Herança bonita
Vivi numa cidade onde não havia sonhos. Por isso não sorria nem sonhava. Nem esperava que sonhasse um dia, pois devaneios são para quem gosta de relembrar, e eu não. Não via motivo nem interesse de minha parte de reviver momento algum.
Desculpe, mas não posso mais continuar esta hipocrisia. Simplesmente não tenho mais coordenação mental para procurar uma palavra no dicionário e nenhuma delas - das que conheço - me deixa esquecer de que um dia fui adorador de um livro, o qual não chamava de livro, mas sim de travesseiro, mesa, rede, bola.
Tudo era ele e não fazia questão de “poréns”. Só que cometi vários erros. O primeiro deles foi ter feito de páginas, minha vida. De não ter vislumbrado futuro melhor para mim; um “além do horizonte” bem maior que o de Oliver em suas inquietudes. Claro que tê-lo por exemplo, visto que era um menino de vida tão conturbada, não é algo no qual deveria me mirar. Acontece que nestas minhas andanças e dormidas, comidas e andanças e dormidas, tudo no mesmo chão sujo, onde o encontrara caminhando e olhando vorazmente, era minha salvadora alternativa. Oliver era muito meu amigo e assim que a vida dele terminou naquela última página, decidi não prolongar sua existência mais em minha cabeça; preferi não sofrer.
Há uns que dizem que pior do que está não pode ficar. No meu caso, isso somente procederia se eu não tivesse uma mente ativa e em pleno pensar. Ou porque vivo onde aqui estou, é motivo suficiente para não ter mais expectativas? Então, querem afirmar veementemente que um pobre homem como eu não pode ter vida além dessa, catando maçãs pelo chão em seu primeiro ano de rua. Pois veja assim que, em meu primeiro ano e dez meses de rua, já estava catando livros.
E o que pensava serem dez histórias, era uma: Oliver Twist, em páginas rasgadas e voando, de um autor que não se sobrepunha a todos os que eu já tinha lido. Mesmo que os títulos já lidos por mim não fossem nenhum. Desse modo, priorizei não cometer um suicídio dolorido, por cultivar uma perda que sequer era humana, porém não menos importante.
Queria ser Oliver, para poder criar outro de mim; para ter a inquietude dele; para não sorrir sem antes saber que é possível chorar. Dickens também não é culpado por a trama não ter revivido. Dickens foi sábio de partir ciente do ouro que jogou ao vento desta avenida em que eu sonho. E continuo sonhando que outros, como eu, comam, morem, durmam, desmoronem num Oliver.
Deixei minha angústia de lado e abri umas janelas para ele. E ele veio. Da cor grafite e sobre uma letra cursiva feiosa. Mas era ele. E isso basta.