Guerrilheiro da Arte


GUERRILHEIRO DA ARTE

A poética de outra maneira de compreender a realidade.

Eram os anos de chumbo, na virada da década de 60. Augusto Boal encena-va Arena conta Zumbi, Plínio Marcos chocava platéias com Navalha na Carne, Chico Buarque cantava Pedro Pedreiro, e nas artes plásticas nada ameaçava o concretismo, afirmação da forma sobre o conteúdo. A dura realidade, no entanto, era maior que a utopia, tornando impraticável o alheamento diante da convulsão social diária. Surge nas artes plásticas o esforço do compromisso social em Gerchman, João Câmara, Antônio Henrique Amaral, e se alastra. Neste contexto de angústia, de proteção à própria existência aparecem Barrio, Antônio Manuel, Nelson Leirner e Cildo Meireles.
Cildo é hoje a semente viva do pensamento de Duchamp, legítimo sucessor de Hélio Oiticica e Lygia Clark, o mais sutil e subversivo crítico da sociedade brasileira. Recentemente foi exposta retrospectiva de sua obra no MAM (SP), seguindo para o MAM (RJ), e publicada apurada monografia na série contemporary artists (Cosac & Naify ed., SP) onde se pode acompanhar passo a passo seu trabalho. Trabalho que à primeira vista poderia ser taxado de conceitual, é mais que isso, é arte utilizada para combater as mazelas, seu combate é o bom combate, impregnado da estratégia de guerrilha. Rever sua obra parece-nos uma aula prática de Carlos Marighella, criando a rede dentro da rede, utilizando as massas populares contra o próprio sistema, insuflando o confronto do sistema de trocas capitalista com o próprio capitalismo. Uma obra que reflete o tempo todo sobre as metáforas, o discurso conceitual tornando-se explicitamente material, sinalizando e aceitando que o objeto de arte deve seduzir instantaneamente, sua força poética sendo compreensível a todos, independente do discurso. Por isso mesmo, dentre todos os artistas contemporâneos trabalhando arte-objeto e instalações, Cildo ocupa um espaço único, totalmente autônomo e independente da “arte com bula”, aquela que necessita de instruções para o uso (ou do auxílio da palavra para compreensão dos pobres mortais). Nada existe ali gratuitamente, a vida diária e o fazer artístico se interpenetra, a sedução da matéria e do olhar se complementam na ambigüidade da escolha do artista, transformando matéria-prima em símbolo, emprestando novos significados ao entorno, negando significado ao signo. Perpassa toda sua obra uma crítica aos valores aceitos, longe de um discurso ideológico explícito, e por isso mesmo na linha de frente com Tunga e Antônio Dias reconhecido no exterior, com mostras coroadas de êxito no New Museum Of Contemporary Art (New York), Moma, Centre Georges Pompidou (Paris) e Museu D’Art Comtemporani (Barcelona).
Sua história é fruto de sua própria herança familiar, ligado desde a infância à luta pelo direito e questões políticas. Nos anos 50/60 seu pai Francisco e seu tio Apoena já defendiam os direitos dos índios à terra, lado a lado aos irmãos Villas-Boas. Penso que, porisso mesmo Cildo não acredite no sonho do paraíso perdido de um mundo sem conflitos, mas na realidade terrível de um participante da história.
No auge do regime militar, em 1970, o governo decide comemorar a Inconfi-dência Mineira, utilizando-se da figura de Tiradentes como um dos heróis do panteão nacional. Cildo é convidado para inaugurar o Paço das Artes em Belo Horizonte, realizando então um de seus trabalhos mais controversos. — Tiradentes: totem – monumento ao preso político. Monta uma instalação com um patíbulo, um poste encimado por termômetro clínico, amarra dez galinhas vivas e as queima diante de platéia estarrecida. Seu objetivo: o tema vida-morte, a autoimolação de monges budistas protestando contra a guerra do Vietnã, o uso do Napalm, a hipocrisia na revisão dos valores históricos, a violência dos governos. O deslocamento do tema (figura histórica x quotidiano) é própria metáfora da obra de arte a identificação dos homens com os animais e a intensificação do louvor na chacina de inocentes.
A luta do artista continuou tentando minar o próprio sistema de circulação, criando as Inserções em circuitos ideológicos e depois Circuitos antropológicos nos quais buscava usar os mecanismos de distribuição do capitalismo e o consumo de mercadorias. Criou fichas de barro prensadas idênticas às de uso telefônico, do transporte público e em máquinas de refrigerantes, insinuando sabotar o sistema. O amadurecimento levou à criação do Zero-cruzeiro (1974) e Zero dólar (1978) em que reconheceu ser a moeda representação do país, e parte de um jogo de poderes quanto à territorialidade. No Zero-cruzeiro, na reserva em que se colocam efígies de heróis nacionais, coloca no anverso um índio, no reverso um interno de manicô-mio. Ambos são seres marginalizados sem qualquer valor para a sociedade, da mesma forma que a moeda nacional sofria desvalorização contínua, rumando para o valor zero. No “Projeto Cédula” (1970) as cédulas eram carimbadas com mensagens políticas e reinseridas em circulação — é o caso do carimbo “Quem Matou Herzog?”, pergunta altamente incômoda ao regime porque circulava livremente, ninguém querendo guardá-la ou destruí-la para fugir à dúvida.
Na negação ao monetarismo que envolve a obra de arte numa aura especial, Cildo discute novos rumos para a arte-objeto, negando o caráter de unicidade do original. O minimalismo chega a seu máximo de contenção numa instalação como Cruzeiro do Sul (1969-70) em que um minúsculo cubo de 9 milímetros, metade pinho, metade carvalho é exposto no centro de um grande espaço. A representação poética é a da insignificância entre o objeto de arte e as hierarquias culturais das obras consagradas. O “simples” cubo é a condensação do conceito indígena do fogo sagrado, produzido pelo atrito entre duas madeiras, uma mole e outra dura, gerando o fogo, manifestação divina.
Da mesma forma o questionamento da relatividade entre distâncias e dimen-sões se faz com a caixa Arte física, estojo de madeira contendo um mapa em que se assinala a distância de 30 km, e um barbante com a mesma extensão. No cami-nho de Gestalt é a caixa Para ser curvadas com os olhos, contendo duas barras de ferro, uma reta e outra curva, e uma placa com a declaração de que ambas são curvas. Explora ele aí o excesso de energia pessoal dos espectadores, que se es-forçam no exame detido da barra reta, buscando uma curvatura inexistente. Brin-cando igualmente com a visão e com um recado da potencialidade do perigo e da violência implícita, é o Estojo de geometria (neutralização por oposição e/ou adi-ção), contendo dois grandes pregos, 600 lâminas de barbear e dois cutelos solda-dos pelos gumes, incapacitando-os do poder de corte.
Comentar sobre as instalações é tarefa quase impossível, pela excelente so-lução formal aliada a conteúdo, razão pela qual comento apenas duas. Desvio para o vermelho foi montada no Museu de Arte Moderna (RJ, 1984) e reinstalada na XXIV Bienal (SP, 1998), consistindo em três ambientes interligados, no primeiro uma sala em que todos os objetos são vermelhos, da mobília a eletrodomésticos, de alimento a peixe de aquário, com exceção das paredes brancas. No segundo ambiente, uma minúscula garrafa derramou um líquido vermelho que se espalha por toda a superfície, criando subversão no universo conhecido: como frasco tão pequeno pode conter tanto líquido? Na última sala em total escuridão, uma pia branca totalmente fora de prumo, e uma torneira aberta lançando um jato vermelho que preenche continuamente a pia. O som do líquido escorrendo e a cor, somado aos dois ambientes anteriores sugere algo sinistro, a lembrança de um crime. A cena foi de fato vivida, o assassinato de um jornalista em que foi pichada na parede com sangue, a frase: “Aqui morreu um jornalista defendendo a liberdade de expressão”.
Instante bem atual é a da segunda instalação, momento de paz na obra insti-gante de Cildo, Marulho na Bienal de Johanesburgo (1997) em que o mar é evoca-do por um tapete de livros iguais, abertos com fotos coloridas reproduzindo as on-das. Avançando pelo deck de madeira, o espectador ouve a palavra água repetida inúmeras vezes em idiomas os mais diversos, em tons variados, crianças e adultos, numa sugestão de universalidade. Aqui o artista propõe a questão da realidade virtual, da ilusão dos sentidos. A memória psicológica de cada um evoca a lembrança do mar, confrontada pela imagem visual da água e do caos sonoro da palavra, recordando o som do oceano em ondas sucessivas.
Usando a velha frase de Ezra Pound, será o artista a antena da raça? A obra de Cildo Meireles parece dizer sim a esta questão, lembrando-se a coincidência (o paradoxo junguiano da sincronicidade) quando o artista cria as Malhas da liberda-de (1976), módulo de rede metálica que intersecciona outro e outro, ad infinitum. A grade cria o plano, que gera o espaço e este o volume. No mesmo ano de exibição da obra na Bienal de Paris, o matemático e físico norte americano Feigenbaum de- senvolve a teoria do coeficiente universal, constante matemática baseada nas “cas-catas de bifurcações”, aplicável à obra de Cildo.
Vejo Cildo Meireles como o epígono de Marcel Duchamp, na busca contínua de paradoxos, atração e repulsão, a arte em toda parte e em lugar nenhum, a tensão do jogo na premonição do mestre de que “a arte será convulsiva ou não será”.

Walter de Queiroz Guerreiro Crítico de Arte (ABCA/AICA)