Um pequeno ensaio sobre a mentira
Recentemente elegi um colega de trabalho, de quem até gosto, para ser a gota d’água deste meu cansaço de mim e do mundo.
Desde o início dos tempos convive-se com a mentira, mas desde sempre ela me incomoda. Mentiras vindas de estranhos qualquer sal amargo resolve, mentiras de amigos magoam. Nem sei se é pelos amigos ou se pela proximidade da própria Mentira. Assim como saber que alguém morreu no outro lado da cidade nos afeta menos que a morte de um vizinho. Dá-nos a sensação de sentir seu bafo quente a nos eriçar os cabelos da nuca e a nos anunciar que seremos os próximos.
A proximidade da mentira, sobretudo a desnecessária, se assemelha a uma nódoa que mancha nosso escudo de vidro antes transparente. Passamos a olhar para o amigo mentiroso com óculos embaçados. Como café requentado, que levemente lembra o sabor primitivo, mas que traz junto um gosto de coisa passada. Do nunca mais ser o mesmo.
Ele, coitado, é mentiroso compulsivo. Deverá haver algum termo científico que melhor o defina, mas prefiro chamá-lo de mentiroso compulsivo.
No começo, logo que o conheci, há pouco mais de um ano, ouvia suas aventuras e acreditava sinceramente nelas. Afinal, não é nada comum um homem por volta dos seus 40 anos ter viajado meio mundo e passado por muitas situações inusitadas e ter vindo acabar num emprego medíocre como é o seu, mas também não era impossível. Conheço tanta gente que abdica de tantas coisas pelos mais variados motivos e que preferem viver modestamente a fazer qualquer tipo de concessões.
Não me lembro bem em qual mentira o flagrei. Só sei que na vez em que o flagrei caiu por terra o homem que eu conhecia. O outro que se apresentou condizia melhor com o emprego medíocre, pois foi e é a sua vida, inteira, tão comum que nem ele mesmo a suporta.
Os meses que se seguiram após a descoberta despertaram em mim uma repulsa, quase ira, mas ao mesmo tempo um sentimento de comiseração por aquele ser que, já não sendo tão jovem, ainda assim me lembrava um garotinho desprotegido e infeliz.
Muitas vezes tive vontade de desmascará-lo publicamente, para experimentar um gosto infantil de vingança, como fazem as crianças, sempre que podem colocar os amiguinhos em situação vexatória. Em outras de chamá-lo para uma conversa em particular, e lhe dizer que em mim ele poderia confiar. Que não precisava ser outra pessoa, que a amizade sincera não cobra proezas. Enfim, essas coisas que tentam elevar a auto-estima. Não fiz nem uma nem outra coisa. A mágoa de ver desmerecida minha amizade me fez cometer com ele talvez a mais maléfica das atitudes: afastei-me.
Não por ele, mas por mim mesma. Assumi que não sei lidar com mentiras. Nem as alheias nem as minhas.
Acho que é por isso que as mentiras alheias, quando próximas, incomodam. Porque lembram outras, e outras, e outras, e as nossas, num determinado momento. É imperdoável a um amigo que ele nos confunda com outros amigos, mas ainda mais que ele nos lembre de nossas próprias fraquezas.
Já convivi com outros mentirosos, em igual ou menor proporção e que me incomodavam, mas nunca tanto quanto este. Talvez por ser o último a quem dei chance de ser sincero. O coitado deu azar de encontrar alguém com anticorpos.
Os piores momentos dos quais me lembro foram aqueles onde eu tive de fingir que acreditava nas narrativas fantasiosas de amigos medíocres. A vida é medíocre. Somos medíocres, e daí? O mentiroso, quando amigo, induz à mentira quem o ouve. Todas as vezes em que fingimos acreditar nas fantasias estúpidas de outras pessoas estamos sendo coniventes, o que nos torna, de certa forma, mentirosos também. Isso é o que mais me incomodava. Já é penoso demais ter de conviver com as minhas próprias mentiras, amealhadas ao longo de toda uma vida, para compartilhar com mentiras que não fazem parte do meu tear. As nossas pequenas mentiras, tecidas como fios de seda, se entrelaçam de tal forma que se transformam em nossa segunda pele, às vezes até nos servindo de agasalho para as nossas carências. Protegendo-nos do frio da existência. Grudam de tal forma que esquecemos serem mentiras. Fazemos delas as nossas verdades. Ao fim, quando nos damos conta, somos um imenso novelo, embaralhado e cheio de nós. Sem volta, sem conserto, sem a graça das fantasias tornadas públicas.
De certo modo até reconheço aí uma coragem de exposição que nunca tive. De levar tão a fundo sua própria negação, a ponto de encenar em praça pública todos os eus que conseguir sua imaginação, sem que nenhum deles desça à mesmice do verdadeiro.
O fato é que cansei de fingir que acredito em quem mente pra mim. É daqueles cansaços covardes de quem adia uma decisão por mais uma vez, mas que desta vez martela, cutuca, angustia, pede que seja a última. Porque sente que está no limiar de não suportar mais uma só mentira, nem as minhas. Nem a minha. É um cansaço temeroso de quem se sente a um passo de desacreditar de qualquer frase que venha de outros lábios ou dos meus. De não perdoar mais qualquer deslize, de estar sempre à espreita, sempre à caça de qualquer coisa que não seja verdade. Mas é também um cansaço perigoso de, ao não saber mais quem será quem, ao fim só a mim me reste, desnuda e enfadonhamente real.