Vendo além do Óbvio: Fé e Arrogância, o Paradoxo
FÉ!
Essa é a palavra sobre a qual toda e qualquer religião foi edificada. Sem ela é impossível para qualquer liderança eclesiástica manter seus membros fieis e unificados.
Curiosamente, em meu conceito pessoal, o alicerce do pensamento religioso é um de seus maiores pontos fracos também. Sim, mencionei “conceito pessoal” porque deixo claro que não estou tentando pregar uma verdade universal e nem acredito que minha missão seja propagar esse meu ponto de vista. Sei que soará ofensivo para muitos fiéis o que eu estou escrevendo, mas quero que saibam que isso não é um ataque pessoal a qualquer um, ou mesmo a uma denominação religiosa em particular. Se não tiver mente aberta o suficiente para analisar aquilo que permite que guie sua vida, sugiro que não continue a leitura. Mas se, mesmo sendo religioso, tiver mantido viva a natural curiosidade humana e tiver o desejo de analisar friamente outros pontos de vista, agradeceria por um comentário seu após a leitura. Outro esclarecimento: Para ateus e outros não religiosos em geral, por favor, não me considerem pretencioso por escrever isso. Sei muito bem que não estou fazendo algo inovador, original, e nem essas reflexões são baseadas só em minha própria experiência de vida, mas em muitos trabalhos de outros pensadores. Quero somente expor determinado ponto de vista explicado do meu próprio jeito. Se for útil ou agradar, fico feliz e peço que manifeste isso em sua opinião.
A fé tem sua utilidade, dando a base para a existência de religiões, pois as mesmas mantêm as pessoas centradas, sustenta hábitos bons de caráter. O mundo atual, povoado por pessoas tão sem autodomínio e filosofias pessoais de vida centradas em princípios válidos, seria caótico sem esse tipo de controle. Mas ela também gera profundos problemas que afetam a qualidade de vida das pessoas, famílias e comunidades. E esse problema é a arrogância e segregação que a fé origina.
Antes de discorrer mais, há três palavras chave que precisamos definir e compreender, primeiramente. Configuram-se fundamentais para toda a cadeia de raciocínio desse ensaio. São elas: “Fé”, “Doutrina” e “Verdade”. Estão interligadas.
Comecemos com a palavra “FÉ”. Ela pode ser definida como a confiança em algo, uma convicção, que é acreditar em algo sem provas empíricas com a mesma força com a qual acredita nas coisas para as quais há tais provas incontestavelmente aceitas por todos.
Quando alguém tem fé em algo, aquilo está provado para ela tanto quanto a lei da gravidade (que possui provas irrefutáveis) está provada para todas as demais pessoas. Para o crente (me refiro a simplesmente quem crê em algo, e não a evangélicos) é tão sem sentido questionar os princípios de sua fé como seria para qualquer outra pessoa duvidar de princípios básicos da medicina (como a existência de vírus e bactérias e efeitos que podem causar ao organismo). Para todos os efeitos nesse ensaio, essa será a definição da palavra “Fé”.
Na visão religiosa dogmática quase não há espaço para relatividade, exceto às vezes, e sobre assuntos pouco importantes. Não precisam debater sobre pontos de vista e visões relativas porque já possuem uma coisa muito mais simples, padronizada, chamada DOUTRINA.
Assim como FÉ, essa é outra palavra chave. Segundo um dicionário, o significado é esse: “Crença, ou conjunto de crenças, de determinado grupo e que são vistas como verdades absolutas pelos que nelas acreditam”.
Já interligando as coisas, podemos juntar essas duas palavras e afirmar que os religiosos praticantes tem FÉ em sua DOUTRINA. Ou seja, confiam inteiramente em seu conjunto de crenças. Mas claro que eles não se referem a isso da mesma maneira que eu. Não falam em dogmas ou em necessidade de ter confiança cega. Resumem tudo em uma palavra, a ultima de minha lista: a palavra VERDADE.
No fim, a frase completa é: “Os religiosos fervorosos têm total fé de que sua doutrina é a verdade”. Ou, simplificando com algo do tipo: “Nossa religião possui a verdade (ou ‘é a verdadeira’)”.
Quando falo em estarem certos de possuir a VERDADE, não me refiro ao simples oposto da mentira. Refiro-me a verdade divina; ter tal verdade é não estar errado sobre nada, possuir a explicação sobre tudo que envolve a vida e sobre os propósitos de forças superiores para conosco. Conhecer a diferença entre o certo e o errado, saber o que se deve fazer e o que se deve evitar, ter isso gravado e simplificado sob um código universal.
Pode soar um contrassenso a minha afirmação de que gera arrogância, prepotência e divisão entre as pessoas esse senso de posse da verdade das religiões e a fé que os membros depositam nisso, já que a maioria das crenças prega e valoriza a humildade e a união. Contudo, a fé, ao mesmo tempo, gradativamente tende a eliminar a flexibilidade de pensamento dos fiéis. Estreita e limita-o. Há religiões com doutrina mais aberta, mas a grande maioria constrói em seus membros a dicotomia quase hollywoodiana da batalha do “bem contra o mal; luz versus trevas” que culminaria no Juízo Final.
As religiões tendem a polarizar tudo: Ou você é bom ou é mau. Ou está ao lado de Deus ou do Diabo. Ou serve à luz ou às trevas! Preto ou branco, quente ou frio. Não existe o cinza nem a temperatura ambiente. Qualquer atitude, pensamento ou estilo de vida necessariamente deve ser analisada e devidamente etiquetada. Nada de relativismo, o arquivo mental só possui duas gavetas: Certo e Errado. E nada pode ficar jogado sobre a mesa, livre. Tudo precisa ser catalogado e organizado.
E por que fazem isso? Maldade? Não! Pelo contrário. Juro que esqueci quem foi o autor dessa frase, e se alguém que ler souber, imploro que me revele. Sequer lembro se a frase está certa mesmo, mas a idéia é que me interessa agora, e diz o seguinte: “Algumas das maiores crueldades do mundo foram feitas por pessoas bem-intencionadas”. O grande problema dos religiosos é quererem “salvar” as pessoas.
Sim, pois suas doutrinas nas quais tem fé, e por isso as consideram verdades absolutas pregam quase invariavelmente o seguinte: “Há uma guerra espiritual acontecendo! O Mal personificado, cujo nome é Lúcifer, mais conhecido por Satanás, está tentando desencaminhar as pessoas. E quem cair na armadilha dele será punido no Juízo Final, sendo condenado a sofrer no inferno (seja lá o que isso signifique). Deus, nosso criador, é quem sabe exatamente o que devemos fazer para escapar da perdição, e deixou isso registrado para que sigamos as suas instruções. Precisamos aprender qual é a vontade dele e cumpri-la nos mínimos detalhes...”. Essa é a primeira parte da pregação.
E talvez a religião não criasse tanta divisão se parasse por ai. Haveria somente o eterno duelo entre os fiéis e os céticos. O problema é a segunda parte. Porque esses livros sagrados, sejam quais forem, são tudo, menos claros e específicos (exceto para os convictos, claro). Quase todos os textos dão margem para as mais diversas interpretações possíveis, que vão desde as mais literais até as totalmente alegóricas e figurativas. E até mesmo quando as denominações religiosas concordam quanto ao significado de alguma lei ou princípio, invariavelmente divergem sobre como a mesma deve ser aplicada na prática.
Por favor, Srs. Religiosos, não encarem isso como um ataque direto a vocês e/ou a sua fé! Não estou fazendo julgamentos pejorativos ao declarar que não há total clareza em qualquer escritura sagrada. Antes de se ofenderem, olhem para a enorme variedade de doutrinas e religiões diferentes, todas com membros procurando fazer o bem, mas por outros caminhos, e todos convictos de que estão no rumo certo! Lembre-se de debates que já tiveram com pessoas de outra religião, e certamente irão lembrar-se de pontos totalmente opostos aos seus, acerca dos quais seus interlocutores foram capazes de sustentar e conduzir sobre eles boas argumentações. E com base nas mesmas escrituras sagradas, e assim pode compreender o que estou querendo dizer ao afirmar que boa parte dos textos sagrados das religiões dão muita margem para ambigüidade de interpretação. Por mais que considerem erradas outras interpretações, é impossível negar que não é absurdo o pensamento diferente, que até faz sentido sob o ponto de vista deles. Somente isso que eu quis dizer!
Retomando o raciocínio, chegamos à segunda parte da pregação, que é quase padronizada para a maioria dos grupos religiosos:
“... Nossa religião, que estuda muito o livro sagrado (seja qual for), tem a interpretação correta do mesmo! Nós sabemos exatamente o que Deus ordena. Nós possuímos A VERDADE. Nossa missão é trazer todas as pessoas para nosso caminho, como Noé e sua arca, para que assim elas escapem da condenação divina e do tormento eterno”.
Obviamente a pregação não é apresentada nesse termo tão direto para não colocar na defensiva os ouvintes com um ataque frontal. Então a mensagem é suavizada e disfarçada, mas a essência da mesma acaso não é essa? Vamos juntar as duas metades: “Há uma guerra espiritual acontecendo! O Mal personificado, cujo nome é Lúcifer, mais conhecido por Satanás, está tentando desencaminhar as pessoas. E quem cair na conversa dele será punido no Juízo Final, sendo condenado a sofrer no inferno, seja lá o que isso signifique. Deus, nosso criador, é quem sabe exatamente o que devemos fazer para escapar da perdição, e deixou isso registrado para que sigamos as suas instruções. Precisamos aprender qual é a vontade dele e cumpri-la nos mínimos detalhes. Nossa religião, que estuda muito o livro sagrado (seja qual for) e tem a interpretação correta do mesmo! Nós sabemos exatamente o que Deus ordena. Nós possuímos A VERDADE. Nossa missão é trazer todas as pessoas para nosso caminho, como Noé e sua arca, para que assim elas escapem da condenação divina e do tormento eterno”.
Novamente excedendo algumas filosofias bem mais abertas mesmo no cristianismo, digam sinceramente quantas das grandes religiões escapam desse script fundamental para sua pregação?
Ai está a grande dificuldade. A divergência inicialmente de livro sagrado adotado e depois das de interpretações diferentes do mesmo gera uma divisão profunda e alimenta fartamente a rivalidade doutrinal, elevando essa contenda para níveis muito maiores do que qualquer outra questão atinge! E a razão é simples: A idéia de eternidade, de a crença de que a vida vai além do que temos atualmente é algo que faz parte da vida dos fiéis. E, dentro desse ponto de vista, assumindo como realidade essa crença, que assunto poderia ser mais importante do que a maneira de conquistar a felicidade na eternidade? E é exatamente com isso que a religião trabalha, esse é seu campo de influência! A própria palavra “religião” já contém o conceito, pois ela significa literalmente religar-se (com Deus). E a resistência é ainda mais gritante quando se trata de alguém declaradamente ateu, agnóstico ou que simplesmente não se importe com questões de fé.
Religião, para pessoas que possuem fé em algo sobre-humano e em esperanças ou punições além dessa vida, é o assunto mais importante de todos. A convicção de estar no caminho certo é indispensável para que uma pessoa de fé se sinta bem e tranquila. Como crê que só há uma estrada correta, só pode mesmo ficar em paz quando tiver a certeza interna – ou seja, convicção – de que está nela. Se houver duvidas a respeito do caminho em que está, que nada mais é do que a religião e sua doutrina, brechas nessa confiança, não haverá sossego para a pessoa de fé, e ela sentirá necessidade de abandonar o lugar onde está e buscar outro. Isto é, outra religião, que satisfaça essa necessidade espiritual e seja boa o bastante para gerar convicção. É por isso que os líderes fazem de tudo para dar a seus fiéis a certeza de que estão no caminho certo, de que pertence a congregação que possui a VERDADE, contida em sua DOUTRINA, interpretando corretamente as Escrituras Sagradas e, portanto, mostrando ser mesmo o elo dos humanos com seu Criador. Sem essa convicção, uma religião não sobrevive.
E como isso tudo se converte em arrogância? Ora, é simples! Nesse universo da convicção, das verdades absolutas e da constante encruzilhada que oferece apenas o caminho certo e o errado, crer possuir todas as respostas universais – as certezas absolutas – quase inevitavelmente criará um senso de superioridade em relação aos outros.
Entremos na ótica religiosa afundada naquela dicotomia da falta de escolhas além de um suposto lado certo e um errado, por um momento. A pessoa convicta, pelos motivos já explanados, vê a si mesma como estando certa. Caso não achasse isso acerca de seu próprio rumo, estaria certamente buscando outro. Sendo assim, é quase inevitável que veja quem não está na mesma linha de pensamento como estando totalmente equivocados! Passam a ver quem não compartilha de suas crenças, seja tendo uma diferente ou não possuindo fé alguma, de modos nada construtivos.
Enxergam os “de fora” como pessoas dignas de pena e ajuda, porém, simultaneamente, como perigosas. O contato com elas precisa ser cauteloso, algo próximo ao trabalho de médicos que precisam adentrar uma área tomada por uma doença contagiosa. Afinal de contas, elas não estão no “caminho certo”, e o estilo de vida delas – especialmente se for ateu ou de uma religião muito diferente – é pecaminoso e uma influência ruim, capaz de lhe desviar de seu bom caminho, que conduz a salvação!
Por causa do fato de ser até ilegal e passível de punição discriminar abertamente, muitos desses convictos não realizam o desejo visível de relacionar-se somente com os que compartilham de suas crenças, tendo contato com os demais somente para salva-los. Visto ser impossível todo esse isolamento, suportam aquelas pobres almas que vivem na escuridão, e fazem um esforço até que bem árduo e sincero para trata-las bem e desenvolver relacionamentos saudáveis (já que uma das leis é que se deve amar ao próximo), porém se esquivando de maiores intimidades para não correr qualquer “risco” de atrair más influências.
E o fazem sempre preparadas para realizar conversões, claro. Por mais que haja quem se domine e não se torne impertinente, ao contrário da maioria que cede ao fanatismo e seus automáticos ímpetos de proselitismo, e não fique sempre batendo na tecla da religiosidade, a atitude de superioridade por possuir a “verdade” estará presente, bem como a prontidão de vir em socorro da ovelha perdida, se esta der alguma abertura.
Caso aconteça o choque de opiniões e discussões sejam travadas, a pessoa de fé usará todas suas técnicas para “mostrar a luz” para a outra pessoa, “abrir os olhos dela”. E como isso não acontece com frequência, pois as pessoas costumam estar certas de suas posições, e são perdidas as esperanças de conseguir “ajudar” a entrar no caminho da salvação, é comum que além de intensificar-se a piedade pelo pobre interlocutor, tão cego, uma perplexidade também nasça disso tudo. “Como é possível, meu Deus, que alguém consiga ser tão obtuso? Como alguém pode não reconhecer as evidências tão diante de si? Como é capaz de negar a VERDADE?” Passa a pensar! A própria inteligência do outro passa a ser questionada e menosprezada. Isso quando aquele que não aceita essa tal verdade não passa a ser visto como estando sob domínio do Mau, do Inimigo de Deus, uma vitima dos laços do Diabo. Ou mesmo um aliado dele – ainda mais se for ateu, agnóstico ou praticante de alguma religião não cristã.
A arrogância, a prepotência, é inerente a todo esse modo de pensar. Quando alguém vê a si mesmo como membro de uma seleta comunidade detentora de nada menos do que a VERDADE ABSOLUTA sobre a vida, universo e assuntos espirituais, e que por isso é o único canal de ligação entre Deus e os homens, os representantes do Criador de tudo, como evitar sentir-se acima dos outros? Alias, caso essa convicção fosse MESMO verdade, um membro fiel dessa organização representante de Deus, uma pessoa possuidora da VERDADE e que estivesse trilhando o caminho certo para a salvação eterna, realmente ESTARIA bem acima dos que não possuem tais tesouros!
Pode não ser externada completamente, mas a postura adotada diante dos “mundanos” é de estar acima deles. Afinal, se há a disposição de salvar, abrir os olhos e realizar a conversão dos de fora para seu caminho, que julga certo, não há coerência em ver-se no mesmo nível daqueles que pretende ajudar. Para socorrer alguém que esteja se afogando em alto mar, caído na água e sem nenhum equipamento, não é necessário que esteja numa situação melhor, como num barco, estendendo a mão ou uma corda para que o outro se apoie e se erga? Caso estivesse no mesmo nível, ou seja, também se afogando no mar e sem qualquer recurso, como poderia ajudar a outra pessoa? Não, não, quem se dispõe a salvar se coloca num nível superior!
Mas o engraçado nisso tudo é o paradoxo da humildade, porque as religiões e suas doutrinas valorizam ao máximo tal “qualidade” e a pregam aos quatro ventos. Exigem isso dos fiéis. E, sendo assim, os membros agem com arrogância enquanto pregam a humildade e acreditam estar praticando-a. Não há, de fato, a intenção de menosprezar os outros, quase sempre. Devido a convicção, a intenção é a melhor possível! Porém, “muitas das piores coisas foram feitas por pessoas bem intencionadas”, como vale relembrar. Essas pessoas convictas em sua fé se colocam acima dos demais, olham para eles com um misto de piedade, repulsa e perplexidade e os discriminam, segregando-se e as tratam como seres desprovidos de sabedoria ou então sob domínio do mau, e ao mesmo tempo sentem que são humildes, piedosas e encontram gratificação por verem a si mesmas assim! Ignoram completamente a quantidade de maus sentimentos que geram nos outros, suas vitimas, que percebem a referida arrogância.
Basta lembrar que a mesma convicção no passado já causou guerras, inquisições e todo tipo de perseguições, bem como o atual terrorismo, e aqueles que protagonizaram tais males se julgavam seres piedosos e instrumentos de Deus. E apesar de agora raramente causar efeitos tão drásticos, continua sendo, em muitos casos, uma poderosa arma de terrorismo emocional!
Se conseguissem ver claramente seu comportamento, olhando de fora e percebendo a influência da convicção, que bloqueia a flexibilidade, provavelmente ficariam chocadas. Ao menos eu fico. Já tive minha fé e convicção em determinada doutrina, e era um ativista da mesma. Buscava toda oportunidade que podia para propagar minhas verdades, pois cria que estava fazendo um favor aos demais. Já fui muito inconveniente e persistente ao tentar ajudar a “salvar” outros. Hoje vejo o quanto eu era contraditório. O que me dava o direito de ir até outra pessoa e me postar acima de toda a experiência de vida dela, nem mesmo procurar saber a causa de ela ter suas crenças ou não crenças atuais, que certamente existem por um bom motivo, e já ir impondo meu “caminho superior” a elas? E a pior parte era conseguir ainda sair quase ofendido e certamente inconformado quando minha pregação era rejeitada, ou quando eu era mesmo tratado com hostilidade. Eu tomava a iniciativa de contatar pessoas que não solicitaram minha opinião e, sem nem as conhecer direito, dizia de modo enfeitado que eu estava certo e tudo que elas acreditavam e fazia bem à vida delas estava errado! E não entendia porque não era bem recebido na maior parte do tempo...
Patético! Como eu ficaria feliz se tivesse a chance de debater com o meu “eu” de antes, que tinha a pretensão de salvar pessoas. Perguntaria simplesmente se era feliz, se sentia-se bem. A resposta seria negativa, pois pensava em acabar com minha vida naquela época e estava em total caos por dentro, enquanto ia pregar a outros. Sendo uma discussão comigo mesmo, não haveria como mentir para mim. Teria de responder que era totalmente infeliz – como já fui mesmo. Então eu diria que hoje me sinto absolutamente feliz, mesmo sem possuir uma fé em algo metafísico, e então perguntaria se não deveria ser esse meu “eu” atual que deveria estar oferecendo a salvação!
Mas enfim... Será possível se livrar dessa arrogância intrínseca? Talvez, eu acho. A convicção, por sua própria natureza, dificulta muito isso. Como disse um de meus inspiradores: “As convicções são inimigas mais perigosas da verdade do que as mentiras”. E estou inclinado a concordar, apesar de, pessoalmente, duvidar da existência de uma verdade universal. Ou melhor, até posso admitir que alguma exista, porém não posso crer que algum humano a possui por completo.
Conheço religiosos muito tolerantes, nada fanáticos e que não demonstram esse terrível senso de superioridade, porém a maioria desses não segue o ramo do cristianismo, e os que seguem não compartilham da maior parte das interpretações literais tão comuns, mas se pautam mais pelo espírito de certas leis bíblicas e enxergam de modo quase alegórico ou metafórico boa parte desse livro, e assim conseguem ser muito relativistas. Agora entre aqueles que baseiam sua fé na inflexibilidade e só acreditam que haja uma estrada para a salvação – naturalmente sendo aquela em que estão – e todas as demais levam ao inferno, se torna mesmo muito difícil chegar a esse patamar, a menos que seja empregada alguma técnica de Duplipensar típicas de George Orwell. Para falar mais sobre isso seria inevitável adentrar em outro longo discurso onde o relativismo e o absolutismo dos pontos de vista seriam confrontados e testados, e não pretendo fazer isso.
Sendo assim, resta somente pedir que estes arrogantes avaliem seu modo de pensar, pois estou certo que a maioria sinceramente desejaria ser humilde de fato, e tentem minimizar os efeitos que a convicção automaticamente produz no ego e que tão facilmente faz brotar o oposto daquilo que se propõe a criar!