DIALOGISMO E CASTRAÇÃO
Não se pode emancipar a Educação de uma de suas funções: A castração. Este termo, sobre tudo freudiano, é também empregado por criadores de animais. Eles castram seus cães e gatos para que estes se tornem mais dóceis, portanto, mais fácil de manejo. Quando um pai usa uma expressão facial de reprovação para seu filho, este logo entende por esta linguagem que é um “não”. Neste caso, a criança foi castrada de seu prazer imediato pelo comando facial de seu pai, ou, pela percepção da linguagem simbólica facial do operador do comando. Neste momento, a questão não é atribuir à castração valor moral. O fato é: “Educar é castrar, ou se o termo freudiano choca, podemos dizer que Educar é impor uma norma de conduta”. Isso é bem comum no processo informal de educação. A linguagem, aqui, tem papel fundamental. Contudo, embora a “norma” também venha pelo sistema educacional, a Educação em si, é muito mais do que normas de conduta moral.
Neste presente ensaio, recorri ao termo freudiano “castração” porque acredito que o homem enquanto animal humanizado é dotado de instintos que necessitam ser “domados” por um processo que Freud chamou de civilizatório. Educar, em um primeiro momento, principalmente, nos primeiros anos de vida é um processo informal e formal de castração de instintos residentes na Ide. O animal humano impelido por duas grandes potências que ainda estão, mesmo, de forma latente e submersa presentes em sua psique manifesta de diversas formas, sobre tudo, nas expressões culturais, e ou, nas manifestações artísticas, como o cinema, a literatura, etc., que os instintos são reais. Essas potências são: A sexualidade (A busca do prazer), e a violência ou agressividade. Elas nos acompanham desde os primeiros anos de vida. Precisamente, desde a fase oral. Nessa fase, o prazer está na sucção do leite; na relação da mucosa bucal da criança e o seio da mãe; e a violência encontra-se, já, mais adiante, nos dentes que ferem o dito mamilo. Toda essa abstração psicanalítica nos remete aos mitos.
Os arquétipos influenciam o comportamento humano. A estrutura interior do arquétipo é mitológica. Assim, dizemos que o mito influencia o comportamento das pessoas, Nas primeiras horas da humanidade, os homens contaram histórias que falavam do mundo – o mito. Um arquétipo pode agregar mais de um mito em seu interior. Assim, como não existe explicação final para o mito, também, não existe para os arquétipos. No entanto, não se pode negar que os personagens da mitologia, que falam aos homens e dos homens, são manifestações dos arquétipos. A mitologia teve caráter educativo. Ela veio para explicar, e inspirar condutas. Por gerações a mitologia foi a única filosofia e ciência do homem. A mitologia tentava castrar o homem de seu ser escuro e trevoso que morava nas cavernas do Mediterrâneo. Ela era a forma de ensinar o animal humano sobre a necessidade de uma humanidade.
Não se sabe como, mas, o mito e os arquétipos encheram a terra. Eles estão em todas as culturas e constituem, não apenas, as primeiras explicações do real, mas, os modelos nos quais a humanidade se inspira. O estudo das neuroses ou das psicoses exige a compreensão sobre os arquétipos e sobre os mitos. Parece que os primeiros signos e símbolos nos remetem a essa linguagem. A estrutura do mito se assemelha a do sonho. O mito enquanto realidade simbólica existe “para”. Ele “está para”. A relação do mito com o homem é uma relação dialógica. O homem dialoga com o mito. E desse diálogo o homem constrói sua realidade. Assim, existe, evidentemente, nessa relação homem/mito a relação política. O mito por esta causa também serve de instrumento de regulação das relações entre os homens, e elas são relações de poder, ou, políticas. Os que falam pelos mitos, os senhores e manipuladores de seus possíveis enunciados e discursos, controlam o mundo. Portanto, vemos que desde os dias antigos, dos gregos, dos romanos, dos Iorubas africanos, até os dias atuais, que o mito (instrumento de castração e emancipação do homo sapiens) está em relação dialógica conosco. E se os sedimentos embrionários do psiquismo humano possuem mitos que estruturam arquétipos, que, possivelmente, explicam a personalidade, então, a castração e o dialogo são partes integrais e inseparáveis da humanidade. A educação dialógica cria, além, da castração civilizatória como está implícito no pensamento de Freud em O mal da civilização, uma malha gigantesca de possibilidades discursivas – os diversos sentidos que o humano pode escolher.
Freire (1987), em A pedagogia do Oprimido, viu que a educação está a serviço do dominador, e a serviço da libertação do dominado. Isto é, a educação que oprime (castra), pode de outra forma, a forma dialógica, trabalhar para a libertação do oprimido. Pensamos que a castração ocorre somente em um pólo – o dominado. Mas, a ilusão se desfaz quando percebemos que o dominador é tão vítima (castrado) de seus sentidos quanto o dominado. A proposta de Freire é o diálogo para a superação dessa condição. Freire entende que nas relações humanas haverá de alguma forma, ou, de todas as formas, seres humanos lutando pelo poder. O poder de sujeitar o outro ao jugo de seus interesses (castrá-los). Isso é marcantemente humano, embora primitivo e selvagem. Freire não vê a educação de forma ingênua, acreditando que ela é, em si, um processo transformador. São os homens que pensam a educação; sem eles, ela não existe. Como todas as produções do homem, a educação é um discurso. São sentidos que damos ao um termo criado por nós, são direções que damos a estes sentidos. São as políticas implícitas no jogo de interesses entre as classes que constituem o tecido social. Entretanto, embora, sendo sentido, como os demais sentidos presentes em nossa realidade humanizada, a educação é também um fenômeno de transformação social. O homem pode se reconstruir por meio desse fenômeno. O homem, como diz Freire (1987), não é como os outros animais. Ele não continua apenas ligado ao mundo natural. A humanidade construiu uma realidade simbólica. Temos uma história, modificamos a matéria pela força do trabalho, ou seja, pela a ação conjugada ao pensamento, portanto, ao nosso componente simbólico capaz de dialogar com o mundo. A pedagogia de Freire é dialogista, pois, entende ser o dialogo, o início e o fim do processo. Início por que inevitavelmente dialogamos com as coisas; entre nós e elas existe a palavra. Estamos em permanente relação dialógica com o mundo. São as idéias (semas) que recriam constantemente a face da terra. No fim por que, uma vez iluminado pela compreensão de mundo percebemos, que esse mundo apresentado em nossas leituras, continua tão misterioso como antes – o mundo é eternamente um objeto de questões, portanto, de releituras, de novas leituras, e novas aprendizagens. A necessidade, ou realidade antropológica do dialogo, persiste até que o ser dialógico feneça.
Freire (1989), ao pensar sobre a leitura e a escrita, em A Importância do Ato de ler retornou aos dias de seus primeiros sentidos. Freire recordou dos dias da infância. Ele chamou aquelas impressões de seu pequeno mundo (o seu quintal) de leitura do mundo. Esta é, sem dúvida, uma psicologia analítica do inconsciente. O sabiá, o sanhaçu, o bem – te - vi são imagens e sons que deram a Freire as primeiras leituras de mundo. E essa leitura é anterior a da palavra:
“A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquela. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto”.
(Freire, 1989, p.9)
A leitura da palavra só tem sentido no social, portanto, é preciso uma leitura de mundo (realidade presente de minha sociedade) para entender o sentido da palavra. Pois, para Freire, a realidade é constituída de sentidos criados pelo homem. Assim, realidade e linguagem não se separam, não tem como dicotomizá-las. A leitura só tem sentido se estiver “para” um contexto, ou seja, tenha relações com um sistema maior de sentidos. O estar “para” no lugar de “em”, se deve ao caráter dialógico da linguagem. Tanto no texto escrito como no oral a palavra está amarrada em um contexto. A leitura de mundo está antes e depois da leitura da palavra. No estar depois, entende-se que a pessoa continua lendo o mundo pela palavra. A palavra se torna um meio de leitura do mundo.
Para Freire (1989), só é possível ler o mundo pela palavra se esta for a palavramundo - a palavra de sua professora de infância. Isto soa um tanto romântico, no entanto, segundo ele, a palavra dela o conectava ao seu mundo existencial, o contexto onde o texto de sua vida era escrito. Eram palavras com nomes de pássaros, ou nomes de frutos, ou objetos do dia a dia. Isso me faz lembrar as estórias de minha mãe, as piadas de meu pai; os mais variados estímulos semióticos do meu meio bio - social. Não resta dúvida de que para Freire o sujeito se relaciona com a matéria como um bichinho sobre a terra e é por esta relação que ele se constitui sujeito no mundo – um sujeito histórico.
“Primeiro, a “leitura” do mundo, do pequeno mundo em que me movia; depois a leitura da palavra que nem sempre, ao longo de minha escolarização, foi a leitura da palavramundo”. (Freire, 1989, p.9)
O sujeito histórico se desencadeia através de suas relações neuro – sensórias com o meio. Não existe percepção e posterior codificação, como diz Freire, sem a experiência neuro – sensorial.
“Nele engatinhei, balbuciei, me pus de pé, andei, falei. Na verdade, aquele mundo especial se dava a mim como mundo de minha atividade perceptiva, por isso mesmo, como o mundo de minhas primeiras leituras”. (Freire, 1989, p.9)
O organismo tende ao diálogo. O dialogo com o meio, com, ou sem palavras. A natureza criou uma maneira de dialogar com o organismo inteligente, portanto, a linguagem do dialogo é natural assim como a produção de cultura é natural, pois, o homem é natureza – natural. Insisto nessa redundância para lembrar que a certeza de nossa humanidade esconde a realidade de nossa natureza animal – agora, animal dialógico. O que se concluiu aqui é que o animal dialógico é educado por uma educação dialógica como bem diz Freire. Os textos citados se referem ao processo de leitura e escrita. Eles nos dizem da visão dialógica de Freire.
Dialogar e castrar são instantes que se complementam no grande processo chamado educação. O próprio ato de sair de casa e passar horas com pessoas que você não conhece, no inicio, é uma castração também. As implicações do processo, a disciplina que aparece como conseqüência do processo e dos compromissos que precisam ser honrados. A realidade simbólica criou a necessidade de castrar o animal de suas possibilidades de expressão fora dos padrões. A realidade simbólica impõe à necessidade de adequação as novas normas de existência no mundo. O nosso trabalho não é um “fazer”, na visão de Freire. Para ele o animal/homem rompeu com o fazer e criou o “quefazer”. Este pressupõe a participação do pensamento, desta maneira, a criação de novas técnicas de produção. O dialogo do fazer é instintual, não precisa de aprendizado. Mas o do quefazer precisa da educação, então de castração.
Conclusão:
O dialogismo não nega a necessidade de castração. O termo foi empregado dentro e fora do sentido freudiano. Existe a castração enquanto educação e repressão de instintos não aceitáveis na sociedade, e existe a castração imposta pelo modelo de vida, então, é a perda do prazer pelo sentido do dever. Contudo, o ensaio tentou mostrar que no dialogismo não polarizamos as coisas. Castrar é dialogo, assim como dialogo é castrar. No meio termo não há monólogo, pois, o olhar atento diz que tudo está em relação a. A educação deve castrar. A educação deve dialogar. A educação deve castrar no dialogo e dialogar no castrar. Num outro trabalho tentarei sem mais claro.
REFERÊNCIAS
As referências de Jung e Freud não foram citadas na bibliografia porque achei não ser o foco.
Freire, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
Freire, Paulo. A importância do ato de ler: Três ensaios que se completam. São Paulo, Cortez, 1989.