RASTROS, O PROCESSO
Citando Patricia Jota, Editora da revista Bravo! : “Um país sem livros. É impensável um mundo assim hoje em dia.... Um país sem livros. Pensando bem, já se cogita um mundo assim um dia.” Não é esse nosso caso , o livro do qual sou organizador é o primeiro passo para uma abordagem sistemática na obra de Luiz Henrique Schwanke, que juntamente a Victor Meirelles e Martinho de Haro, formam os marcos de passagem na arte catarinense. Esta obra cobre tudo que foi escrito entre 1980 e 2010, em que selecionei 16 textos críticos e 10 excertos de textos totalizando 25 autores, seis depoimentos e entrevistas com o artista, 93 referências, 153 obras reproduzidas que permitirão rápida visão de seu percurso, e um ensaio que lhe dá o título: Rastros, pois, disso se trata levantar os indícios do perfil criativo do artista. Em sua essência o ensaio produzido e que é a linha condutora do livro não trata do que o artista quis dizer, mas, do que a obra nos diz, numa leitura pessoal das imagens em nosso contexto atual. O desenho que escolhi para a capa - São José carpinteiro de La Tour, da fase das revisitações, diz exatamente a que veio, é icônico e metonímico: por um lado, numa imagem representa a idéia por outro, usa de imagem fora do contexto com significado, para dar-lhe o titulo. Realizo assim na escolha, também uma re-significação, a poltrona do pensador que reflete, e a chama alumiando rastros, sintetizando o trajeto a que me propus, vida e obra em diálogo. Ao selecionar uma obra para a contracapa igualmente pensei no encerramento de um percurso; se o inicial marca a fase das revisitações em que Schwanke surge no cenário artístico, o da contracapa é de seu apogeu neo-expressionista consagrado, na fase dos linguarudos. Aqui, igualmente o desenho é determinante no traço e o simbólico como hipérbole declarada, na língua que também é vômito, transmitindo a repulsa frente à realidade da própria condição humana. Há cerca de dois anos me apresentaram a idéia de organizar publicação específica sobre seus desenhos como parte substancial de sua vasta obra,produzida entre 1977 e 1988, uma vez que compreende cerca de 2500 trabalhos, desde obras minuciosas e esmeradas até estudos, esboços, rabiscos, anotações. Conhecia pessoalmente seu trabalho desde 1987, durante exposição na galeria Arco de São Paulo, porém uma coisa é ter visão pontual de instantes, outro ser tragado pelo volume de uma vida, e aquilo que parecia simples incursão na arte do desenho se tornou análise complexa. Adotei a teoria do campo expandido, desenvolvido por Rosalind Krauss para as obras tridimensionais em relação à escultura tradicional, tendo inicialmente de estabelecer relações conceituais no trabalho de Schwanke de até onde a linha, que é a essência do desenho, se impõe sobre a cor como pintura. Estabeleci parâmetros, e a seguir auxiliado pela equipe formada pelo Instituto: Gessônia de Andrade Carrasco, Valéria König Esteves, Mariá Bardini de Pieri, e na triagem inicial discutindo agrupamentos com a Profa. Nadja de Carvalho Lamas e Alena Marmo , separamos as obras por semelhança de linguagem, organizando séries que dialogavam entre si. Por formação inicial nos anos 60 na área da arqueologia, aprendi a multidisciplinaridade na pesquisa, com enfoques seletivos que iam da geologia à antropologia física, cada área concorrendo com sua própria metodologia, e já nos anos 70 quando comecei a estudar os modelos teóricos de analise nas artes plásticas percebi que, a não ser que o critico esteja engajado num modelo único que o satisfaça,enquadrando todas as obras nele, e afastando aquelas que fugissem à sua proposição, conclui ser isso para mim insatisfatório, pois não respondia à pergunta básica e inicial: por quê? e seria aquela resposta encontrada a única ? Criei assim uma dificuldade, conciliar métodos próprios de cada escola, aplicá-los caso a caso, pesar os níveis de interpretação da obra e buscar resposta àquelas perguntas, por que o artista trilhou aquele caminho e qual sua intenção primeira. Situo que no caso de Schwanke sua obra é um enigma continuo de interpretações possíveis e abertas sobre construção/desconstrução da imagem, vemos o todo porém ele não é a soma das partes, cada detalhe é um sinal criado e deformado,mostrando e escondendo sua verdade. É uma arte prenhe de símbolos, porque os símbolos são o movente de suas ações, como nos afirma João Frayze-Pereira sobre a experiência estética – é uma silenciosa abertura ao que não é nós, e que em nós se faz dizer. Este trabalho tornou-se assim uma pesquisa aberta sobre os caminhos da percepção, soma de modos de ler uma obra de arte, pontos de vista sobrepostos em dialogo. Desse modo, ao fazê-lo caí no modelo filosófico de Hans-Georg Gadamer, conhecido como “fusão dos horizontes,” método interpretativo da verdade possível em nosso momento histórico, no qual a interpretação e seu objeto travam dialogo que só é possível pela reconstrução mental do momento da criação, que irá depender do conhecimento de quem o interpreta, e de sua isenção. Como em meu inicio, utilizei não a colher de pedreiro e pincel do arqueólogo seguido pelos recursos das ciências exatas, mas uma das disciplinas disponíveis: filosofia da arte, fenomenologia, antropologia nas estruturas dos mitos, psicanálise, lingüística, estética comparada, semiótica e estruturalismo, e todas em menor ou maior grau tiveram sua vez, para compreensão de uma obra polissêmica. Apoiado em René Passeron, por exemplo, considerei a Estética como o conjunto de estudos que tratam da “instauração da obra”, e não como produto criativo finalizado. Minha abordagem foi desenvolvida dessa forma, através de critica textual na receptividade da obra em leitura absolutamente pessoal,e pela critica genética através da origem dos processos criativos ; relações intertextuais de dialogo entre literatura e artes plásticas que permeiam o universo de Schwanke por um lado,releituras ou revisitações do universo da arte por outro, com signos verbais e signos visuais em constante diálogo. São tantas as verdades quanto as ferramentas utilizadas, desde a fenomenologia que nos diz que a arte existe a partir de nosso olhar sobre o objeto, a historia da arte sendo, portanto, um olhar crítico. Aqui se sobressaem três níveis de leitura: o formal e plástico por se tratar de uma obra, estético por ser busca do belo e de sua antítese, psicológico por se tratar de imagens projetadas do inconsciente, e de suas obsessões. Este é o processo que foi adotado, racionalizar a obra de arte, que em essência é a busca de coerência no pensamento do ser humano que o artista como tal desenvolveu seguir rastros deixados por alguém, que refletidos são indícios possíveis, bastante prováveis, nos mecanismos de ação/reação de uma vida. Como todos e quaisquer indícios, seja na historia seja na fria analise estatística laboratorial de pesquisa, nada ali é prova cabal, apenas presunção criada por nós, na lógica do porque algo foi criado ou aconteceu. A arte, como qualquer outra forma de esquema mental, conduz a uma ação humana de origem, e assim sempre será passível de racionalização. E como caracterizar o trabalho do critico? Aproprio-me então do titulo do romance de Jane Austen, simplesmente razão e sensibilidade. Eis a razão por ter dito que, quanto mais estabelecermos diálogo aberto a todas as possibilidades de transformação, distante da determinação previa de modelos fechados de analise, mais próximos chegaremos à verdade expressa em obra. Coincidência ou obra do acaso, em fevereiro de 2011 recebi comunicado de grupo de pesquisadores em Londres, de que a prática da pesquisa conduz à percepção da dificuldade de interpretação da obra de arte sob enfoque único, levando a pesquisa a um caráter transdisciplinar, o que foi aqui realizado. Encerro aqui, como conclui no texto do ensaio, nas palavras de T. S. Elliot no poema The holow men : entre a idéia e a realidade,entre o ato e o movimento,existe a sombra, e aí acrescento, entre o gesto do artista e o silencio do processo observamos rastros com a dimensão de uma vida, o figural oculto sob o figurativo,indícios de algo muito amplo , que é a gênese da criação.Poderia acrescentar inúmeras citações sobre o que está visível e o que está oculto,desde a tese Limites em expansão da Profa.Lucia Gouvêa Pimentel ao falar na abertura : “ao tecer o fio,teço também a sombra,” até um texto clássico do Sura da Luz no século sétimo , a luz como compreensão e a escuridão como sabedoria,uma não podendo existir sem a outra. Repito, entretanto como último argumento, as palavras de Roberto da Matta sobre a função poética mediadora do escritor ( e que também é a do crítico ) ser como afirmou Thomas Mann uma função lunar, espaço sideral alcançado apenas pelo pensamento e destemor de por em contato real e ideal, verdade e beleza .
Walter de Queiroz Guerreiro,Prof.M.A. (ABCA/AICA)