Os vestígios da oralidade e da magia em "O filho da burra"
OS VESTÍGIOS DA ORALIDADE E DA MAGIA EM “O FILHO DA BURRA”
Letícia Dourado *
Visto que os contos populares são heranças de uma tradição oral que se passou para a escrita com o passar do tempo, muitas vezes guardadas no anonimato e se perde quando não registradas, é a lingua viva do povo, passada de geração em geração, de “boca em boca”, como recursos pautados na memória, emoções e história de um povo.
A literatura oral, segundo Megale (2003, p.12)é encontrada “sob a forma de poemas, lendas, contos, provérbios, causos, canções, assim como nos costumes tradicionais como danças, jogos, crendices e superstições”. Os recursos imagéticos e de memória, como o folclore, e se estendendo para os contos e cordeis fazem parte da realidade das pessoas, como um escape da realidade que muitas vezes machuca, é cruel e muito dura para se cultivar os sonhos, imaginação e fantasia.
Constantemente se pergunta por qual motivo há tanto distanciamento entre a linguagem oral da linguagem escrita? Por que os alunos não sentem prazer nas aulas de língua portuguesa, achando grandes dificuldades com sua lingua materna?
Busco com este ensaio uma análise estrutural e temática do conto “O filho da burra”, detectado no nordeste brasileiro, em específico no rio Grande do Norte, considerado como tradicional repleto de regionalismo, colhido pelo folclorista Câmara Cascudo, com enfoque maior à oralidade e magia no interior do conto, o que o torna riquíssimo em significado e cultura regionalística.
O enredo gira em torno de um homem que foi criado por uma burra, por isso deu-se o seu nome. Com o tempo, através da sua força, consegue sobreviver e conhece dois companheiros, onde passam a caçar juntos. Em certa situação, um animal devorava todo o alimento que eles conseguiam amedrontando-os. Filho da burra o segue e chega a outro lugar que ficava dentro de um buraco onde tinha três irmãs enfeitiçadas por seres sobrenaturais. Consegue vencê-los, e mesmo sofrendo traição pelos seus companheiros leva as moças novamente para seu reino de origem e casa-se com a mais nova.
Análise estrutural e temática
Segundo o modelo estrutural de Propp os contos maravilhosos possuem grandezas constantes e grandezas variáveis. O que mantem constante são as ações dos personagens, como os elementos canônicos de um conto: a partida do heroi: quando o protagonista, mesmo orfão “parte para a vida”; a tarefa dificil: Filho da Burra quando sai do seu habitat passa por algumas provações, como o abandono dos amigos, deixando-o dentro de um buraco; ajuda de elementos mágicos: o heroi, no interior da narrativa conta com a ajuda de uma bengala que o auxilia nos momentos de defesa; o reconhecimento: o rei acredita em sua palavra e nas provas em que alega; final feliz: se casa com a filha mais nova do rei. Neste final há a punição para os maus e o prêmio para os bons.
Baseado nessas funções “Filho da Burra” segue a seguinte estrutura: Há um afastamento inicial, pois o protagonista fica orfão e torna-se necessário ser criado pela burra. Impõe-se ao heroi uma proibição, fazendo-se necessário abandonar o seu emprego devido aos seus altos custos para mantê-lo. O protagonista se deixa enganar, ajudando seus “companheiros”, que mais tarde o trai. Sofre o dano, ultrapassando uma prova ao ser abandonado dentro do buraco. Mas em meio a essa situação adversa ele reage e consegue sair do buraco com a “ajuda” do diabo, que por meio de troca o auxilia. É transportado para outro lugar, o reino, onde os traidores são desmascarados e vencidos, resultando na reparação do dano em que Filho da burra sofreu, adquirindo nova imagem na trama. Isso com a presença constante do objeto mágico, a bengala de ferro que mandou fazer. E finalmente o herói se casa com a princesa, como recompensa.
A magia é um traço bem marcante no objeto analisado, como o garoto criado por um animal, o excesso de fome e força do protagonista, animais que conversam, a existencia de uma pequena cidade dentro de um buraco e a transformação do diabo em árvore e cavalo. Esses aspectos comprovam o encantamento que gira em torno desse conto.
As marcas da oralidade são bastante exploradas, como as seguintes palavras e expressões: “Uma coisa por demais”; a referência dos nomes dos personagens como Filho da Burra, Rola-Pau, Rola-Pedra; “cocuruta da casinha”; “esbandalhado”; “medo doido”, “bichão”; “raiva danada”; “deu uma carreira de levantar poeira” e outras. Com essas expressões se percebe a herança oral que se valorizou através do texto analisado.
A narrativa se dá em terceira pessoa, com distanciamento dos fatos, em um tempo passado, mantendo certa sequencia dos fatos narrados. Há varios ambientes que perpassam a história: inicialmente é algo mais aconchegante, na medida do possível, visto que foi criado pela burra. Depois muda-se para uma mata ou caatinga, lugar destinado a sobrevivencia devido a caça. Em seguida para o buraco, onde ficou sozinho por um tempo; e por fim para o reino, onde há o desfecho da história.
Interessante ressaltar que mesmo com a presença do diabo (mal), este na narrativa passa a ajudar, por meio de trocas, o protagonista na historia, assumindo diversas formas, como cavalo e árvore. Há também a ambiguiades entre os nomes dos personagens, como o do protagonista, filho da burra, do animal e não de algum indivíduo que não tem inteligência; rola-pau, como exercícios de tirar troncos e não fazendo referência a orgãos sexuais. A serpente, não apenas como um simples animal, mas como um paralelo com a sagacidade. Esses sentidos duplos permitem vários significados quanto ao entendimento do texto.
As temáticas abordadas neste conto variam muito: a importância de amizades verdadeiras, as injustiças que grande parte da população sofre o confronto entre bem e mal, a dignidade do trabalho, determinação e a inteligência para superar as adversidades, dentre outras.
Conclusão
Mesmo antes da prática da leitura a arte de contar histórias sempre existiu na sociedade. Foi a partir daí que surgiram os primeiros leitores, os que mergulhavam nas histórias relatadas.
Como o foco principal é o resgate da tradição oral, é obvio que se enfatizam bastante os elementos da fala, não sintaticamente medidos e pensados, mas realmente como são construidas pelo falante original, com repetições de palavras, expressões típicas da fala, como gírias e dizeres populares. E além dos aspectos linguisticos há toda uma cultura por tras desses contos e (re)contos, como as lendas, fabulas, mitos com a presença da fantasia, com todos os seus elementos constituintes, transforma e restrutura, mas ao mesmo tempo conservando viva essa cultura e enfatizando sua identidade, que é própria e característica de uma região específica.
Os contos populares, além das informações e enriquecimento cultural em que está embutido, deve ser abordado, explorado e valorizado, não só nas rodas de bate papo, em discussões, mas sobretudo na sala de aula, em que dá abertura para serem trabalhados temas presentes na vida cotidiana do aluno, com uma aproximação real com o contexto do mesmo e consequentemente mais prazer pela leitura.
BIBLIOGRAFIA
ALCOFORADO, Doralice F. Xavier. A escritura e a voz. Bahia: Fundação das artes, 1990
CASCUDO, Luís câmara. Contos tradicionais do Brasil. Belo Horizonte. São Paulo: Editora Itatiaia, 1986, p. 77-80
COSTA, Flavio Moreira da (Org.). Os grandes contos populares do mundo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.
MEGALE, Nilza Botelho. Folclore Brasileiro. 4 ed. Petrópolis: Vozes, 1977
PROPP, Vladimir I. Morfologia do conto maravilhoso. Rio de Janeiro: Forense-universitária, 1984.
SIMONSEN, Michele. O conto popular. São Paulo: Martins Fontes, 1987.