BREVE HISTÓRIA DA ANESTESIA

BREVE HISTÓRIA DA ANESTESIA – dividida em três períodos

Consideraram-se duas alterações no combate à dor, cirúrgica ou não, marcantes para a humanidade, para dividir essa parcela da história em três partes; são elas a primeira anestesia oficialmente reconhecida num acto cirúrgico, nos EUA, em 1846, quase simultaneamente (um ano ou menos depois) integrada na prática de todo o mundo civilizado e o reconhecimento da anestesia como especialidade médica independente da cirurgia, reconhecimento que começou a ganhar expressão por altura da guerra de 39-45 e não foi simultâneo em todos os países nem mesmo em toda a extensão de cada um deles; terá sofrido um desfasamento de umas décadas apesar do aumento de velocidade das comunicações nesses cem anos.

Proto-História da Anestesia

Pode ser assim designado o período que decorre até 1846. Neste período o termo anestesia foi já utilizado por Dioscórides (40-90 DC), médico grego dos exércitos de Tibério e Nero, que descreveu as propriedades medicinais de inúmeras plantas, ao referir-se aos efeitos da mandrágora (esquecido por longo tempo, foi este termo recriado e divulgado muito mais tarde).

A mandrágora fazia parte duma preparação que incluía também meimendro, papoila e vinho, em que se embebia uma esponja suporífera com a qual, muito antes, também Hipócrates (460-377 AC) anestesiara os seus doentes submetidos a cirurgias (há referências com algum detalhe a receitas mais compridas do que a citada).

E ainda muito antes (a partir do 3º milénio antes de Cristo) os Assírios preparavam, de modo perigoso mas eficaz, os seus doentes destinados a cirurgias, comprimindo-lhes as carótidas por aperto do pescoço até obter insensibilidade por entrada em coma (era o que faziam às crianças destinadas à circuncisão); pela mesma altura começou a usar-se na Mesopotâmia um conjunto de narcóticos vegetais que incluíam a papoila, a mandrágora e a cannabis da Índia ou haxixe que se cultivava na Índia e na Pérsia. Os índios do Perú terão também começado bem cedo a anestesiar-se a si próprios mascando folhas de coca com cal sem que fosse possível determinar quão antigo era o hábito.

Datam também de há uns 5000 anos, ou 3000 AC (há autores que indicam até 8000 ou 6000 AC) os fundamentos da acupunctura chinesa (com agulhas de pedra e osso) que se diz ter sido usada essencialmente no combate à dor, sem especificar de que tipo, nem se incluía a dor cirúrgica.

Certo é que todos aqueles procedimentos nem se difundiram nem se aperfeiçoaram; e com o advento e a expansão do cristianismo no mundo dito civilizado passou a considerar-se o sofrimento (em especial o do parto) como decisão divina e virtude redentora e as tentativas de o aliviar como acto de bruxaria punível com penas de tortura e morte. Algo adoçada a ideia subsiste ainda hoje – “O Arcebispo de Pamplona exortou os cristãos a aceitar a morte sem medo do sofrimento e a recusar cuidados paliativos. Assim seguiriam o exemplo de Cristo…” (Pina, M. A., Jornal de Notícias, 28/3/ 2008).

Por isso, a maneira mais comum de o cirurgião poder operar e fazer o doente suportar a cirurgia passou a ser o método dos dois às pernas, dois aos braços, (em rigor, seis no total, segundo Tavares, História da Anestesiologia Portuguesa, 2008, pg 15) bem possantes, para imobilizar o paciente. Como método suplementar ou facilitador deste, também se usou a pancada na cabeça com uma peça de madeira, o murro no queixo à moda do boxe, para pôr o paciente K.O. e o álcool ou o vinho em doses que devem ter chegado muitas vezes para matar o doente sem que a cirurgia fosse necessária.

Em meados do séc. XVI, A. Paré, sucessivamente barbeiro, sangrador e finalmente cirurgião de Carlos IX, rei de França, descreve a primeira anestesia local por compressão de vasos e nervos, uns vinte anos depois de Paracelso ter registado e utilizado as propriedades anestésicas do éter (já inventado muitos anos antes em Espanha em 1275 por Raymondo Zulhine, segundo Reis, http://darcordaoneurónio.blogspot.com , 2008) mas não se espalhou esta novidade por a Igreja não apreciar tais práticas.

Nos finais do século XVII ou início do XVIII – o exemplar disponível é uma reimpressão autorizada pelo Santo Ofício em 1713 – o médico alemão Gabriel Grisley publica em português e reimprime em 1714 nas oficinas de Joseph Antunes da Sylva, impressor da Universidade de Coimbra o “Desengano para a Medicina ou Botica para todo o Pay de Famílias”. Baseado em autores como Plínio, Dioscórides, Galeno, nos seus próprios conhecimentos e na experiência adquirida no cultivo de uma horta doada por D. João IV para que “em huma pequena de terra se alcançasse geral notícia de todas as hervas salutíferas que a natureza produzio nas mais partes do Reyno” (Grisley, Desengano para a Medicina ou Botica para todo o Pay de Famílias,,1714,, pg 2), o autor recomenda remédios para uso pelos cirurgiões, para as dores de parto, fracturas, cortes e extracção de dentes, entre múltiplos outros usos.

Nos finais do séc. XVIII e princípio do seguinte apareceram duas novas técnicas:

- A hipnose criada por Mesmer (em 1772) com o nome de magnetismo animal (referido frequentemente como mesmerismo) que chegou a permitir amputações sem dor, mas não a da cabeça do seu inventor na guilhotina, a que num tribunal presidido por Lavoisier foi condenado por charlatanismo; este último, um dos criadores da Química, por sua vez descobriu o oxigénio que tão importante veio a ser na anestesia e foi guilhotinado em 1794 por irregularidades na arrecadação de impostos.

- O frio (abaixo dos 0ºC) permitiu amputações indolores ou quase, verificadas em Portugal, em 1807, pelo cirurgião militar Larrey quando aí viveu durante as invasões francesas (Reis, obra já citada)

Em 1774 Priestley, que em simultâneo, ou quase, com Lavoisier, preparara o oxigénio, obtém também o protóxido de azoto (vulgo gás hilariante) de que Davy, em 1800 descobre as propriedades anestésicas e as que lhe darão o nome experimentando-o em si próprio; em 1831 o clorofórmio é sintetizado simultaneamente na França, na Alemanha e nos Estados Unidos. O ópio já era conhecido há muito e a morfina tinha sido dele extraída, em 1806, na Prússia.

Para além dos que se drogavam com ópio passou a haver quem se drogasse com éter e depois com clorofórmio como acção aprovada (ou pelo menos tolerada) em reuniões sociais; o protóxido de azoto era usado como divertimento em feiras drogando voluntários que se riam e faziam rir quando não lhes dava para comportamentos violentos que também animavam a feira até caírem em si; os que se feriam não mostravam dor nem quando se feriam nem quando eram tratados.

Os efeitos daquelas drogas devem ter sido observados em numerosas ocasiões por muitos médicos e cirurgiões. Os mais observadores e expeditos começaram a experimentar cirurgias e extracções dentárias sob anestesia, com éter, ou clorofórmio ou protóxido de azoto com sucesso frequente mas nem sempre comunicado.

Em 30 de Setembro de 1846, no Massachussetts General Hospital, um dentista (Morton) que, embora não pioneiro no uso do éter já o tinha experimentado numa extracção dentária a conselho de um desses pioneiros, participou na primeira demonstração pública, premeditada e bem sucedida de uma anestesia com éter – que designou de létheon para lhe esconder a identidade e disso vir a beneficiar - para extracção cirúrgica indolor de um tumor no pescoço (por Warren). No ano anterior, no mesmo hospital e com o mesmo cirurgião, Horace Wells, precursor bem sucedido no uso de gás hilariante, tinha tentado, também numa demonstração pública, anestesiar um paciente para uma extracção dentária; o doente queixou-se, a demonstração foi considerada um fracasso e Wells veio a suicidar-se.

O sucesso público, testemunhado pelos pares, muito acentuado pelo fracasso anterior, rendeu a Morton grandes homenagens e ao éter a preferência de muitos cirurgiões. Convencionou-se depois que seria esse sucesso a marcar a data oficial do início do controlo da dor pela humanidade.

A Anestesia pelo Cirurgião – no mundo e em Portugal

Tem de aceitar-se que em muitos outros países já decorriam, antes de 1846, experiências semelhantes. Não é credível que se deva apenas à velocidade das comunicações e por isso a potencial cópia, o aparecimento em meses (um ano ou menos) do registo de anestesias com éter (“oito meses depois era praticada na China e na Austrália” – Nunes, A Anestesia nos séc. XIX e XX e os Hospitais da Univrsidade de Coimbra, 2008, p. 10) mas também com outros gases, de aparelhos projectados para o efeito e até de publicação de livros sobre anestesia, em inúmeros países: Espanha, Inglaterra, França, Holanda, Alemanha, Polónia, Rússia, Venezuela, Brasil, Peru, Argentina, México, Uruguay, Cuba, Guatemala (Guerra, www.anestesia.com.mx , 2008). Portugal não está ausente desta corrida: Francisco Luiz Gomes defende em 1847, em Montpellier, a tese de doutoramento subordinada ao tema -anestesia geral pelo éter – “De L´Etherisation Considerée Sous Les Rapports Théoriques Et Pratiques” e realizam-se, no mesmo ano, anestesias pelo éter no Hospital de Santo António e Hospital da Marinha e pelo clorofórmio neste e no Hospital Militar da Estrela em 1848.Os termos anestesia e derivados foram relançados nos USA por sugestão dum médico poeta (Holmes) logo em 1846 mas levaram mais tempo a difundir-se do que a anestesia propriamente dita.

Subsistiam entretanto críticas das Igrejas no combate à dor, já mais acantonadas no que se referia ao parto, no que eram secundadas por médicos que a procuravam justificar com hipotéticos benefícios fisiológicos. Tais críticas sofreram um rude golpe, a começar na Inglaterra, quando a rainha Vitória, chefe de uma das igrejas cristãs, se submeteu à anestesia, em 1853, pelo clorofórmio administrado por John Snow em um ou dois dos partos dos seus muitos filhos. O sucesso e a satisfação da rainha foi tal que a anestesia com clorofórmio ganhou o nome de “à la reine” e diz-se que a princesa que assim nasceu esteve para se chamar Anestesia (mas ficou Beatriz). E actualmente a analgesia de parto é, cada vez mais considerada um direito universal.

Construíram-se entretanto aparelhos para melhor doseamento dos gases, tubos endotraqueais para controlar a respiração, sintetizaram-se novos anestésicos voláteis; a anestesia geral endovenosa (que só se realizou em humanos, pela primeira vez em 1874) teve de esperar pela invenção da agulha metálica oca e da seringa hipodérmica (por Wood em 1854 e por Pravaz em França em 1851). A injecção como hoje se entende já tinha sido tentada em animais, em 1656, com uma pena de ave a servir de agulha e uma bexiga de porco como seringa pelo arquitecto inglês Wren e continuou a ser experimentada em humanos sobretudo para injectar ópio nas veias

A cocaína foi isolada das folhas de coca em 1855 pelo alemão Gaedecke e depois usada para injecções entre as vértebras da coluna em anestesias raquidianas e epidurais mais para o fim do século, vindo depois a ser substituída por outras drogas.

Os efeitos paralisantes do curare com que os índios envenenavam setas de caça e guerra, já observados pelos primeiros exploradores, foram aproveitados para provocar relaxamento muscular.

A anestesia ia-se tornando cada vez mais complexa e requerendo uma atenção mais constante e simultaneamente permitia cirurgias mais difíceis e prolongadas.

O cirurgião que começara por ser de formação mais empírica, hospitalar ou não, acabou a ser também médico, que era uma profissão com formação académica - em Portugal, a diferença médico/cirurgião é abolida por decreto de 20/6/1866 – e encarregava-se da (ou responsabilizava-se pela) anestesia; se necessário recorria a um auxiliar que podia ser um estudante, um enfermeiro, um empregado do próprio cirurgião ou até um familiar do paciente quando a cirurgia se realizava na residência deste, o que era frequente – o hospital destinava-se sobretudo às classes mais desfavorecidas.

Alguns cirurgiões foram-se interessando mais pela anestesia e até especializando-se na anestesia para determinadas áreas da cirurgia. Tal evolução deu origem a associações (a Sociedade Londrina de Anestesistas é de 1893), à criação da cadeira de anestesia (a primeira é a do New York Medical College em 1904 e a primeira europeia é de 1937 em Inglaterra), à edição de revistas (o “American Journal of Anesthesia and Analgesia” é em 1914 publicado como suplemento do “American Journal of Surgery”) e até a pós graduações (a 1ª é a de Mary Ross no Iowa em 1923).

Às vésperas da II Grande Guerra (1939-45), as práticas anestésicas e a reflexão e investigação sobre elas tinham avançado muito e justificaram a criação do “American Board of Anesthesiology”, em 1938, significando a mudança de nome que a anestesia era uma técnica, a anestesiologia uma ciência.

A guerra não fez mais do que aumentar a experiência, e em condições difíceis mas propícias aos avanços; “as especialidades cirúrgicas tinham tido grande desenvolvimento fruto dos desafios da cirurgia de guerra e das condições de «não há nada a perder» ” (Tavares, obra já citada).

A seguir à guerra, nos países mais desenvolvidos, a assepsia, a aparelhagem e a medicação exigidas tornaram obsoletas as cirurgias fora dum bloco operatório devidamente construído e equipado (o que não evitou que continuassem a fazer-se, em Portugal e noutros países, nas enfermarias e mesmo em casa dos doentes). Ficaram também criadas as condições que obrigariam a considerar a anestesia uma especialidade da carreira médica, o anestesista como um especialista tão necessário e importante como o cirurgião e os hospitais a disporem de um serviço ou departamento dessa especialidade que concentrasse e formasse os profissionais do combate à dor e os distribuísse quando necessário pelas unidades em que aparecia ou era provocada.

A criação daquelas condições não implicou que fossem reconhecidas ao mesmo tempo em todos os países nem mesmo dentro de cada país, como já foi dito. No fim da guerra, na Europa, apenas a Inglaterra, que liderava em termos de conhecimentos anestésicos, equiparava o anestesista e o cirurgião e dispunha de serviços autónomos de anestesia.

É por isso de forma arbitrária que aqui se situa em 1945 o ano de transição do período da anestesia pelo cirurgião para o da anestesia pelo anestesista; como aconteceu com a descoberta da anestesia cirúrgica, trata-se de todo um processo envolvendo questões sociais, técnicas e científicas, que começou antes e acabou depois do ano escolhido (aparentando recentemente indícios de reversão).

A Anestesia pelo Anestesista – sobretudo em Portugal, de 1948 a 2008

A Université de Louvain reivindica a primazia da criação no continente europeu de um serviço autónomo de anestesia expressamente baseado no modelo anglo-saxónico, por decisão tomada em Outubro de 1946, praticamente 100 anos certos depois da primeira anestesia oficialmente reconhecida. O ano da fundação oficial desse mesmo serviço é todavia o de 1948, e é durante o mesmo ano que se regista em Portugal a criação dos do Hospital de Santo António no Porto e do Hospital da Marinha em Lisboa.

A criação de tais serviços não garantiu, cá, como não deve ter garantido na Bélgica, no imediato, nem a exclusividade da anestesia pelo anestesista, nem a sua equiparação ao cirurgião, nem sequer o uso obrigatório do bloco operatório, e os passos para alcançar essas garantias estarão pouco ou nada documentados.

A anestesia pelo cirurgião, que operava com a roupa que trazia da rua, nas enfermarias e em casa dos pacientes, prosseguiu durante anos. Mesmo assim “em 1950 a Ordem dos Médicos reconheceu a especialidade e são estabelecidas regras de especialização em que o Serviço do Santo António, no Porto, é o único considerado idóneo na valorização dos estágios” (Alfredo Ribeiro dos Santos, um dos fundadores desse Serviço, comunicação pessoal). Em Lisboa, no Hospital de Santa Maria, o Serviço de Anestesia só foi criado em 1955, ano importante, para a autonomia dos novos especialistas e da especialidade, por se ter realizado o I Congresso Mundial de Anestesiologia e se ter criado a Sociedade Portuguesa de Anestesiologia, uma das 26 fundadoras, durante esse congresso, da Federação Mundial das Sociedades de Anestesiologia.

Na Bélgica, apesar da primazia referida, não foi senão em 1975 que o anestesista deixou legalmente de ser ajudante do cirurgião … para se tornar seu companheiro de equipa; é nesse ano que se consegue acabar de lançar as bases do serviço de anestesia dos Hospitais da Universidade de Coimbra que só teria no entanto um Director nomeado oficialmente em 1977; em anos anteriores à fundação de um serviço autónomo, os serviços de cirurgia (ou até um cirurgião importante) mandavam especializar-se, no país e ou lá fora, um “seu” elemento que se tornava o “seu” anestesista.

Os especialistas iniciavam, por essa altura e nos serviços considerados idóneos, a formação pós graduada com os conhecimentos que traziam do ensino liceal (designação da época), no que às ciências exactas dizia respeito, visto que na licenciatura não sofriam grande acréscimo.

A especialidade era praticada com pouca sofisticação: a monitorização do paciente era feita pelo olho clínico do praticante – cor da pele e dos lábios, transpiração, pulso, reflexos palpebrais; a ventilação era manual (apertava-se um balão); o oxigénio era fornecido em garrafas e não em contínuo como actualmente. Descreve-a assim um contemporâneo: “Nós ventilávamos o doente com um balão e o balão servia de ventilador e depois era mais ou menos a olho. Estava ali a dar ao balão, duas, três, quatro horas, ministrava as drogas…A monitorização era perfeitamente… essa coisa da saturação … [e com ironia] nessa altura os doentes não dessaturavam muito, era olhar para os lábios e ver se estavam rosados…” .

Em compensação os conceitos aprendidos no ensino secundário tinham uma tradução sensível: uma garrafa de poucos litros a pressão alta fornecia muitos litros à pressão atmosférica e o utilizador tinha de prever-lhe o esgotamento, o que dava conteúdo ao conceito de compressibilidade e às relações pressão – volume nos gases; a resistência de um tubo sentia-se ao dar ao balão, as pressões exercidas tinham reflexos no esforço muscular. No Hospital de Santo António até o próprio “empregado indiferenciado, o Adriano” tomava consciência do peso dos gases quando “levava às costas os tubos de oxigénio e de protóxido de azoto do aparelho à rua Justino Teixeira onde eram cheios na fábrica do ar líquido” (Alfredo Ribeiro dos Santos, comunicação pessoal)..

Durante estas duas décadas registaram-se progressos substanciais no domínio da farmacologia, da fisiologia e da aparelhagem ligada à anestesia; o advento das novidades, tubos mais sofisticados, ventiladores permitindo uma variabilidade crescente de padrões ventilatórios, monitores de pressão, oxímetros, foi-se processando de forma suficientemente desfasada para que cada nova aquisição se integrasse e alargasse o preexistente quadro conceptual do especialista.

Tais progressos, em Portugal iam sendo acompanhados com algumas dificuldades; em 1969 ou 70, o director do Serviço de Anestesia do Hospital de Santo António, dos mais actualizados anestesistas de então, teve de mandar vir de urgência de Inglaterra tubos de recente criação para uso por períodos longos dado que o estado comatoso de Salazar fazia prever essa necessidade (que não veio a verificar-se), e em Portugal, para outros doentes…não se justificava.

Nessa altura já não era imaginável a cirurgia fora das instalações adequadas nem uma anestesia geral sem anestesista e a importância deste no bloco operatório era muito próxima da do cirurgião; podia até ser superior se houvesse grande diferença a seu favor, em termos de experiência ou de hierarquia na carreira hospitalar. No exterior, porém, a ideia que sempre circulou foi a de que uma operação bem sucedida era um mérito do cirurgião e uma mal sucedida evidenciava deficiências do anestesista.

Por outro lado, dado que o anestesista não exerce uma acção directamente curativa, na medicina privada o doente “é” do cirurgião que escolhe e dispõe do “seu” ou dos “seus” anestesistas e esse predomínio tem reflexos no meio hospitalar que cirurgiões e anestesistas raramente frequentam em regime de exclusividade. E ainda em 1959 no Porto, quando o ensino da medicina passou para o Hospital Escolar de S. João, “cada professor de cirurgia levou consigo um anestesista” (cinco homens e uma mulher no total) “para que lhe anestesiasse os doentes que ele próprio e os médicos do seu serviço operavam nas suas salas de operações. Eram tarefeiros, cada um dependente do professor que o convidara a acompanhá-lo” (Tavares, obra já citada).

Seja como for, a criação dos serviços autónomos, com o acréscimo dos saberes de referência alargou as responsabilidades dos anestesistas, principalmente em duas direcções: o ensino e os cuidados intensivos.

O aumento de conhecimentos teóricos e práticos, específicos da profissão, tornou impensável a formação dos estagiários à moda dos anos 50, por simples aprendizagem a ver fazer, e obrigou, um pouco mais tarde inclusive em termos legais, a estruturar planos e programas de ensino teórico e prático e de avaliação dos internos, e ao aperfeiçoamento contínuo dos especialistas.

Sendo a tarefa habitual dos anestesistas eliminar a dor, manter o suporte de vida cardíaco e respiratório durante a anestesia e ressuscitar o paciente após a intervenção cirúrgica, foi-se sedimentando a ideia de não haver ninguém melhor colocado para exercer competências teóricas e práticas da ressuscitação cardiopulmonar e de suporte avançado de vida e do domínio do combate à dor não cirúrgica em unidades só recentemente criadas. Todavia o primeiro conjunto de competências, conhecido por reanimação, tende agora a chamar-se de cuidados intensivos e constitui uma subespecialidade que vai ganhando independência.

Para o reconhecimento e a independência da especialidade em Portugal, contribuíram ainda, de algum modo, o I Congresso Europeu de Anestesiologia de 1962 em Viena, a 1ª Reunião Nacional de Anestesistas Portugueses em 1979 com a criação, em Portugal, do colégio da especialidade na Ordem dos Médicos no mesmo ano, o surgir do primeiro doutorado em Anestesiologia em 1982 (Anselmo Carvalhas de Coimbra), a edição da revista da Sociedade Portuguesa de Anestesiologia em 1985 e a criação na Universidade de Lisboa da disciplina de Anestesiologia e Reanimação em 1986.

Apesar do aumento da complexidade de cirurgias e anestesias, com o aparecimento de melhores fármacos, instrumentos e alarmes, o número de incidentes anestésicos críticos tem vindo a baixar em todo o mundo de tal modo que se torna habitual que no período de formação pós graduada, um anestesista não depare com aqueles para os quais deveria estar preparado se e quando lhe surgirem; essa dificuldade tem vindo a ser colmatada em muitos países por recurso à simulação de base informática, instrumento que tarda em chegar à anestesia portuguesa.

A análise do erro na perspectiva da sua prevenção com base na comunicação dos incidentes surgidos, em prática há várias décadas no mundo anglo-saxónico e em atraso em Portugal, tem também sido feita em boa parte com recurso ao mesmo instrumento – a simulação - em múltiplos países; que a preocupação com esse atraso existe mostra-o o apelo a “reportar incidentes na prática anestésica” patente no site da Sociedade Portuguesa de Anestesiologia a seguir a um texto sobre o assunto abordado na sua Assembleia Geral de Janeiro de 2007 e assinado por Susana Parente, mas é pouco audível o eco desse apelo.

O aumento de independência, de importância, de competências e de responsabilidades dos anestesistas não parece proporcionar-lhes bem-estar psicológico. Na conclusão do trabalho intitulado “Stress e burnout entre anestesiologistas portugueses” (Maia et al., revista da SPA, 2006, pg 16) afirma-se: “Entre os 263 anestesiologistas, 57,9% apresentaram exaustão emocional, 44,8% falta de realização pessoal e 90,9% despersonalização … Existem condições de stress e burnout entre os anestesiologistas portugueses. A prevalência de despersonalização foi muito grande na amostra estudada. A exaustão emocional é parcialmente explicada pelo alto stress percepcionado e pela insatisfação com a organização no trabalho de acordo com a escala PMI”.

Recentes alterações legislativas parecem não contribuir nem para o progresso técnico-científico, nem para a independência da especialidade nem para o bem-estar dos especialistas: “Uma questão em aberto que necessita de uma reflexão posterior é a de que o regime de contratos individuais de trabalho possa ser simultaneamente um instrumento compatível com a manutenção das carreiras médicas, sem as quais não teria sido possível alcançar o actual nível de competência técnico-científico” (Tavares, obra já citada, p. 200). Verifica-se

por outro lado, uma tendência que encara a evolução da especialidade como a sua fragmentação, que se manifesta pela criação de competências e de sub-especialidades na estrutura científico-administrativa da Ordem dos Médicos ( …)

Esta fragmentação em áreas em que a anestesiologia é perita constitui simultaneamente um risco e um desafio: o risco de retrocesso na trajectória dos anestesiologistas, confinados ao bloco operatório, transformados de novo em «anestesiadores», e o desafio de imporem nessas estruturas os critérios médicos oriundos da sua especialidade e de aprofundarem a sua participação profissional, pedagógica e científica nessas áreas (Tavares, obra já citada, p. 201).

A reversão da independência da especialidade com a relativa clausura referida pelo autor parece ter sido quebrada nos EU pela simulação, segundo Smith & Gaba (http://simtech.stanford.edu/downloads/Smith&Gaba Final2.pdf , p. 63):

A expansão do treino clínico (com simuladores) para além da anestesiologia … Isto não só trouxe os benefícios do treino baseado na simulação para esses outros domínios dos cuidados de saúde como também colocou os anestesistas a encabeçar as questões relativas à educação, ao treino e à avaliação da performance.

Como a profissão de anestesiologista tinha visto ser redefinido o seu papel no domínio dos cuidados de saúde, a emergência dos anestesiologistas quer como peritos no uso da simulação quer como peritos na destreza cognitiva da dinâmica de tomada de decisão complexa acrescentou um outro importante papel à profissão. … É admissível que o treino baseado na simulação, maioritariamente liderado por anestesiologistas se torne por rotina parte do treino inicial e recorrente de todos os clínicos que trabalhem em domínios que envolvam complexidade e dinamismo elevados.

Passos idênticos em Portugal ficam a cargo do desenvolvimento dos centros de simulação dos hospitais das universidades do Porto e de Coimbra, sobretudo deste último, directamente ligado ao Serviço de Anestesiologia, cujo director considera que o novo centro “destaca-se pela capacidade de alterar processos formativos e de alteração prática em áreas críticas dos cuidados de saúde e de organização das equipas e unidades de saúde” .

As observações de Smith e Gaba e as de Nunes fundamentam a hipótese de a anestesia, como especialidade da carreira médica, estar em plena fase de transição para um quarto período da sua história, demarcado pela adopção generalizada, estudo e desenvolvimento da simulação dinâmica com vista à formação dos seus profissionais e dos de áreas afins, à prevenção do erro e à salvaguarda do doente crítico, ganhando um novo relevo na história mais geral da medicina e cuidados de saúde.

Porto 2008