PRECE DO BRASILEIRO: UM ENSAIO ESTILÍSTICO
I
Meu Deus,
só me lembro de vós para pedir,
mas de qualquer modo sempre é uma lembrança.
Desculpai vosso filho, que se veste
de humildade e esperança
e vos suplica: Olhai para o Nordeste
onde há fome, Senhor, e desespero
rodando nas estradas
entre esqueletos de animais.
II
Em Iguatu, Parambu, Baturité,Tauá
(vogais tão fortes não chegam até vós?)
vede as espectrais
procissões de braços estendidos,
assaltos, sobressaltos, armazéns
arrombados e – o que é pior – não tinham nada.
Fazei, Senhor, chover a chuva boa,
aquela que, florindo e reflorindo, soa
qual cantata de Bach em vossa glória
e dá vida ao boi, ao bode, à erva seca,
ao pobre sertanejo destruído
no que tem de mais doce e mais cruel:
a terra estorricada sempre amada.
III
Fazei chover, Senhor, e já! numa certeira
ordem às nuvens. Ou desobedecem
a vosso mando, as revoltosas? Fosse eu Vieira
(o padre) e vos diria, malcriado,
muitas e boas... mas sou vosso fã
omisso, pecador, bem brasileiro.
Comigo é na macia, no veludo/lã
e matreiro, rogo, não
ao Senhor Deus dos Exércitos (Deus me livre)
mas ao Deus que Bandeira, com carinho
botou em verso: “meu Jesus Cristinho”.
IV
E mudo até o tratamento: por que vós,
tão gravata-e-colarinho, tão
vossa excelência?
O você comunica muito mais
e se agora o trato de você,
ficamos perto, vamos papeando
como dois camaradas bem legais,
um, puro; o outro, aquela coisa,
quase que maldito
mas amizade é isso mesmo: salta
o vale, o muro, o abismo do infinito.
V
Meu querido Jesus, que é que há?
Faz sentido deixar o Ceará
sofrer em ciclo a mesma eterna pena?
E você me responde suavemente:
Escute, meu cronista e meu cristão:
essa cantiga é antiga
e de tão velha não entoa não.
Você tem a Sudene abrindo frentes
de trabalho de emergência, antes fechadas.
Tem a ONU, que manda toneladas
de pacotes à espera de haver fome.
Tudo está preparado para a cena
dolorosamente repetida
no mesmo palco. O mesmo drama, toda vida.
VI
No entanto, você sabe,
você lê os jornais, vai ao cinema,
até um livro de vez em quando lê
se o Buzaid não criar problema:
Em Israel, minha primeira pátria
(a segunda é a Bahia)
desertos se transformam em jardins
em pomares, em fontes, em riquezas.
E não é por milagre:
obra do homem e da tecnologia.
Você, meu brasileiro,
não acha que já é tempo de aprender
e de atender àquela brava gente
fugindo à caridade de ocasião
e ao vício de esperar tudo da oração?
VII
Jesus disse e sorriu. Fiquei calado.
Fiquei, confesso, muito encabulado,
mas pedir, pedir sempre ao bom amigo
é balda que carrego aqui comigo.
Disfarcei e sorri. Pois é, meu caro.
Vamos mudar de assunto. Eu ia lhe falar
noutro caso, mais sério, mais urgente.
VIII
Escute aqui, ó irmãozinho.
Meu coração, agora, tá no México
batendo pelos músculos de Gérson,
a unha de Tostão, a ronha de Pelé,
a cuca de Zagalo, a calma de Leão
e tudo mais que liga o meu país
e uma bola no campo e uma taça de ouro.
IX
Dê um jeito, meu velho, e faça que essa taça
sem milagres ou com ele nos pertença
para sempre, assim seja... Do contrário
ficará a Nação tão melencônica,
tão roubada em seu sonho e seu ardor
que nem sei como feche a minha crônica.
Carlos Drummond de Andrade
(Jornal do Brasil, 30 de maio de 1970, Caderno B, p. 37).
Carlos Drummond de Andrade, de forma bem humorada, se utiliza de dois planos: o humano e o divino, para caracterizar os dois agentes da comunicação no poema. Entre os dois agentes há um obstáculo caracterizado pelos adjetivos “puro” e “maldito”.
Os verbos estão predominantemente no imperativo, reforçando a ideia de apelo presente em todo o texto. Até a quinta estrofe, o poeta emprega um tratamento formal, cerimonioso, demonstrando medo e respeito excessivos em relação a Deus:
“ Só me lembro de vós para pedir.../ Desculpai vosso filho... / Fazei, Senhor, chover / [...] Fazei chover, Senhor..."
A partir da quarta estrofe, o agente humano, movido pelo desespero, começa a “quebrar” essa formalidade, tornando a comunicação menos tensa e mais proveitosa, pelo menos para ele. Ainda assim, reconhece a própria insignificância diante do agente divino, a ponto de desejar ser o Padre Vieira para ser mais íntimo de Jesus e poder falar-lhe de igual para igual, expondo o que pensa e o que sente. Entretanto, vale-se do “jeitinho” brasileiro para tentar uma aproximação maior e conquistar a simpatia do interlocutor divino
" mas sou vosso fã / omisso pecador, bem brasileiro. / comigo é na macia, no veludo, lã."
A intimidade entre os agentes é proposta no primeiro verso dessa estrofe:
"E mudo até o tratamento: Por que Vós / tão gravata e colarinho, tão Vossa Excelência?"
Nessa passagem, podemos inferir uma alusão ao Presidente da República e às demais autoridades do governo que se mantêm inacessíveis ao povo. O poeta muda radicalmente o tratamento de “Vós” e “Senhor” para “você”:
" O você comunica muito mais / e se agora o trato por você, / ficamos mais perto, vamos papeando / como dois colegas bem legais..."
Aqui, vale observar a substantivação do pronome de tratamento "você," justificando a verdadeira intenção do agente humano: criar um laço de profunda intimidade com o divino. Ideia corroborada pela escolha estilística do verbo “papear”, no gerúndio, cuja função é estabelecer uma cumplicidade entre os dois agentes, visto que os verbos “conversar”, “dialogar”, confabular” pertencem ao registro formal e, portanto, criam um obstáculo entre os interlocutores. Tal intenção é reforçada no verso: “como dois colegas bem legais”, em que o substantivo colegas e o adjetivo legais afastam quaisquer formalidades entre ambos.
Ainda na quarta estrofe, a justaposição “gravata-e-colarinho" e a adjetivação do pronome de tratamento “Vossa Excelência” precedidos do intensificador “tão”, enfatizam certo pedantismo, atitude característica dos homens, não de Deus.
A expressão “muitas e boas” , na terceira estrofe, é um trocadilho da expressão popular “poucas e boas” que significa desacatar alguém, dizer-lhe verdades muito duras. Mas essa expressão é atenuada por palavras do mesmo campo semântico: "na macia", "no veludo", "lã", para mostrar que o povo brasileiro além de não guardar rancor, recorre a bajulações para conseguir o que almeja; fato constatado pelo uso do adjetivo "matreiro", no verso: "[...] e matreiro, rogo...”. Ainda na mesma estrofe, quando o agente humano se refere ao "Senhor Deus dos Exércitos", há, talvez uma referência ao governo militar, vigente à época em que o poema foi escrito. Tal intenção é reforçada pela expressão entre parênteses "(Deus me livre)" e pela intertextualidade externa implícita, "Meu Jesus Cristinho", alusão feita ao texto “Conto cruel” de Manuel Bandeira.
Para realçar o contraste entre os dois agentes, Carlos Drummond de Andrade utiliza a antítese: "um puro" (o divino) "o outro, aquela coisa, quase que maldito" (o humano). Ao mesmo tempo, justifica a possibilidade de entendimento entre eles, por meio da amizade, já que ela “salta o vale, o muro, o abismo do infinito.” Na quinta estrofe, aproveitando-se dessa ideia, o agente humano faz uma crítica à atuação do amigo divino:
“Meu amigo Jesus, que é que há? / Faz sentido deixar o Ceará / sofrer em ciclo a mesma eterna pena?”. Valendo-se magnificamente da prosopopeia, o divino se aproxima do humano, utilizando a mesma linguagem familiar, reforçada pelo advérbio “suavemente”, para evidenciar a mansidão de Jesus. Nessa passagem, a substantivação das siglas SUDENE (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste) e ONU (Organização das Nações Unidas) isentam o agente divino de qualquer culpa, transferindo-a ao comodismo da população nordestina, ao descaso dos governantes e à má administração do dinheiro público.
Na sexta estrofe, Jesus chama a atenção de seu interlocutor para a acomodação dos brasileiros que deixam tudo nas mãos de Deus, à espera de milagres. O emprego da palavra denotativa de inclusão “até” traduz certa ironia ao constatar que, no Brasil, mesmo os intelectuais leem pouco, são mal informados:
“Você lê os jornais, vai ao cinema /até um livro de vez em quando lê/ se o Buzaid não criar problema”.
Nesses versos, há também referência ao Código de Processo Civil – Código Buzaid – cujo projeto foi elaborado pelo então Ministro da Justiça, Alfredo Buzaid.
Ainda para destacar a preguiça e a acomodação dos brasileiros, o poeta emprega a antítese e a gradação: “desertos se transformam em jardins / em pomares / em fontes, em riquezas”, justificando que em Israel, os homens não esperam por milagres, preferem trabalhar. Aqui, Jesus sugere que cada um deve fazer a sua parte e parar de ficar esperando por milagres ou acreditando em promessas políticas.
No primeiro verso da sétima estrofe, o sorriso de Jesus sela, definitivamente, a intimidade entre os agentes. Na mesma estrofe, com o verbo "ficar" no pretérito perfeito, indicando que aquele assunto fora encerrado, o agente humano se confessa envergonhado, sem reação. No entanto, como são amigos, resolve mudar de assunto. E, para isso, a comunicação atinge o máximo de intimidade: “Escute aqui ó irmãozinho...” É interessante observar a carga afetiva expressa pelo substantivo "irmão", no diminutivo. Agora, utilizando uma linguagem totalmente coloquial, o agente humano faz novo apelo a Jesus: já que não há solução para a seca do Nordeste, algo deve ser feito para alegrar os brasileiros, esse povo que esquece qualquer problema ou dificuldade, quando se trata de futebol. Para isso, o agente humano parece sugerir que Jesus seja também brasileiro, dê o seu “jeitinho”: “Dê um jeito, meu velho...”. Nessa passagem, o uso do neologismo melencônica, que podemos traduzir como a junção de melancólica (triste) e lacônica (vazia), tenta comover o agente divino, alertando-o para as consequências desastrosas de uma derrota, tanto para a Nação, como para ele, agente humano, que, na qualidade de cronista, precisa de inspiração para escrever sua crônica.
Na última estrofe, a alternância fônica e a aliteração do fonema constritivo fricativo alveolar surdo /s/ em: “faça que essa taça / sem milagre ou com ele nos pertença”, dão-nos a impressão de uma prece sussurrada.
Na segunda estrofe, as vogais tônicas de Iguatu, Parambu, Baturité, Tauá (cidades cearenses) dão ao verso um tom de desespero, sugerindo gritos, fato implícito no verso entre parênteses: (Vogais tão fortes que não chegam até vós). A assonância do fonema vocálico médio /a/ – "assaltos", "sobressaltos", "arrombados..." "não tinha nada" – conota, ao mesmo tempo, a ideia de altura, amplitude e de vazio.
O texto é composto de nove estrofes, cujos versos não seguem uma metrificação rígida (heterométricos), as rimas são bastante variadas, duas das quais são internas: cantiga/antiga, faça/taça, predominando os versos brancos.
Convém destacar algumas figuras encontradas no texto:
Pleonasmo – "Fazei, Senhor, chover a chuva boa", ou seja, uma chuva que seja suficiente para salvar os homens, os animais e as plantações;
Símile – “[...] aquela que, florindo e reflorindo, soa / qual cantata de Bach em vossa... " ou seja, somente a melodia da chuva é capaz de trazer a alegria e a vontade de viver aos seres do sertão. Vale observar, aqui, a referência às obras religiosas do compositor Johan Sebastian Bach.
Alegoria – (sequência de metáforas): “[...] vede as espectrais procissões de braços estendidos" – pessoas famintas vagam qual fantasmas, pelos sertões, rezando e fazendo promessas. Os braços abertos remetem-nos ao sofrimento de Cristo, na cruz, ao gesto de quem implora algo que vem do céu, ou ainda, alguém que está sendo assaltado.
Gradação : “[...] dá vida ao boi, ao bode, a erva seca, ao pobre sertanejo” – a importância da água para a manutenção da vida. “[...] Desertos se transformam em jardins, em pomares, em fontes, em riquezas... “ – cabe ao homem transformar, por meio do trabalho e da inteligência, o Planeta em que habita.
Antítese: “[ ... ] no que tem de mais doce e mais cruel”, pois mesmo sofrendo com a seca, o cearense ama a sua terra.
É marcante a diferença que o poeta estabelece entre Deus e Jesus Cristo: aquele é mais velho e carrancudo por isso, o tom de respeito e cerimônia, enquanto este é jovem e despojado, como um colega, podendo conversar com o agente humano da forma mais familiar possível.
A função apelativa é predominante no poema, caracterizada pelo uso de vocativos e de verbos no imperativo. Entretanto, as funções referencial, poética e emotiva também estão presentes.
Por fim, gostaria de salientar que este trabalho é apenas uma tímida análise dos recursos estilísticos empregados pelo autor. Não tive, aqui, a menor pretensão de esgotar todas as possibilidades de interpretação do poema.
Bibliografia:
BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999.
MONTEIRO, José Lemos. A Estilística. São Paulo: Ática, 1991.
MARTINS, Nilce Sant’Anna. Introdução à Estilística. 2ed. São Paulo: T.A. Queiroz, 1997.
VALENTE, André. A Linguagem nossa de cada dia. 3ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.
Meu Deus,
só me lembro de vós para pedir,
mas de qualquer modo sempre é uma lembrança.
Desculpai vosso filho, que se veste
de humildade e esperança
e vos suplica: Olhai para o Nordeste
onde há fome, Senhor, e desespero
rodando nas estradas
entre esqueletos de animais.
II
Em Iguatu, Parambu, Baturité,Tauá
(vogais tão fortes não chegam até vós?)
vede as espectrais
procissões de braços estendidos,
assaltos, sobressaltos, armazéns
arrombados e – o que é pior – não tinham nada.
Fazei, Senhor, chover a chuva boa,
aquela que, florindo e reflorindo, soa
qual cantata de Bach em vossa glória
e dá vida ao boi, ao bode, à erva seca,
ao pobre sertanejo destruído
no que tem de mais doce e mais cruel:
a terra estorricada sempre amada.
III
Fazei chover, Senhor, e já! numa certeira
ordem às nuvens. Ou desobedecem
a vosso mando, as revoltosas? Fosse eu Vieira
(o padre) e vos diria, malcriado,
muitas e boas... mas sou vosso fã
omisso, pecador, bem brasileiro.
Comigo é na macia, no veludo/lã
e matreiro, rogo, não
ao Senhor Deus dos Exércitos (Deus me livre)
mas ao Deus que Bandeira, com carinho
botou em verso: “meu Jesus Cristinho”.
IV
E mudo até o tratamento: por que vós,
tão gravata-e-colarinho, tão
vossa excelência?
O você comunica muito mais
e se agora o trato de você,
ficamos perto, vamos papeando
como dois camaradas bem legais,
um, puro; o outro, aquela coisa,
quase que maldito
mas amizade é isso mesmo: salta
o vale, o muro, o abismo do infinito.
V
Meu querido Jesus, que é que há?
Faz sentido deixar o Ceará
sofrer em ciclo a mesma eterna pena?
E você me responde suavemente:
Escute, meu cronista e meu cristão:
essa cantiga é antiga
e de tão velha não entoa não.
Você tem a Sudene abrindo frentes
de trabalho de emergência, antes fechadas.
Tem a ONU, que manda toneladas
de pacotes à espera de haver fome.
Tudo está preparado para a cena
dolorosamente repetida
no mesmo palco. O mesmo drama, toda vida.
VI
No entanto, você sabe,
você lê os jornais, vai ao cinema,
até um livro de vez em quando lê
se o Buzaid não criar problema:
Em Israel, minha primeira pátria
(a segunda é a Bahia)
desertos se transformam em jardins
em pomares, em fontes, em riquezas.
E não é por milagre:
obra do homem e da tecnologia.
Você, meu brasileiro,
não acha que já é tempo de aprender
e de atender àquela brava gente
fugindo à caridade de ocasião
e ao vício de esperar tudo da oração?
VII
Jesus disse e sorriu. Fiquei calado.
Fiquei, confesso, muito encabulado,
mas pedir, pedir sempre ao bom amigo
é balda que carrego aqui comigo.
Disfarcei e sorri. Pois é, meu caro.
Vamos mudar de assunto. Eu ia lhe falar
noutro caso, mais sério, mais urgente.
VIII
Escute aqui, ó irmãozinho.
Meu coração, agora, tá no México
batendo pelos músculos de Gérson,
a unha de Tostão, a ronha de Pelé,
a cuca de Zagalo, a calma de Leão
e tudo mais que liga o meu país
e uma bola no campo e uma taça de ouro.
IX
Dê um jeito, meu velho, e faça que essa taça
sem milagres ou com ele nos pertença
para sempre, assim seja... Do contrário
ficará a Nação tão melencônica,
tão roubada em seu sonho e seu ardor
que nem sei como feche a minha crônica.
Carlos Drummond de Andrade
(Jornal do Brasil, 30 de maio de 1970, Caderno B, p. 37).
Carlos Drummond de Andrade, de forma bem humorada, se utiliza de dois planos: o humano e o divino, para caracterizar os dois agentes da comunicação no poema. Entre os dois agentes há um obstáculo caracterizado pelos adjetivos “puro” e “maldito”.
Os verbos estão predominantemente no imperativo, reforçando a ideia de apelo presente em todo o texto. Até a quinta estrofe, o poeta emprega um tratamento formal, cerimonioso, demonstrando medo e respeito excessivos em relação a Deus:
“ Só me lembro de vós para pedir.../ Desculpai vosso filho... / Fazei, Senhor, chover / [...] Fazei chover, Senhor..."
A partir da quarta estrofe, o agente humano, movido pelo desespero, começa a “quebrar” essa formalidade, tornando a comunicação menos tensa e mais proveitosa, pelo menos para ele. Ainda assim, reconhece a própria insignificância diante do agente divino, a ponto de desejar ser o Padre Vieira para ser mais íntimo de Jesus e poder falar-lhe de igual para igual, expondo o que pensa e o que sente. Entretanto, vale-se do “jeitinho” brasileiro para tentar uma aproximação maior e conquistar a simpatia do interlocutor divino
" mas sou vosso fã / omisso pecador, bem brasileiro. / comigo é na macia, no veludo, lã."
A intimidade entre os agentes é proposta no primeiro verso dessa estrofe:
"E mudo até o tratamento: Por que Vós / tão gravata e colarinho, tão Vossa Excelência?"
Nessa passagem, podemos inferir uma alusão ao Presidente da República e às demais autoridades do governo que se mantêm inacessíveis ao povo. O poeta muda radicalmente o tratamento de “Vós” e “Senhor” para “você”:
" O você comunica muito mais / e se agora o trato por você, / ficamos mais perto, vamos papeando / como dois colegas bem legais..."
Aqui, vale observar a substantivação do pronome de tratamento "você," justificando a verdadeira intenção do agente humano: criar um laço de profunda intimidade com o divino. Ideia corroborada pela escolha estilística do verbo “papear”, no gerúndio, cuja função é estabelecer uma cumplicidade entre os dois agentes, visto que os verbos “conversar”, “dialogar”, confabular” pertencem ao registro formal e, portanto, criam um obstáculo entre os interlocutores. Tal intenção é reforçada no verso: “como dois colegas bem legais”, em que o substantivo colegas e o adjetivo legais afastam quaisquer formalidades entre ambos.
Ainda na quarta estrofe, a justaposição “gravata-e-colarinho" e a adjetivação do pronome de tratamento “Vossa Excelência” precedidos do intensificador “tão”, enfatizam certo pedantismo, atitude característica dos homens, não de Deus.
A expressão “muitas e boas” , na terceira estrofe, é um trocadilho da expressão popular “poucas e boas” que significa desacatar alguém, dizer-lhe verdades muito duras. Mas essa expressão é atenuada por palavras do mesmo campo semântico: "na macia", "no veludo", "lã", para mostrar que o povo brasileiro além de não guardar rancor, recorre a bajulações para conseguir o que almeja; fato constatado pelo uso do adjetivo "matreiro", no verso: "[...] e matreiro, rogo...”. Ainda na mesma estrofe, quando o agente humano se refere ao "Senhor Deus dos Exércitos", há, talvez uma referência ao governo militar, vigente à época em que o poema foi escrito. Tal intenção é reforçada pela expressão entre parênteses "(Deus me livre)" e pela intertextualidade externa implícita, "Meu Jesus Cristinho", alusão feita ao texto “Conto cruel” de Manuel Bandeira.
Para realçar o contraste entre os dois agentes, Carlos Drummond de Andrade utiliza a antítese: "um puro" (o divino) "o outro, aquela coisa, quase que maldito" (o humano). Ao mesmo tempo, justifica a possibilidade de entendimento entre eles, por meio da amizade, já que ela “salta o vale, o muro, o abismo do infinito.” Na quinta estrofe, aproveitando-se dessa ideia, o agente humano faz uma crítica à atuação do amigo divino:
“Meu amigo Jesus, que é que há? / Faz sentido deixar o Ceará / sofrer em ciclo a mesma eterna pena?”. Valendo-se magnificamente da prosopopeia, o divino se aproxima do humano, utilizando a mesma linguagem familiar, reforçada pelo advérbio “suavemente”, para evidenciar a mansidão de Jesus. Nessa passagem, a substantivação das siglas SUDENE (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste) e ONU (Organização das Nações Unidas) isentam o agente divino de qualquer culpa, transferindo-a ao comodismo da população nordestina, ao descaso dos governantes e à má administração do dinheiro público.
Na sexta estrofe, Jesus chama a atenção de seu interlocutor para a acomodação dos brasileiros que deixam tudo nas mãos de Deus, à espera de milagres. O emprego da palavra denotativa de inclusão “até” traduz certa ironia ao constatar que, no Brasil, mesmo os intelectuais leem pouco, são mal informados:
“Você lê os jornais, vai ao cinema /até um livro de vez em quando lê/ se o Buzaid não criar problema”.
Nesses versos, há também referência ao Código de Processo Civil – Código Buzaid – cujo projeto foi elaborado pelo então Ministro da Justiça, Alfredo Buzaid.
Ainda para destacar a preguiça e a acomodação dos brasileiros, o poeta emprega a antítese e a gradação: “desertos se transformam em jardins / em pomares / em fontes, em riquezas”, justificando que em Israel, os homens não esperam por milagres, preferem trabalhar. Aqui, Jesus sugere que cada um deve fazer a sua parte e parar de ficar esperando por milagres ou acreditando em promessas políticas.
No primeiro verso da sétima estrofe, o sorriso de Jesus sela, definitivamente, a intimidade entre os agentes. Na mesma estrofe, com o verbo "ficar" no pretérito perfeito, indicando que aquele assunto fora encerrado, o agente humano se confessa envergonhado, sem reação. No entanto, como são amigos, resolve mudar de assunto. E, para isso, a comunicação atinge o máximo de intimidade: “Escute aqui ó irmãozinho...” É interessante observar a carga afetiva expressa pelo substantivo "irmão", no diminutivo. Agora, utilizando uma linguagem totalmente coloquial, o agente humano faz novo apelo a Jesus: já que não há solução para a seca do Nordeste, algo deve ser feito para alegrar os brasileiros, esse povo que esquece qualquer problema ou dificuldade, quando se trata de futebol. Para isso, o agente humano parece sugerir que Jesus seja também brasileiro, dê o seu “jeitinho”: “Dê um jeito, meu velho...”. Nessa passagem, o uso do neologismo melencônica, que podemos traduzir como a junção de melancólica (triste) e lacônica (vazia), tenta comover o agente divino, alertando-o para as consequências desastrosas de uma derrota, tanto para a Nação, como para ele, agente humano, que, na qualidade de cronista, precisa de inspiração para escrever sua crônica.
Na última estrofe, a alternância fônica e a aliteração do fonema constritivo fricativo alveolar surdo /s/ em: “faça que essa taça / sem milagre ou com ele nos pertença”, dão-nos a impressão de uma prece sussurrada.
Na segunda estrofe, as vogais tônicas de Iguatu, Parambu, Baturité, Tauá (cidades cearenses) dão ao verso um tom de desespero, sugerindo gritos, fato implícito no verso entre parênteses: (Vogais tão fortes que não chegam até vós). A assonância do fonema vocálico médio /a/ – "assaltos", "sobressaltos", "arrombados..." "não tinha nada" – conota, ao mesmo tempo, a ideia de altura, amplitude e de vazio.
O texto é composto de nove estrofes, cujos versos não seguem uma metrificação rígida (heterométricos), as rimas são bastante variadas, duas das quais são internas: cantiga/antiga, faça/taça, predominando os versos brancos.
Convém destacar algumas figuras encontradas no texto:
Pleonasmo – "Fazei, Senhor, chover a chuva boa", ou seja, uma chuva que seja suficiente para salvar os homens, os animais e as plantações;
Símile – “[...] aquela que, florindo e reflorindo, soa / qual cantata de Bach em vossa... " ou seja, somente a melodia da chuva é capaz de trazer a alegria e a vontade de viver aos seres do sertão. Vale observar, aqui, a referência às obras religiosas do compositor Johan Sebastian Bach.
Alegoria – (sequência de metáforas): “[...] vede as espectrais procissões de braços estendidos" – pessoas famintas vagam qual fantasmas, pelos sertões, rezando e fazendo promessas. Os braços abertos remetem-nos ao sofrimento de Cristo, na cruz, ao gesto de quem implora algo que vem do céu, ou ainda, alguém que está sendo assaltado.
Gradação : “[...] dá vida ao boi, ao bode, a erva seca, ao pobre sertanejo” – a importância da água para a manutenção da vida. “[...] Desertos se transformam em jardins, em pomares, em fontes, em riquezas... “ – cabe ao homem transformar, por meio do trabalho e da inteligência, o Planeta em que habita.
Antítese: “[ ... ] no que tem de mais doce e mais cruel”, pois mesmo sofrendo com a seca, o cearense ama a sua terra.
É marcante a diferença que o poeta estabelece entre Deus e Jesus Cristo: aquele é mais velho e carrancudo por isso, o tom de respeito e cerimônia, enquanto este é jovem e despojado, como um colega, podendo conversar com o agente humano da forma mais familiar possível.
A função apelativa é predominante no poema, caracterizada pelo uso de vocativos e de verbos no imperativo. Entretanto, as funções referencial, poética e emotiva também estão presentes.
Por fim, gostaria de salientar que este trabalho é apenas uma tímida análise dos recursos estilísticos empregados pelo autor. Não tive, aqui, a menor pretensão de esgotar todas as possibilidades de interpretação do poema.
Bibliografia:
BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999.
MONTEIRO, José Lemos. A Estilística. São Paulo: Ática, 1991.
MARTINS, Nilce Sant’Anna. Introdução à Estilística. 2ed. São Paulo: T.A. Queiroz, 1997.
VALENTE, André. A Linguagem nossa de cada dia. 3ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.