Breve e Vulgar Ensaio Sobre a Solidão
A solidão está para as trevas assim como o amor está para a luz. A solidão é noctívaga, embora à luz do dia também se manifeste ou perdure. Mas sua capacidade noctígena se sobrepõe ao brilho do astro rei. É capaz de nuvear a vida. A solidão é estéril, é improfícua e balda a existência. Ela, quando usurpa o coração e a mente, atormenta, aflige até aquele cuja tranqüilidade em si se distinga. – “Por que acordaste?” – acomete a consciência. – “Porque estou demasiado só” – retruca. – “Mas isso não é razão para acordares assim, no meio da noite.” – “Claro que é.” – “Claro e claro” – impacienta-se.
A solidão atormenta a alma a ponto de não deixar, noites a fio, que se durma. No meio da madrugada, acorda-se. O olhar corre ao redor e se constata: só. O quarto, antes pequeno para aqueles que se esbarravam, no zig-zag do ir-e-vir da lida, torna-se demasiado grande para abrigar uma alma solitária, desnuda da natural imprescindível luz, e um corpo cujo viço definha no fosso do desânimo. Não dorme. Não dormem a alma e o corpo. A noite se alonga. Cada som mínimo vira monstro. E o maior de todos: a falta do ser amado. A falta de calor humano, de energia, de respiração, de ronco, de pernas que se mexem e resvalam em outras pernas. Falta de cotoveladas, de cabelos puxados, de mãos que se apertam, de sopro de vento quente de bafo no pescoço. Falta de queixo que se encaixa na nuca. Falta de concha de abdome e pernas, e braços, e abraços, que abracem e aqueça o dorso. Falta de unhas que tocam e arranham a sola dos pés e fazem cócegas. Falta de cócegas que provocam sensações luxuriantes. Falta de amor.
No meio da noite, de repente, o medo. - “Medo da solidão?” – “Não”. - “Evidente que não”. Medo de amar de novo. Medo de sair à rua e conhecer pessoas, alguém que se interesse e desperte interesse. Medo de encontrar de novo um barco onde pudesse navegar nas madrugadas. Da solidão, não há razão para medo. É agradável, às vezes. É bom um quarto maior, espaço só para si. É confortável não ter de dizer onde está, com quem está, com quem vai, para onde vai, com quem foi, fazer o quê. Solidão. Liberdade. A sensação de liberdade é agradável durante o dia e até à noite, na maioria das vezes. – “Liberdade?” – “Não, não é liberdade”. – “É prisão”. Liberdade, quando há, permite o livre-arbítrio de ir e vir, de voltar, de se prender. – “É prisão; e prisão imposta no momento em que o ser amado se vai e desaparece no labirinto da eterna noite tenebrosa, ainda que nasça, diuturno e indiferente, o sol, astro símbolo da alegria”.
Solidão é estado resultante de abandono inexorável. Ato de abandono sem explicação, abrupto e insólito? Numa hora tudo está bem, na outra hora, uma ação, uma mensagem ou um jeito que suscita a noção de abandono. É estar só sem alvedrio. É o fim. Fim das conversas intermináveis. Fim das mensagens transmitidas via globos oculares. Fim da sensação de completude. Fim da afeição e da ternura que um ser sente por outro ser. Fim do amor. É solidão involuntária que aprisiona.
Solidão por desamor. Não basta ao ser humano amar. Amar sem ser amado é caridade. Não basta. Amar sem ser amado não põe termo à solidão. É preciso ser amado. Amar sem necessidade de ser amado é ato por demais puro, corajoso e grandioso, que certamente só aos celestiais cabe. É, sobretudo, excelso para o bicho homem. E o humano não dispõe de tal galhardia. Se tal ocorre ao Homem, decerto tornou-se Divino.