala Zanini, carregada de fortes apelos mágico-telúricos. Essa atmosfera próxima a Chagall, e ao mesmo tempo quase Naif, que o próprio artista pensava tratar-se de Art Brut, pintura de instinto sem peias da razão, foi assim descrita por Gilberto Freire na exposição de 1928: ”Cícero Dias desarruma as coisas, as pessoas e os animais da terra para juntar depois os objetos que nunca ninguém viu juntos: às vezes os deste mundo com os do outro. Bois voando e peixes de camisa de mulher e tudo numa nova escala, alternam-se as proporções e as relações, mas muitas das coisas das pessoas, das mulheres, dos animais que andam descasados pelos quadros de Cícero são nossos conhecidos velhos, gentes de casa, pessoas de família, tias gordas, bacharéis de Pince-Nez, primas filhas-de-Maria, negras velhas, cabriolés de engenho, vacas de leite, carros de boi, censores de colégio, cabras cabriolas, mulas sem cabeça, luas de boa viagem”. Em 1937, após criar a decoração para um balé de Villa-Lobos na versão de Serge Lifar, com ares de decorativismo de Matisse, Cícero embarca para Paris aproximando-se de imediato dos surrealistas, sendo acolhido por Picasso e Paul Éluard. Sobre este surrealismo tropical, que para mim marca o ponto alto de sua carreira junto a Tarsila e Ismael Nery, o próprio artista declarou em 1981 sobre uma possível inspiração em Chagall: “De forma o que houve, essa aproximação foi da seguinte maneira: é que eu sempre me preocupei com uma pintura popular e também Chagall se preocupou na Rússia (sic.): A pesquisa que eu fiz, no movimento regionalista do norte, de que participei depois do movimento, era mais ou menos parecido com o que houve na Rússia, na época de Chagall...” O fato é, que as aquarelas e os óleos da década de trinta, com suas levitações, símbolos e imagética onírica não tem similar na arte brasileira, a não ser em Ismael Nery, este com repertório universal. Não se consegue rastrear contatos diretos com surrealistas franceses, e os trabalhos do chamado período vegetal realizado em Portugal beiram o anedótico e o associativo por elementos banalizados na forma: abacaxis, melancias, bananas, mulheres-flor, resistindo a uma pintura social, então em voga. Brinca com alegorias como do mamão, as inúmeras sementes fazem-no pensar na “Diana Efesia” de Domenechino (1609) por sua vez inspirada na Artemis Polimastes, mito da grande-mãe com múltiplos mamilos.
Sua amizade com Picasso reflete-se em poucas obras da década de 40, introduzindo-o nos meios boêmios. Como freqüentador da Galeria Denise René, após sua volta a Paris em 1945, irá integrar o grupo Espace, numa guinada para a arte abstrata, integrando o primeiro time junto a Jean Arp, Calder, Poliakoff, Magnelli, todos selecionados por Leon Degand para a Exposição Universal da Arte Moderna (Unesco, Paris). Serão pinturas geometrizadas, vistas como exercícios de metalinguagem dialogando com Sônia Tauber Arp, e principalmente Magnelli, na composição ampla com poucos elementos ocupando grandes áreas, e na contenção de cores, surgindo assim como o primeiro artista abstrato brasileiro. O fato é que na inauguração do MASP apenas três artistas abstratos são convidados: Waldemar Cordeiro, Cícero Dias e Flexor.
O crítico Paulo Sérgio Duarte não vê nas soluções fáceis empreendidas por Cícero Dias a força lírica dos anos trinta, acreditando que o artista se deixou levar em um jogo aonde não há tensão formal ou sutis oposições cromáticas, penso eu, refletindo Magnelli da época.
Na década de 50, Cícero volta à figuração, agora revestida de lirismo, extremamente colorida, com poses hieráticas, mas acima de tudo memória construída, saudade tropical como cenas isoladas de uma história em quadrinhos, ora geométricas ora pós-cubistas, mulheres sintetizadas, modiglianescas entremeadas de vasos de flores chagallianos, permanência eterna de Paris.
Também em Paris no fim dos anos quarenta, Antônio Bandeira (Fortaleza/CE, 1922 – Paris, 1967) após uma fase expressionista e algumas breves incursões no surrealismo, viria a se tornar pioneiro na abstração lírica brasileira, como Cícero fora na geométrica. Participando numa coletiva da Sociedade Cearense de Belas Artes com Inimá de Paula, Aldemir Martins e outros no Rio de Janeiro, recebe em 1946 uma bolsa de estudos para a Académie de La Grande Chaumière, em Paris. Não se adapta ao ensino acadêmico unindo-se então a um grupo de vanguarda com Camille Bryen e Wols, este já reconhecido internacionalmente como pioneiro na arte informal. O grupo, com o nome de Banbryols, expõe uma única e decisiva vez em 1949, pela volta de Bandeira ao Brasil em 1950 e falecimento prematuro de Wols em 1951. Bandeira reconheceu em Wols seu mestre e amigo, afirmando que “é, sobretudo a Paris, fermento da arte e da inteligência, que sou reconhecido”. Mostrou-se cauteloso em falar em influências, que era, e ainda continua a ser indevidamente carregada de sentido pejorativo. Desde seus primeiros trabalhos existe minúcia no desenho, finos traços de nanquim e harmonia entre linhas de superfície e manchas no segundo plano, compondo níveis conscientes estruturais e inconscientes da poética. Indo e vindo entre Paris e Rio, com breves estadas na Bahia e Fortaleza suas sucessivas fases indicam influência de Wols na sobreposição de manchas com densidades diversas alternando opacidade e transparência, resultando em profundidade espacial e volumetria, sucedendo-se favelas e cidades à noite reminiscentes de Maria Helena Vieira da Silva, e numa fase final, formas vibrantes originadas do mundo vegetal: florestas, flamboyants floridos, vibrações de verde, vermelho, amarelo e azul, reminiscências dos casarios, mar e cidades de seu país natal.
Originário de um prêmio de viagem da Divisão Moderna do Salão Nacional, Iberê Camargo (Restinga Seca/RS, 1914 – Porto Alegre/RS, 1994) chega a Paris em 1947, tornando-se aluno de André Lhote e De Chirico, e nas palavras do artista: ”Lhote, como nenhum outro, fez-me ver as identidades na solução de cor, valor, ritmo, enfim todos os elementos da linguagem pictórica no mundo da pintura (sic) que abrange todas as épocas”. Fundando o curso de gravura no Instituto Nacional de Belas Artes (RJ) terá alguns dos mais brilhantes alunos em duas décadas: Ana Letycia, Eduardo Sued, Vergara e Carlos Zílio em pintura. Desde suas obras iniciais na década de quarenta até o final, marca definitivamente a arte brasileira, expressionista de inicio, seja na figura humana ora ausente nas paisagens, ora presente em toda sua força, abstrato sem o ser nos carretéis, vórtices, a meio caminho da restituição da figura. Há um monólogo subjacente à obra sobre a solidão humana, busca metafísica no sentido da vida, tragédia existencial semelhante à de Mark Rothko que dizia ser sua pintura “a concretização de um drama”. Acontece nele o combate pessoal entre artista e pasta matérica da tinta, luta entre memória cristalizada e emoção pura, refletindo a “cozinha” da pintura absorvida na Europa e um longo trajeto até a assinatura: seu próprio gesto plasmado em tela.
A atmosfera político-social do início dos anos 60 muda radicalmente as relações plástico-visuais, Neoconcretismo e Pop-Art, o norte da bússola não aponta mais Paris, é New York o modelo de uma sociedade de consumo e centro gerador da arte. Inicia-se um novo ciclo. Nasce nova tendência na antiarte, o novo ícone é Marcel Duchamp com os tempos pós-modernos, artistas e intelectuais concentram-se na possibilidade de sair dos ateliês e alcançar as massas, profunda ideologia circulando pelo sistema da arte, happenings unem teatro e estética visual através de mensagens de arte popular revolucionária. E então acontecem os anos entre 1964 e 68, e a debandada para... Paris.
Recordamos de um conceitual, Antônio Dias (Campina Grande/PB, 1944) que em seus trabalhos iniciais buscava uma estrutura sinalizante para a compreensão do mundo, símbolos que o traduzissem em matéria plástica. E o salto em 1964, abandonando a pintura tradicional, dividindo o espaço como nas HQ, agregando material estranho, amarrando tubos. Aproxima-se da obra do artista italiano Enrico Baj que conhecera na Bienal de São Paulo de 1963, das receitas de colagens do movimento “figuração narrativa”, buscando mostrar alienações que ameaçam o homem como ser social. Participava em 1964 da IV Bienal de Paris recebendo o premio de pintura, parte para a França em 1966, e no ano seguinte recebe bolsa do governo francês. É uma fase de especulação sobre seu próprio mundo, reflexão irônica sobre sexo/morte. Paulo Herkenhoff, crítico de arte, enxerga nesse período aproximação com Dubuffet nas questões relativas a materiais macios e moles gerando formas antropomórficas, e de fato, algumas delas como Dans Mon Jardin transmitem essa idéia. Porém, depois dos acontecimentos de abril de 68 em Paris, na atmosfera revolucionária e perigosa Antônio Dias muda-se para Milão, permanecendo daquela curta estadia, propostas que seriam desenvolvidas através de sua carreira voltada para uma Pop-Art política. A “Camuflagem” de 1968, simples tecido branco salpicado de negro com a palavra “deserto” no verso e “universo” no reverso mostra a circularidade do sentido e o relativismo da verdade. “History” de 1968 é um saco plástico de Paris, moldado como paralelepípedo mole e negro contendo o “lixo” das manifestações políticas, materialidade de um momento que se desfaz no grande relato do mundo. O artista como espectador e protagonista dará lugar em outros tempos a “Kasakovokasa” (1996) em que as colunas, suspensas como enforcados na Guerra do Kosovo, aludem casa como símbolo do perigo, refúgio do desabrigo na instabilidade do mundo.
Trilhando caminho diverso, Cláudio Tozzi (S. Paulo/SP 1944) que atuara no movimento estudantil, entrando na Bienal de 1967 com o trabalho “Até que enfim”, versão brasileira da Pop-Art em que a figura fala mais do contexto que de si mesma, carregada de ironia numa situação de perda da virgindade, ou na obra “Bandido da Luz Vermelha” (1967) em que uma mulher pisca para outra tem como baloon a frase “desta vez ele entrou na vizinha ainda bem”.Em 1971 vai a Paris pela primeira vez,voltando em 1979 ao receber o Premio de viagem no Salão Nacional de Arte Moderna. Sua formação de arquiteto, conjugada a de diagramador de jornal terminam por aproximar intenção e execução pictórica, colagens e apropriações da linguagem reticulada de Roy Lichtenstein tornando-se sua marca visual. Sua cor-reticula extremamente saturada firma-se como materialidade da cor, conforme o crítico Fábio Magalhães de um nacionalismo cromático, na fase tropicália, repleta de clichês do Brasil para o mundo. Se algo possa ter sobrado da França em sua obra,é da primeira visita a Paris, já que em 1969 aconteceu a Exposição do Movimento Supports/Surfaces com Daniel Deleuze fazendo a releitura da arte norte americana e estabelecendo premissas de uma pintura forte em si, longe de reflexões oníricas, independentes de chassis, coisa que aparece nos recortes de Tozzi em 1984/1985 aonde a pintura é cor, forma e linguagem.
Sérgio Ferro (Curitiba/PR, 1938) principia na pintura em 1963, um ano após se formar em arquitetura na FAU-USP. Sua especialização em Semiótica, tendo como orientador Umberto Eco em 1966 terá a meu ver importância decisiva em sua obra posterior. Envolvido na luta política em 1968 pela participação na Aliança Libertadora Nacional, irá se mudar em definitivo para a França em 1972, passando de imediato a lecionar na École Superieure D’Architecture de Grenoble. Toda sua obra será então uma contínua reflexão sobre a história da arte, em ideário qualificado por alguns como Neo-Renascentista, longe, porém desse rótulo fácil. Suas referências partem de Michelangelo a quem dedicou onze anos de estudos, porém, outros artistas do passado surgem como Leonardo Da Vinci, Mantegna, Caravaggio, talvez até mesmo as flores do flamengo Seghers. Não adianta buscar os originais, isolar as apropriações e compará-las para uma identificação plena. A questão não é essa, não se trata de um virtuosismo raso, as apropriações existem às claras, aliás, o próprio artista quando da exposição sobre os Passos da Paixão declarou: “Não se tratam de objects trouvés, trata-se de apropriação mesmo”. No assim chamado Pós-Modernismo a apropriação é um recurso válido, ao representar pintura anterior com significado claro para quem o exercita desde que confira novo significado para a imagem antiga, caso contrário seria mera referência, sem significado estético. Sérgio Ferro habitualmente parte de um fundo ocre, às vezes negro como área aberta, aonde irá se criar tensão entre a ausência da obra e a estrutura. Sobre isso o filósofo Gilles Lipovetski diz Ferro ser um pintor brechtiano ao expor a maquinaria que é a pintura, revelando a cenografia,e desmontando o teatro próprio dessa arte. Suas imagens inacabadas tomando forma, vigorosos fragmentos anatômicos, musculaturas enérgicas em contorções do maneirismo clássico, áreas chapadas de cor com impasto extenso, colagens de fragmentos de tecido originando tensões de superfície, grafismos e textos manuscritos, nuvens, formas desveladas, enfim tudo remete à pintura e ao esquecimento da memória, sem dúvida a seu mestre Umberto Eco nas escavações de uma idéia, signos aflorando na nitidez da obra. Aqueles fragmentos anatômicos sugerindo o inacabado têm intenção de revelar uma parte da imagem, mostrar e esconder, o aparente é o todo deixado para a completude de nossa imaginação, o desfoque seletivo fotográfico, aquém e além nada existindo. Essa a função da citação, tornar a pintura auto-referente como metalinguagem, descontextualizar o motivo composicional pelo acabamento incompleto. Sua obra é uma metáfora vista de certa perspectiva, como diz Eco, projetando seu mundo sobre um mundo possível. Como qualquer sistema semiótico não são as figuras os elementos primários, mas os contrastes de cor e os de forma que o definem como sistema aberto de leituras. Em suas palavras “A arte não demonstra, a arte propõe”, situação atemporal, França ou Brasil.
Aluno de Iberê Camargo, Carlos Zílio (Rio de Janeiro, 1944) igualmente atuou contra o regime militar, praticando uma arte em que o questionamento social ocupava primeiro plano. Entretanto, em 1974 vai a Paris e dois anos depois, com receio da repressão pela detenção de vários amigos, muda-se com a justificativa de participar da X Bienal de Paris, em 1977. O posicionamento político inicial se reflete em sua linguagem, podendo se expressar através da Pop-Art com mensagens anticapitalistas, encaminhando-se rapidamente para a desmaterialização da obra, pela arte conceitual que se firmava. Por outro lado, a ida a Paris será o mergulho na tradição artesanal da pintura, em seu interesse por Cézanne, Matisse, e a teoria da arte, levando a produzir em 1979 um texto crítico sobre o Modernismo no Brasil e uma tela “O Diabo e o Bom Deus” referindo-se ao Concretismo e à “Nova Figuração” em que as imagens não denotam trabalho, conotação pura em nível psicológico da razão ordenando a forma. Isso irá continuar em seus trabalhos conceituais, coexistindo sempre a crítica e uma vontade de ordem, até sua volta ao Brasil em 1982. Restarão de Paris a criação de uma poética pictórica e os debates críticos de Damisch, Yve-Alain Bois e Jean Clair, que lhe permitiram transitar sintonizado com seu tempo.
Acontece então a “Geração 80”, termo criado no Parque Lage (RJ), painel otimista da pintura nacional. Porém, se havia o culto da materialidade e da expressão, por outro lado a individualidade, a emoção e a subjetividade, características da geração anterior retornaram. Sobraram nomes, alguns famosos, vários passando por Paris, da Casa 7 Daniel Senise, Nuno Ramos, Paulo Monteiro, outros independentes como Tunga e Jorge Guinle. Debrucemo-nos apenas em dois, Jorge Guinle e Daniel Senise em suas relações com a França.
Jorge Guinle (New York, 1947 – 1987) filho do brasileiro Jorge Guinle e da americana Dolores Sherwood, passou sua infância no Rio de Janeiro mudando-se para a Europa em 1955. Cursa em Paris a Académie de La Grande Chaumière em 1969, recebe vários prêmios em sua volta ao Brasil e em 1985 o premio de viagem ao exterior. Durante sua estada inicial adquire sólida cultura visual, desde Matisse como primeira referência, passando por Wilhelm de Kooning e Jackson Pollock, desaguando na transvanguarda italiana: Mimo Paladino e Sandro Chia, nos Neoexpressionistas alemães Lüpertz e Penck, e no francês Olivier Agid, fascinado pelo gestual amplo e cores violentas atravessando o espaço. Acredito que deste último, esquecendo a figuração subjacente, com sugestões da realidade que se afastam de Guinle, o caos de cores dialoga com ele. Não há um nome, mas uma plêiade de artistas que se entrelaçam nos dois movimentos, italiano e alemão, trazendo contribuições e influências. O próprio Guinle apontava isso, inclusive citando Schnabel que partindo de uma imagem a reduz a zero, contudo sua formação inicial na Grande Chaumière imprimiu características de um trabalho bem executado, da mesma forma que Iberê Camargo. A apropriação de cada escola, cada estilo estudado se choca com seu oponente, sendo as contradições suas práxis artísticas. Nasce assim uma pintura selvagem, de embate entre artista e tela, diálogo de cores primárias intensas, áreas luminosas de vermelho e escuras de azul, desiguais e indefinidas nos limites, pinceladas nervosas criando grafismo de traços sinuosos e que empurra o observador como partícipe da ação. É pintura-pintura, apaixonada na transição entre modernidade e contemporaneidade, resgatando o melhor de dois tempos. Daniel Senise (Rio de Janeiro, 1955) faz parte deste revival da pintura, estabelecendo desde o início diálogo com a história da arte. Nas telas iniciais com uma paleta soturna de cores baixas, cria formas volumosas lembrando Baselitz, Markus Lüpertz e Anselm Kiefer, alinhado, portanto com os neoexpressionistas alemães. Acompanhava o momento pintando sobre grandes lonas, despreocupado com os demais da Casa 7, mas em 1984 recebe no VII Salão Nacional o prêmio de viagem no país. Seu trabalho começa então a se preocupar com questões formais de figura-fundo, matéria e construção de paisagens imaginárias perturbadoras, como Flávio Shiró já o fizera. Surgem mostras internacionais, até a exposição “Modernidade” de 1987/88 no Musée de L’Art Moderne de La Ville de Paris, e em 1990 na XLIV Bienal Internacional de Veneza. Sua matriz imagética, de caráter antropofágica, dialoga com arquétipos e inúmeras referências, desde o Juízo Final de Michelangelo até latino americanos como Guillermo Kuitca, Anselm Kiefer,os surrealistas Max Ernst e Yves Tanguy. O acréscimo por justaposição de materiais diversos, impressão do solo sobre pigmento pictórico, criam caminhos na construção da imagem, uma escavação arqueológica às avessas articulando abstração e figuração com propriedades antitéticas. Existe ali o que está e o que o observador deduzirá, num mergulho que Richard Wolheim chama de “ver bem”, sugerindo formas sem descrevê-las em detalhe. Na França como no Brasil e em toda história da arte, há ressonâncias próprias da memória no processo fenomenológico do olhar: construção do conhecimento a partir da própria imagem.
Decisões pessoais, prêmios, pressões políticas, a cada artista houve um momento conduzindo à decisão da ida ao estrangeiro. No caso de Juarez Machado (Joinville/SC, 1941) esta vocação principia cedo, estudando de 1961 à 1965 na Escola de Música e Belas Artes do Paraná (Curitiba) transferindo-se para o Rio de Janeiro em 1966 aonde irá trabalhar na Rede Globo de Televisão criando charges. Em 1969, já conhecido nacionalmente como desenhista, recebe o Prêmio Internacional do V Salão de Humor na Itália, viajando posteriormente várias vezes para a França. Acompanhando tendência nacional, com linguagem extremamente pessoal, calcada no realismo mágico então em voga expõe em 1983 na cidade de Strasbourg (França), decidindo-se em 1986 fixar-se definitivamente em Paris, ambicionando novas perspectivas na carreira artística. Sua obra pictórica será marcada por um caráter literário, provavelmente das leituras realizadas antecedendo a criação de séries. A pesquisa sobre o tema, memorização de detalhes, ambientação, serão depois transpostos em imagens como ilustrações de uma história reconstruída na memória resgatada como lembrança criada, caso das três mulheres inúmeras vezes presentes, alusivas quem sabe ao tema mitológico das “Três Graças”, visto na psicologia como busca do conhecimento e de si mesmo. Lembramos aqui de uma passagem de André Malraux, que nos diz que nos diz que aconteceu ao artista ao fixar um instante privilegiado, não o fixa para reproduzir, mas porque o metamorfoseia. Esse é o caso, embora Juarez não se considere leitor, em certo período nutriu profunda admiração por Paul Valéry, e através de sua obra poética irá construir imagens calcadas no isolamento do ser humano que lhe falam de perto, nostalgia de uma Belle Époque que não viveu, mas admira, revivendo em suas telas contemplação e ação presentes em Valéry. O decadentismo e os dândis com vidas voltadas ao prazer dos sentidos transformam-se em figuras amaneiradas de um Fin-de-Siècle, eternizando a oscilação entre a contemplação e a vontade erótica em simulacro prazeroso dos ambientes retrô, como os propostos por Balthus. Sua obra recorda também os melhores ilustradores e cartazistas franceses nos anos vinte com cenas do Grand Monde, festas e luxo como Erté, Georges Lepape e Jean Dupas. O contorno com figuras definidas sobrepostas a um fundo são recortes espaciais da litografia, sua luz será sempre a parisiense, luminosa e contrastada, entretanto tropical pela saturação de cores de uma Copacabana a “Paris dos trópicos”, que é a outra ponta de seu balanço entre França e Brasil.
Ares de Paris, pintura de Brasil, contradições surgindo naquilo que a natureza dissolve e a arte concentra, ampliando a materialização de experiências únicas em visões de Mundo.



Walter de Queiroz Guerreiro, Prof. M.A.
Historiógrafo e membro da Associação Brasileira
e Internacional de Críticos de Arte (ABCA/AICA)