A ALMA DO SAMURAI
A Alma do Samurai
Walter de Queiroz Guerreiro, Prof. M.A.
Historiógrafo e Crítico de Arte (ABCA/AICA)
A espada japonesa inúmeras vezes foi chamada a alma viva do Samurai e considerada seu bem mais precioso, objeto de veneração e de um código de ética impregnado do Bushido, o caminho do guerreiro.
A classe dos Samurais, cuja palavra se escreve no ideograma que significa “Aquele que Serve”, surge na primeira metade do século X, associada a expansão da fronteira norte no período Heian. Originalmente bandos armados, os Bushi-dan, terminam por ser de vital importância na defesa da capital Kioto, agregados a duas casas senhoriais, o clã dos Taira e dos Minamoto. Essas casas militares acabam por se dividir em inúmeros ramos, criando assim um estamento da sociedade. Embora os samurais sejam vistos no Ocidente como personagens desumanos, a cultura de Kioto era essencialmente pacífica, punições severas e penas de morte raríssimas. A classe guerreira, como toda a corte, dedicava-se ao aprimoramento do espírito, à cerimônia do chá, arranjo floral, poesia e práticas do Zen Budismo. Sobre isso o Dr. Suzuki afirma que o bom lutador era em geral ascético ou estóico, o que significava ter uma vontade férrea fornecida pela prática do Zazen, a meditação para ampliar o autocontrole sobre as emoções, o significado da vida e uma indiferença com a morte. Daí ao código ético do confucianismo, de que uma espada não deveria ser sacada fora de seu contexto, e de que uma vez desembainhada seria para um uso eficiente. Nas mãos de um individuo arrogante se tornaria uma arma perigosa, mas para um adepto do Bushi-no-Nasaké se tornaria o sentido da misericórdia e benevolência do guerreiro, capaz de dar a vida. Existe assim uma tradição associando o portador da espada ao artesão que a forjou, e mais, que a personalidade do espadeiro impregna a lâmina, que adquire assim uma vida oculta. Sobre isso existe uma história ilustrando fato relativo aos dois maiores fabricantes de espadas do Japão: Masamune (1264-1343) e Muramasa (1322). Muramasa era um espadeiro brilhante, mas mentalmente instável, suas lâminas tinham reputação sinistra e levavam seus proprietários a conflitos sangrentos terminando com a própria morte, enquanto as de Masamune transmitiam sua energia através da bainha criando o comentário: Muramasa é terrível, Masamune é humano. Assim, um homem que pretendia testar as duas espadas colocou a lâmina de Muramasa nas águas de um riacho para ver o que acontecia com as folhas flutuando na corrente – cada folha que tocava a lâmina era cortada perfeitamente em duas. Ao colocar a espada de Masamune as folhas desviavam-se da lâmina e seguiam incólumes.
As profissões de espadeiro e de fabricante de todos os acessórios utilizados na montagem da espada eram altamente reputadas no Japão, constituindo-se na categoria mais alta entre artesãos e artistas. Até mesmo samurais e imperadores chegaram a forjar lâminas de espadas dado o caráter semirreligioso do processo. O espadeiro tradicional (Kaji) levava uma vida abstemia e associada a princípios xintoístas, cada etapa da fabricação vista à luz de um cerimonial sagrado. Nas operações mais críticas do processo, na têmpera da lâmina e seu polimento, o espadeiro vestia traje cerimonial de corte (Kariginu e Yeboshi), tornando-se o local uma espécie de santuário protegido pela corda xinto (Shime-Nawa) para afastar as influências negativas. No inicio do dia o artesão se purificava com abluções frias, orava aos espíritos protetores (Kami) para auxiliá-lo no trabalho, e todos os membros da família eram afastados, exceto seu auxiliar. Sua alimentação era cozida no fogo sagrado da forja, nenhuma carne ou bebida alcoólica era ingerida, e todo relacionamento sexual proibido por ser tabu.
A fabricação de uma lâmina perfeita levava vários meses, começando na forja do aço a partir de uma barra de ferro dobrada de 15 a 20 vezes, formando inúmeras camadas de metal. O fogo era alimentado por um tipo especial de carvão de pinheiro, e a cada recolocação da barra no fogo esta era recoberta com uma camada de argila aplicada com um feixe de palha, jamais se tocando a lâmina com as mãos para evitar impurezas. O ritmo das marteladas na forja era dado cantando mantras budistas (e no caso Muramasa com blasfêmias). Uma vez forjada a lâmina passava-se ao ponto crítico da têmpera do corte, cobrindo-a com carvão até um terço de sua largura, desenhando com um bambu uma linha separando o corte do dorso da espada. Nesse instante era mergulhada em água quente, resultando numa lâmina com o dorso mais mole e a área de corte muito dura separadas pelo Yakiba, a linha de têmpera, praticamente a assinatura do forjador. Criava-se assim uma lâmina com núcleo macio e laterais duras, acentuando-se a dureza na área de corte. Seguia-se então o polimento da lâmina e o afiamento do corte, podendo chegar a cinqüenta dias.
Como a espada japonesa deriva-se da chinesa, o formato inicial era reto com duplo gume, mas a partir das chamadas cinco tradições correspondentes às províncias de Yamashiro, Yamato, Bizen, Soshu e Mino no ano 700 D.C., as lâminas passaram a ter uma leve curvatura característica facilitando o saque, e o corte passa a ser único. Após as lutas entre o norte e o sul do Japão no período Kamakura, com a guerra civil intermitente apenas o samurai podia portar o par de espadas (Daisho), comerciantes usando somente a curta (Wakizashi) e os demais a adaga (Tanto). Pela importância da espada criou-se vasta terminologia para designar os tipos, desde o Notachi empregado nas invasões Mongóis (1274-1281) portado nas costas e atravessado devido às suas grandes dimensões, o Tachi usado pelos Shoguns e Samurais de alto grau a cavalo, suspenso como no Ocidente e do qual existe o padrão cerimonial usado na corte, os Katana correspondendo à espada normal, presos na faixa da cintura (obi) com o corte para cima de maneira a sacar cortando, e diversos estilos de adagas.
Como as lâminas eram entregues em bainhas simples (Shirasaya), depois se enviavam para especialistas em montagem, criando-se as guardas das espadas (Tsubas) que são um capítulo à parte como obras de arte, desde as simples de ferro até aquelas de laca, as incrustadas de ouro e prata, as ligas especiais, até a ponto de um decreto de 1830 proibir luxo excessivo nas espadas de corte. Todos os detalhes de montagem desde empunhaduras, bainhas, guarnições de lâmina, estiletes e pequenas facas que acompanhavam os tanto (adagas) e os Wakizashi (espadas médias) são objetos de decoração artística.
Torna-se impossível resumir o mundo que engloba 1500 anos de historia japonesa, 12000 espadeiros e 3000 fabricantes de acessórios, porém convém lembrar que na tradição da espada permanecem os cinco elementos: terra, metal, fogo, água e madeira que reagem entre si, na harmonia cósmica do Yin/Yang. A espada japonesa permanece assim como base real do prestigio dos samurais, incorporando em sua historia ensinamentos morais, filosóficos e religiosos, toda uma tradição técnica e artística de um mundo de obrigações.
A Alma do Samurai
Walter de Queiroz Guerreiro, Prof. M.A.
Historiógrafo e Crítico de Arte (ABCA/AICA)
A espada japonesa inúmeras vezes foi chamada a alma viva do Samurai e considerada seu bem mais precioso, objeto de veneração e de um código de ética impregnado do Bushido, o caminho do guerreiro.
A classe dos Samurais, cuja palavra se escreve no ideograma que significa “Aquele que Serve”, surge na primeira metade do século X, associada a expansão da fronteira norte no período Heian. Originalmente bandos armados, os Bushi-dan, terminam por ser de vital importância na defesa da capital Kioto, agregados a duas casas senhoriais, o clã dos Taira e dos Minamoto. Essas casas militares acabam por se dividir em inúmeros ramos, criando assim um estamento da sociedade. Embora os samurais sejam vistos no Ocidente como personagens desumanos, a cultura de Kioto era essencialmente pacífica, punições severas e penas de morte raríssimas. A classe guerreira, como toda a corte, dedicava-se ao aprimoramento do espírito, à cerimônia do chá, arranjo floral, poesia e práticas do Zen Budismo. Sobre isso o Dr. Suzuki afirma que o bom lutador era em geral ascético ou estóico, o que significava ter uma vontade férrea fornecida pela prática do Zazen, a meditação para ampliar o autocontrole sobre as emoções, o significado da vida e uma indiferença com a morte. Daí ao código ético do confucianismo, de que uma espada não deveria ser sacada fora de seu contexto, e de que uma vez desembainhada seria para um uso eficiente. Nas mãos de um individuo arrogante se tornaria uma arma perigosa, mas para um adepto do Bushi-no-Nasaké se tornaria o sentido da misericórdia e benevolência do guerreiro, capaz de dar a vida. Existe assim uma tradição associando o portador da espada ao artesão que a forjou, e mais, que a personalidade do espadeiro impregna a lâmina, que adquire assim uma vida oculta. Sobre isso existe uma história ilustrando fato relativo aos dois maiores fabricantes de espadas do Japão: Masamune (1264-1343) e Muramasa (1322). Muramasa era um espadeiro brilhante, mas mentalmente instável, suas lâminas tinham reputação sinistra e levavam seus proprietários a conflitos sangrentos terminando com a própria morte, enquanto as de Masamune transmitiam sua energia através da bainha criando o comentário: Muramasa é terrível, Masamune é humano. Assim, um homem que pretendia testar as duas espadas colocou a lâmina de Muramasa nas águas de um riacho para ver o que acontecia com as folhas flutuando na corrente – cada folha que tocava a lâmina era cortada perfeitamente em duas. Ao colocar a espada de Masamune as folhas desviavam-se da lâmina e seguiam incólumes.
As profissões de espadeiro e de fabricante de todos os acessórios utilizados na montagem da espada eram altamente reputadas no Japão, constituindo-se na categoria mais alta entre artesãos e artistas. Até mesmo samurais e imperadores chegaram a forjar lâminas de espadas dado o caráter semirreligioso do processo. O espadeiro tradicional (Kaji) levava uma vida abstemia e associada a princípios xintoístas, cada etapa da fabricação vista à luz de um cerimonial sagrado. Nas operações mais críticas do processo, na têmpera da lâmina e seu polimento, o espadeiro vestia traje cerimonial de corte (Kariginu e Yeboshi), tornando-se o local uma espécie de santuário protegido pela corda xinto (Shime-Nawa) para afastar as influências negativas. No inicio do dia o artesão se purificava com abluções frias, orava aos espíritos protetores (Kami) para auxiliá-lo no trabalho, e todos os membros da família eram afastados, exceto seu auxiliar. Sua alimentação era cozida no fogo sagrado da forja, nenhuma carne ou bebida alcoólica era ingerida, e todo relacionamento sexual proibido por ser tabu.
A fabricação de uma lâmina perfeita levava vários meses, começando na forja do aço a partir de uma barra de ferro dobrada de 15 a 20 vezes, formando inúmeras camadas de metal. O fogo era alimentado por um tipo especial de carvão de pinheiro, e a cada recolocação da barra no fogo esta era recoberta com uma camada de argila aplicada com um feixe de palha, jamais se tocando a lâmina com as mãos para evitar impurezas. O ritmo das marteladas na forja era dado cantando mantras budistas (e no caso Muramasa com blasfêmias). Uma vez forjada a lâmina passava-se ao ponto crítico da têmpera do corte, cobrindo-a com carvão até um terço de sua largura, desenhando com um bambu uma linha separando o corte do dorso da espada. Nesse instante era mergulhada em água quente, resultando numa lâmina com o dorso mais mole e a área de corte muito dura separadas pelo Yakiba, a linha de têmpera, praticamente a assinatura do forjador. Criava-se assim uma lâmina com núcleo macio e laterais duras, acentuando-se a dureza na área de corte. Seguia-se então o polimento da lâmina e o afiamento do corte, podendo chegar a cinqüenta dias.
Como a espada japonesa deriva-se da chinesa, o formato inicial era reto com duplo gume, mas a partir das chamadas cinco tradições correspondentes às províncias de Yamashiro, Yamato, Bizen, Soshu e Mino no ano 700 D.C., as lâminas passaram a ter uma leve curvatura característica facilitando o saque, e o corte passa a ser único. Após as lutas entre o norte e o sul do Japão no período Kamakura, com a guerra civil intermitente apenas o samurai podia portar o par de espadas (Daisho), comerciantes usando somente a curta (Wakizashi) e os demais a adaga (Tanto). Pela importância da espada criou-se vasta terminologia para designar os tipos, desde o Notachi empregado nas invasões Mongóis (1274-1281) portado nas costas e atravessado devido às suas grandes dimensões, o Tachi usado pelos Shoguns e Samurais de alto grau a cavalo, suspenso como no Ocidente e do qual existe o padrão cerimonial usado na corte, os Katana correspondendo à espada normal, presos na faixa da cintura (obi) com o corte para cima de maneira a sacar cortando, e diversos estilos de adagas.
Como as lâminas eram entregues em bainhas simples (Shirasaya), depois se enviavam para especialistas em montagem, criando-se as guardas das espadas (Tsubas) que são um capítulo à parte como obras de arte, desde as simples de ferro até aquelas de laca, as incrustadas de ouro e prata, as ligas especiais, até a ponto de um decreto de 1830 proibir luxo excessivo nas espadas de corte. Todos os detalhes de montagem desde empunhaduras, bainhas, guarnições de lâmina, estiletes e pequenas facas que acompanhavam os tanto (adagas) e os Wakizashi (espadas médias) são objetos de decoração artística.
Torna-se impossível resumir o mundo que engloba 1500 anos de historia japonesa, 12000 espadeiros e 3000 fabricantes de acessórios, porém convém lembrar que na tradição da espada permanecem os cinco elementos: terra, metal, fogo, água e madeira que reagem entre si, na harmonia cósmica do Yin/Yang. A espada japonesa permanece assim como base real do prestigio dos samurais, incorporando em sua historia ensinamentos morais, filosóficos e religiosos, toda uma tradição técnica e artística de um mundo de obrigações.