A Arte da Picaretagem

Algo extremamente frustrante é quando não se consegue fazer, quando necessário, justamente aquilo que se faz naturalmente apenas para passar o tempo.

Veja meu dilema: desde que resolvi adentrar numa vida de festas sem sentido e problemáticas passionalmente disfarçadas de política ao qual alguns teimam chamar de “curso universitário” ou “nível superior” – o qual talvez leve esse nome pela superior imbecilidade daqueles que dentro dele se auto-proclamam intelectuais – tudo que tenho feito, entre noites mal dormidas e manhãs de ressaca, é escrever ensaios; travestidos de nomes como “fichamento”, “resenha”, “estudo” ou, como gosto de nomear numa denominação geral que agrega toda e qualquer exigência dos mais variados professores, “blábláblá de 5 a 10 páginas sobre algum texto empurrado com a barriga em sala de aula”. Independente do nome dado, tudo o que fiz foi escrever ensaios: seja sobre Shakespeare, Schiller, Modernismo brasileiro ou “porque um jogo de videogame pode ser considerado arte”. Não porque “travo uma luta contra o academicismo e sua forma arcaica e manualesca de escrita” ou porque “o ensaio é a mais alta forma de arte da crítica”. Apesar de tentar me enganar dizendo que esses são os principais motivos, que sou um aluno sério e engajado na defesa da crítica como forma de arte, sempre que me vejo no espelho há uma figura demoníaca que me olha fundo nos olhos e diz “deixa de besteira! Você é apenas mais um aluno preguiçoso.” E tenho que rir. Ele está certo. No fundo, acabei me “especializando” em escrever ensaios apenas por ser mais fácil, pelo menos para mim. Se existe algo que eu nunca tive, esse algo é disciplina. Mas sempre tive criatividade e uma certa facilidade para a palavra escrita. Com isso, o ensaio se tornou algo natural: não necessita que eu faça extensas pesquisas, na tentativa de pincelar trechos de diversos livros para escrever um amontoado de citações que aqueles com pouco talento para as letras chamam de “texto” e ao qual eu gosto de chamar de “cura para a insônia”. Ao invés disso, posso usar minha habilidade com as palavras, confiar em uma ou outra frase iluminada e, em questão de poucas horas, uma leitura rápida sobre o tema e alguns minutos de ponderação debaixo do chuveiro, criar um texto minimamente decente, digno apenas o suficiente para parecer prolixo sem mostrar que o domínio sobre o assunto tratado é apenas uma farsa. Pode não ser uma maneira muito honesta de se trabalhar algo, na teoria apenas, tão sério quanto uma graduação, mas sejamos francos: tanto nas artes quanto na política, quem entra para ser honesto está apenas disfarçando sua própria vaidade de inocência e hipocrisia.

E é por isso que fico tão frustrado quando, em face da obrigação de escrever um ensaio, não consigo pensar em nada para escrever! Sentado em frente ao computador, a tela branca do desespero faz com que a madrugada se arraste, minutos perdidos de mais uma noite mal-dormida como tantas outras nessas duas semanas do capeta intituladas “fim do semestre” ou “aquele-período-do-ano-em-que-alunos-preguiçosos-se-ferram-ao-fazer-tudo-de-última-hora”. Uma profissionalização na procrastinação que chega a se tornar uma verdadeira arte em si. Acredite, não é fácil ser ultimahorista, um caminho que troca a “paciência para um trabalho minucioso” pelo “jogo-de-cintura e confiança-no-próprio-taco”. Quando se deixa as coisas para a última hora, não se pode cometer erros; e se por acaso um erro for cometido, deve-se de algum jeito transformá-lo em algo aproveitável. Um ultimahorista deve seguir seus instintos e sempre confiar em si mesmo; falhar em qualquer desses quesitos pode significar ter que passar mais um ano dormindo nas aulas e escutando a mesma ladainha. De fato, todo aluno modelo deveria tentar ser um ultimahorista em pelo menos uma matéria durante o semestre: o fato de ter que se esforçar para fazer um bom trabalho num prazo absurdamente curto pode ser um bom aprendizado para se lidar com a pressão comum do mercado de trabalho, onde tudo tem prazo para ontem. Enquanto um ultimahorista, mesmo que dos mais vagabundos, não se sentiria incomodado sobre esse prisma de prazos em cima de prazos e pressão em cima de pressão, não seria absurdo imaginar o brilhante aluno exemplar e primeiro da turma chorando pela mãe e dizendo que é impossível trabalhar desse jeito, enquanto seu chefe discursa sobre incompetência corporativa e se mostra profundamente insatisfeito com o desempenho de um profissional com tão notável Lattes.

Um escritor uma vez disse que a “santíssima trindade” de onde ele tirava suas idéias eram o “tédio”, o “desespero” e o “prazo de entrega”. Não há como não concordar. São três fatores chaves para qualquer pessoa que se preste a escrever qualquer coisa menos ridícula que uma carta de amor – apesar que, considerando o modo que alguns supostos “escritores” escrevem, uma carta de amor deles revelada acabaria por gerar novos patamares na definição do ridículo. Considerando o fato de minha entediante existência se tornar cada vez mais desesperada frente à aproximação do prazo de entrega desse texto, seria esse o cenário perfeito para a escrita de uma verdadeira obra-prima, algo para se emoldurar, pendurar na parede da sala e mostrar para os netos com orgulho. Falta apenas o único e pequeno detalhe de se conseguir escrever qualquer coisa.

Tento me lembrar de algo tratado durante a aula, na tentativa de achar algum guia para meu projeto, mas a única coisa que me recordo é de alguém fazendo alguma pergunta – não diria idiota, para não parecer um velho rabugento, mas de uma falta de know-how que não cabe a um estudante das letras – reclamando sobre não saber montar um texto, com perguntas sobre posição dos parágrafos, colocação de preposições e blábláblá, e de meu reflexo automático de levar a mão ao rosto num gesto de vergonha alheia. Me intriga como grande parte dos “amantes da literatura” ainda se entrega ao método dos manuais, aos “100 passos que você deve cumprir para escrever bem”, olhando para um texto como se olha um balde de Lego. Lamento desapontá-lo, mas, se é realmente necessário que se recorra a um manual desse tipo para escrever um texto, isso só quer dizer que nunca se será um bom escritor.

É como no futebol. Apesar de comumente lhe serem atribuídos sentidos antagonistas, literatura e futebol são quase que reflexos um do outro. Ambos criam apenas dois tipos de sentimentos nas pessoas: ou se ama e não consegue viver sem, ou se ignora completamente. Assim como no futebol, não existe “gostar um pouco” de literatura; quem diz isso o faz apenas por estar em um ambiente em que assumir ser um completo ignorante no assunto seria motivo de vergonha. Outro ponto comum entre ambos são os “seguidores da moda”, normalmente exemplificados por garotas que se pintam de verde-amarelo, dizem que seu time de coração é o “Brasil” e lotam estádios apenas para gritar o nome do “craque-galã-pop-star” do momento, para completo desespero daqueles que compram o ingresso somente para ver um jogo; ou adolescentes que num momento estão cavalgando vassouras e mexendo varinhas, num outro suspirando por pseudo-vampiros, que se dizem sempre “fãs número 1” de qualquer que seja o livro que tenha recebido investimento em marketing suficiente para ultrapassar as barreiras da falta de cultura e se tornar um fenômeno pop. Ou ainda o fato de, embora ambos serem atividades profundamente interligadas ao desenvolvimento das sociedades, ainda receberem denominações simplórias como “coisa de quem não tem o que fazer” ou “onze idiotas correndo atrás de uma bola”.

Escrever também é como jogar futebol: talento e prática são coisas essenciais. Não é assistindo às jogadas de grandes craques que se irá aprender a jogar, assim como não é lendo grandes clássicos que se aprende a escrever. É necessário treinar; mas somente isso também não é sinônimo de sucesso. Também é preciso ter um dom, um talento latente que se aperfeiçoa com o treino. Um treino nada mais é do que um conjunto de regras: faça isso, não faça aquilo, siga essa ordem, obedeça esses passos e se tornará um profissional perfeitamente capaz, como tantos outros. Mas o grande escritor, o grande craque, é justamente aquele capaz de ignorar essas regras; de ter autonomia, habilidade e coragem de fazer aquilo que lhes dá vontade, e ainda assim obter um resultado melhor do que aqueles que as seguem.Muitas vezes um único craque é responsável pelo sucesso de todo um time; assim como jogadores do calibre de Durval, Pará, Diogo, Edu Dracena, todos perfeitamente capazes como tantos outros, nunca seriam lembrados num time de história tão rica quanto o Santos não fosse um Neymar para conduzi-los ao título da Libertadores da América em 2011, não fosse por Olavo Bilac toda poesia parnasiana brasileira seria, justa e devidamente, jogada na privada da história e levada pela descarga modernista. Lógico que, se pudesse escolher, preferiria muito mais um talento com a bola do que com a caneta; é muito mais fácil encontrar a felicidade num iate cercado de modelos do que numa sala escura cercado de livros, mas cada um tem que se virar com o que tem. Muitas pessoas querem ser escritores, assim como muitas querem ser jogadores de futebol, mirando sempre o glamour das grandes estrelas, sem prestarem atenção nos milhões de profissionais sem sucesso que tem seu sonho minado a cada dia. Assim como o futebol destrói o corpo dos atletas, escrever acaba por corroer as mentes e a alma do escritor. Se as pessoas soubessem o quanto é difícil e dolorido escrever, certamente muitas delas acabariam optando por uma vida nas minas de carvão. É como já disse Hemingway: “escrever é fácil. É só sentar em frente à máquina e sangrar.” E nunca é fácil suportar a visão de nosso próprio sangue escorrendo.

A vida é curta, o prazo ainda menor. E nada me vem à cabeça. Não há mais tempo nem paciência, nada mais sairá agora. Então, como decisões adiadas por preguiça exigem medidas extremas, farei do não-ensaio meu ensaio. Seria isso algo acertado ou mais uma de tantas escolhas mal-feitas? Não sei, mas tenho que confiar em meu instinto (e no que é possível de ser feito no tempo que me resta).

Como a cereja no bolo de fubá, fecharei com uma frase que minha bisavó sempre me dizia quando eu era criança:

Ela era muda.