Cenários Possíveis
Ver o mundo como um cenário teatral, de tendência metafísica, da forma como Antonin Artaud definiu o caráter divino nas representações orientais, é a chave para a compreensão da obra plástica de Ruben Esmanhotto. O homem é esse ser ausente de suas telas, embora como artista e indivíduo tenha dimensão ontológica, esteja inserido no mundo e como tal possa representá-lo, assumindo entretanto uma posição discreta, nas coxias, na expectativa de uma ação que irá acontecer não se sabe quando. Se sequer houvesse a sombra de sua presença teríamos um registro temporal, o mistério ocorrendo pela imobilidade da cena que pressupõe um observador, presença não manifesta de alguém que não pode se libertar da tensão. Situação dramática imaginária de uma catarse que não vem, na constatação de que abaixo da realidade aparente existe outra oculta.
Este o ponto crucial de sua pintura, não se pretende ver nela uma obra documental, iconográfica ou simples registro de uma cidade ou tempo vivido, suas casas, ruas, praças, tem valor simbólico como cenários de um tempo que não tem passado ou futuro. É o registro de uma possibilidade do tempo, fragmento de possíveis eventos sucessivos no tempo. Corresponde àquele exemplo aristotélico da flecha de Zenon, que ao dividir o tempo infinitamente em instantes, verdadeiros átomos temporais, conclui pela imobilidade, na filosofia do instante criado. O tempo representado é a mais-valia psicológica sobre o espaço, no paradoxo de Bergson de que ao termos consciência do tempo, temos apenas o nada. Ele é o tempo pancrônico do poeta T. S. Eliot: “ o tempo presente e o tempo passado / estão ambos presentes no tempo futuro / e o tempo futuro contido no passado”. Como obras do imaginário as telas refletem essa tentativa de aprisionar o tempo, por sua vez domínio da memória. Surgem como a possibilidade de encarar entre tantos destinos possíveis, o poder de parar o devir.
Uma luz crua, seca, sem gradações entre o fundo de uma platéia inexistente e o cenário iluminado, cria apenas algumas sombras projetadas. Registro da desolação do homem inexistente, de uma solidão pesada e suspensa em que tudo está em perfeita ordem – da geometria traçada pelo homem, que na ausência define o caráter metafísico, a onipresença do enigma. Essa luz que nega o movimento, luz cinematográfica de um iluminador teatral, cria a atmosfera do silêncio. Silêncio espectral que o acabamento liso, sem texturas, esvazia a presença do próprio artista na anomia da casa e do seu cronista.
Vive ali a essência da luz opondo-se à resistência da matéria, parcialmente absorvida, mal refletida nas vidraças fechadas, entre massas opacas de paredes, cortando as arestas duras dos casarios, manifestando sua condição única e primeira de desvendar o processo de conhecimento. Liberta da fruição da vontade, ela cria o contraste entre a arquitetura e o drama que se esconde no cenário.
Cenário como espaço das figurações, pensamento simbólico de um distanciamento proposital da casa como amparo de um refúgio, e de um tempo vivido. Poderia ser o espaço de nossas solidões passadas, mas existe algo que nos impede de vivenciá-lo: a inexistência da lembrança, da não-casa por ser cenário. Como tal, é a inversão da moradia, na fenomenologia da habitação a ausência humana transcende o espaço geométrico. Não sendo casas-habitação, são construções imagéticas de estados de alma, imagens de teatro em que os cenários são representações do mundo, um e outro expressões da vontade. Cenários metafísicos em que Ruben Esmanhotto cria realidades transcendendo a experiência do sensível, pela reflexão sobre a existência de sua passagem no tempo, este paradoxo da memória.
Walter de Queiroz Guerreiro
Membro da Associação Brasileira e Internacional
de Críticos de Arte (ABCA/AICA)
Ver o mundo como um cenário teatral, de tendência metafísica, da forma como Antonin Artaud definiu o caráter divino nas representações orientais, é a chave para a compreensão da obra plástica de Ruben Esmanhotto. O homem é esse ser ausente de suas telas, embora como artista e indivíduo tenha dimensão ontológica, esteja inserido no mundo e como tal possa representá-lo, assumindo entretanto uma posição discreta, nas coxias, na expectativa de uma ação que irá acontecer não se sabe quando. Se sequer houvesse a sombra de sua presença teríamos um registro temporal, o mistério ocorrendo pela imobilidade da cena que pressupõe um observador, presença não manifesta de alguém que não pode se libertar da tensão. Situação dramática imaginária de uma catarse que não vem, na constatação de que abaixo da realidade aparente existe outra oculta.
Este o ponto crucial de sua pintura, não se pretende ver nela uma obra documental, iconográfica ou simples registro de uma cidade ou tempo vivido, suas casas, ruas, praças, tem valor simbólico como cenários de um tempo que não tem passado ou futuro. É o registro de uma possibilidade do tempo, fragmento de possíveis eventos sucessivos no tempo. Corresponde àquele exemplo aristotélico da flecha de Zenon, que ao dividir o tempo infinitamente em instantes, verdadeiros átomos temporais, conclui pela imobilidade, na filosofia do instante criado. O tempo representado é a mais-valia psicológica sobre o espaço, no paradoxo de Bergson de que ao termos consciência do tempo, temos apenas o nada. Ele é o tempo pancrônico do poeta T. S. Eliot: “ o tempo presente e o tempo passado / estão ambos presentes no tempo futuro / e o tempo futuro contido no passado”. Como obras do imaginário as telas refletem essa tentativa de aprisionar o tempo, por sua vez domínio da memória. Surgem como a possibilidade de encarar entre tantos destinos possíveis, o poder de parar o devir.
Uma luz crua, seca, sem gradações entre o fundo de uma platéia inexistente e o cenário iluminado, cria apenas algumas sombras projetadas. Registro da desolação do homem inexistente, de uma solidão pesada e suspensa em que tudo está em perfeita ordem – da geometria traçada pelo homem, que na ausência define o caráter metafísico, a onipresença do enigma. Essa luz que nega o movimento, luz cinematográfica de um iluminador teatral, cria a atmosfera do silêncio. Silêncio espectral que o acabamento liso, sem texturas, esvazia a presença do próprio artista na anomia da casa e do seu cronista.
Vive ali a essência da luz opondo-se à resistência da matéria, parcialmente absorvida, mal refletida nas vidraças fechadas, entre massas opacas de paredes, cortando as arestas duras dos casarios, manifestando sua condição única e primeira de desvendar o processo de conhecimento. Liberta da fruição da vontade, ela cria o contraste entre a arquitetura e o drama que se esconde no cenário.
Cenário como espaço das figurações, pensamento simbólico de um distanciamento proposital da casa como amparo de um refúgio, e de um tempo vivido. Poderia ser o espaço de nossas solidões passadas, mas existe algo que nos impede de vivenciá-lo: a inexistência da lembrança, da não-casa por ser cenário. Como tal, é a inversão da moradia, na fenomenologia da habitação a ausência humana transcende o espaço geométrico. Não sendo casas-habitação, são construções imagéticas de estados de alma, imagens de teatro em que os cenários são representações do mundo, um e outro expressões da vontade. Cenários metafísicos em que Ruben Esmanhotto cria realidades transcendendo a experiência do sensível, pela reflexão sobre a existência de sua passagem no tempo, este paradoxo da memória.
Walter de Queiroz Guerreiro
Membro da Associação Brasileira e Internacional
de Críticos de Arte (ABCA/AICA)