Oxímoro em Baudelaire-Sujeito/Cidade

O Momento de Baudelaire em Paris

Baudelaire legou-nos uma das mais ricas transformações literárias. Podemos afirmar, inclusive, que Charles Baudelaire transformou nosso olhar sobre a cidade, ao olhar para uma Paris em mudanças. Depois deste poeta, o olhar se curva para uma modernidade “fervilhante”.

O sujeito “como unidade” para Baudelaire é, ao mesmo tempo, o sujeito fragmentado na cidade, aquele que se biparte diante de elementos urbanos, ou seja diante da “capital das capitais”: Paris de sua época. Assim, a linha que separa o indivíduo do cidadão é muito tênue, daí denorminarmos: oxímaro(1) em Baudelaire.

No imaginário de Paris, duas palavras de sentido contrário se associam e formam o oxímaro, talvez a figura de estilo mais complexa de se criar.

Contudo, Baudelaire que viveu de 1821 a 1867, nasce em uma cidade aberta e de grandes transformações. A cidade delimitada por muralhas já vinha decaindo.

Santra Jatahy Pesaneto faz um estudo muito interessante a respeito do imaginário da cidade de Paris. Pois segundo ela, Paris é retratada como a mais privilegiada das cidades em textos que motivam o imaginário social.

Contudo, viver em metrópole, na época de Baudelaire, é viver em contrastes, em transformações, momento que a arquitetura do novo e do antigo se antepõe. Esta Paris revela, mais que qualquer outra cidade da época, uma atitude de mudanças, de antinomias da modernidade. A antítese urbana retrata o “Múltiplo contraditório”, fazendo frustar ou, e, satisfazer àqueles que as vivenciam.

1 – Oxímaro: Figura que consiste em reunir (fundir) palavras contraditórias.

A “metonímia da modernidade urbana”, que transformou Paris, é ligada ao processo do “Haussmannismo” que Balzac e Víctor Hugo antecedem a Baudelaire no ato de criar suas artes literárias. Mas que já trazem nos seus temas a “flor do contraste” antecipando um “jardim” em Baudelaire. A cidade Haussmanniana é a cidade de grandes mudanças, ou fosse pelo seu “gênio”, ou fosse pelo momento que por si só já era de grandes transformações. Haussmann, barão, prefeito, emblemático, em dezessete anos de gestão revela uma Paris metrópole do século XIX.

“Nossa posição é de que a gestão de Haussmann na prefeitura de Paris se deu no que se poderia chamar de conjuntura favorável para decisões de tal envergadura política e que, por sua vez veio ao problema urbano já posto.” (Pesaneto, p 90)

O certo é que Haussmann aderiu a linha plana, abriu becos, ligou monumentos, construiu perspectivas, incorporou novas intervenções e agiu sobre elas, suas atitudes abrangiram Paris como um todo, tomou medidas que tornaram possível o aumento da população, construiu arborizações artificiais, recriou cascatas, montanhas, pontes e lagos no terreno urbano. Tudo pedia “movimento”, dinamismo; o contrário era indesejável. E é neste momento que surge Charles Baudelaire:

“A Paris de Bauderaire é a metrópole em mudança, é já a ‘cidade aberta’ demandada pelos leitores do urbano do final do século XVIII e que, sob Haussmann, parecia ter entrado num processo contínuo de transformações. Baudelaire vivenciou o início deste processo e foi capaz de resgatar as sensações visuais do seu tempo, traduzindo-as em linguagem poética”. (Pesaneto, p 99)

Flâneur na Metrópole

No entanto, não se pode afirmar que Charles Baudelaire transformou a poética isoladamente. Pois como já foram citados aqui Vítor Hugo e Balzac revelaram muito da antítese desta nova metrópole que surgia:

“Balzac é o flâneur que se delicia com o andar sem rumo pelas ruas da fascinante Paris, não escapando o menor detalhe à sua observação” (Pesaneto, p 64)

Para Balzac Paris é:

“Desastre, mas também glória. É explendor e miséria, beleza e feiúra, e ter em mente as duas visões é enxergá-la para ‘além do bem e do mal’ “. (Pesaneto, p 64)

Em Vítor Hugo também está presente esta idéia de contraste:

“De certa forma, os contrastes de personagens, indo do belo ao feio (...) ao modo de Víctor Hugo, uma outra faceta da diversidade e dos antagonismos da grande cidade”.

Todavia é com Charles Baudelaire que este contraste e esta estética do feio se liberta do romantismo para nos legar a modernidade, ou seja a ruptura com as velhas formas poéticas de idealização. Pois o seu contraste percorre os labirintos da antítese, do paradoxo e chega ao oxímoro. É importante ressaltar aqui que Baudelaire rompia com a poética do romantismo e não com a cidade antiga de Paris, bem como, ao mesmo tempo, o poeta é vanguarda do sentimento humano do que pode derivar “o ser na multidão”. O romantismo revela uma idealização exacerbada dos objetos referenciados, sempre colocando-os em nível mais elevado, ou inatingível. A cidade antiga de Paris é motivo de saudade para Baudelaire, em termos de arquitetura e a forma que se organizavam, chega a inscrever em um poema que a Paris de sua época é infiel à outra que fora transformada. O sentimento vanguardista remete-se ao ser que opta pela multidão, que passeia pela e nas avenidas movimentadas tal como vemos hoje nas grandes metrópoles.

“O Poema baudelairiano é exatamente isto, este ‘belo objeto luminoso, cristalino, complicado, circular e simétrico’, o que mais ainda surpreende quando se percebe, a cada verso ou mesmo a cada palavra, essa desconcertante e amiúde inexplicável comunhão entre emoção e rigor formal, esse conflito dilemático entre ascensão e queda, entre carne e espírito, que lhe entranham toda a tessitura”. (Ivan Junqueira, p 48)

Vários Caminhos da cidade

O poeta percorre um caminho sinuoso e suntuoso para sair de si mesmo e entrar nos objetos. Assim, talvez, sua cidade é retratada como uma “idealidade vazia”, por jogar como numa hipérbole os objetos, mas ele vai além e os anima em sua plena nudez. Nunca poderia ser um parnasiano, como queriam alguns, pois sua palavra e sua forma vão além da arte pela arte. Baudelaire arranca dos nomes a sua significância numa atitude transcendental. E isso faz com que os simbolistas, sim, tenham banhado mais em seus contornos de mares transbordantes, por meio de sensações variadas que causam os sentidos humanos. No entanto, este sentido humano ele chama de “sagüin”, porque como um predestinado ele quer o encontro com o real que só o imaginário é capaz de fazer vir à tona. Um imaginário dandi incorporado à cidade, mas “ausente de frivolidade” como refere-se Ivan Junqueira.

“Uma névoa encardida enchia todo o espaço,

Eu ia, qual herói de nervos retesados,

A discutir com meu espírito ermo e lasso

Por vielas onde ecoavam carroções pesados (Baudelaire p 331 )

Nesta estrofe do poema “Os Sete Velhos” não se pode dizer que há um dandismo vazio de espiritualidade. O dandismo para este poeta é conflitante. Um herói não retesa os nervos injustificavelmente. Por isso, ele quer mobilizar àquilo que denomina “espírito ermo e lasso”. O que se nota aqui é uma lágrima na metáfora “névoa encardida”; lembrando a Paris antiga com suas vielas e carroções. Um sentimento piedoso do olhar para aquele que faz girar os “carroções pesados”, o trabalhador diante do olhar do flâneur. A frieza dos versos, caso ela seja lida aqui nesses versos”, é mais uma denúncia da frivolidade social do que a indiferença de um eu-lírico, ou seja: por trás da máscara, a poética sensível do autor é tocada.

“O verso baudelairiano – esse alexandrino impecável e infinito, cuja ondulante durée se prolanga para além dos limites físicos da palavra – envolve um mistério jamais até hoje de todo decifrado. Baudelaire surpreende a cada instante, e essa eterna mágica surpresa deve muito ao sortilégio resultante das tensões que se polarizam em seu verso.”(Ivan Junqueira in Baudelaire, p 69)

A “estética do feio” em Baudelaire é que fez com que muito de seu olhar para a cidade fosse visto como realista e frio. No entanto, para nós, a estética do feio neste poeta é o lugar mais desbravador das antigas concepções do fazer literário diante de duas cidades: a antiga e a nova. Pois, ao se inserir elementos existentes e considerados sujos, ou nojentos, ou de horror ele está desmascarando o indizível para torná-lo também poético-configurado para além do bem e do mal, ou seja para trazer à tona os elementos dialéticos de Paris como um todo. Assim é que uma única palavra de Charles Baudelaire tem um alcance muito mais alongado. Ao analisar sua obra, não se pode deter no elemento isolado ou no conjunto simplesmente. Mas, há que se considerar o mínimo detalhe em relação ao todo e ao contexto. A sutileza do poeta está em dizer o que Víctor Hugo e Balzac diziam e permaneciam antíteses, num transcendente simbolismo de toda e qualquer palavra, criando um movimento para rever Paris com olhos múltiplos:

“Longe dos túmulos famosos,

num cemitério já sepulto,

Meu coração tambor oculto,

Percute acordes dolorosos.” (Baudelaire, p 133)

Nesta estrofe de “O Azar”, notamos um desmitificar da fama e da morte, fazendo com que o coração lírico entoe “acordes dolorosos”. “Cemitério”, “túmulo” e “sepulto” tornam-se aqui acordes para uma canção de dor, mas uma canção. De dor porque a velha Paris não existia mais, como um lamento por se ver forçado a colocá-la em “sepulto”. Podemos ler aqui o lamento pela cidade morta, porque é uma Paris de “ruelas”, antes das intervenções haussmannianas. Estas palavras ganham outro ritmo nestes versos octassílabos. Além do lugar da morte há o lugar do nascimento de algo novo, além do real, há o simbólico. Poderíamos ainda aqui também fazermos a leitura da queda, queda da fama, queda da vida remetendo-nos a queda de Adão e Eva no paraíso. Mesmo se assim fosse nossa leitura, o pecado traria a redenção pelo processo da música oculta, ou da musicalidade exposta nos versos através das rimas e das repetições das vogais (aliterações), em português, quem não as entoaria então em francês, em sua originalidade primeva?!

Contudo o que nos importa aqui neste trabalho é fazermos uma pequena leitura no livro “As Flores do Mal” de Charles Baudelaire: do sujeito se entregando à cidade; da cidade se entregando ao sujeito. Também podemos afirmar: o que nos importa aqui é o flâneur, passeante de uma Paris, metrópole vagueando por “sintonia fina” entre a periferia e o centro, entre o belo e o feio, entre o operário e o empresário, entre o sujo e o glamoroso, entre a escuridão e a claridade. Com este critério analítico sequer sonhamos em sermos leitores de 166 poemas que compõem “As Flores do Mal”, ou que tenhamos a bravura de esgotar os textos poéticos citados. Com esta, já audácia em fazer uma leitura de um dos mais polêmicos e instigantes poetas diante de uma Paris intrigante, queremos simplesmente fazer vir à tona sua figura de estilo: o oxímaro, porém, na cidade.

Hugo Friedrich acredita que a Paris de Baudelaire é como uma “cidade dos sonhos”. Se assim o é, a cidade dos sonhos mostra o eu fragmentado no próprio eu, bem como na sociedade, perfazendo assim, o oxímoro: eu-cidade ou eu-sociedade. Ainda para Hugo, o poeta não retrata uma cidade real “propositadamente” ou ainda ele retrata“ o todo sem homens, sem lugar, sem tempo, sem som”. Baudelaire na análise de Hugo é uma vitória espiritual do homem sobre a natureza, simbolicamente carregando o mineral, o metal “dentro de abismos diamantinos, abóbodas de pedras preciosas; nem sol, nem estrelas, só o negro que resplandece de si próprio”.

No soneto “A Moldura” há o realce destes aspectos. Na metáfora da mulher “o sujeito lírico” do poema apodera-se de imagens de uma Paris aberta, exótica, prostituída; misturando, deste modo, no objeto poético à cidade nova.

A Moldura

Como à tela ajusta uma moldura

-Não importa do artista a sutileza-,

Isolando-o da imensa natureza,

Um não-sei-quê de mágica textura,

Assim jóias, metais e douradura

Ajustavam-se à sua irreal beleza;

Nada ofuscava-lhe a integral clareza

E tudo lhe era como cercadura.

Dir-se-ia muita vez que ela supunha

Tudo existir para adorá-la e expunha

Sua nudez com gozo e encantamento

As carícias do linho e do cetim

E, suave ou brusca, a cada movimento

Mostrava a graça ingênua do sagüim. (Baudelaire, 197)

Neste poema, o pintor flâneur sai com sua tela pelo tempo. Nas rimas ”ura” as quais se retratam nas últimas palavras dos versos em que aparecem, que são: “moldura” “textura”, “douradura” “cercadura” se contrapõem com as rimas “eza””: “sutileza”, “natureza”, “beleza”, “Clareza”. Até aqui percebemos a antítese entre as palavras. No entanto, conjugando-as em junção elas se mostram diferentes. Moldura é a sutileza da matéria vegetal. Textura é a natureza refeita ou artificial. Douradura é o dourado que dura e transforma objetos para extrair-lhes a beleza. Cercadura é o limite, é o lugar até aonde se pode chegar com clareza. Seguindo o caminho das rimas notamos: “supunha” é o contrário de “expunha”, supor é duvidar; expor é clarificar. E “encantamento” e “movimento” são contrários se entendermos que encantar é parar, observar e contemplar. Assim nos perguntamos: “Como nos encantar em movimento”? Desse modo, nesta pergunta revelamos o paradoxo. Por fim “cetim” e “sagüim” não se confundem de modo algum. Cetim é o artíficial, o elemento moderno; e, sagüim é o macaco, o elemento primitivo. Contudo, é aí que o sentimento erótico se perfaz: pois é o instinto envolto no cetim; é o sensual em toda sua natureza crua entranhado no mais leve e brilhante desejo de ir além do que se é, ou seja transcender-se nos artifícios modernos. E diante desta leitura, talvez, resida nesta rima cetim/sagüim a mais erótica e bela das aproximações rítmicas ou oxímoros, porque o cetim como metáfora da vitória sobre o instinto nos retorna a um ser menos só na multidão, um ser conjugado entre a natureza e o artificial, que a supera, ou ainda um ser muito além do instinto, um ser transcendental, que se supera, superando a solidão instintiva, ou aquilo que dá movimento a Paris em retorno.

No poema “O Sol” ocorre o elemento que transcende de modo ainda mais abrangente que no poema “A Moldura”. Pois numa correspondência de objetos do campo e da cidade, o ser que se revela em um “eu-lírico” implícito transpõe-se do natural ao artificial” e do “artificial ao natural”, já que o poema alude “este ser em movimento” em meio a cidade e ao campo, entre os palácios e hospitais. Aqui reside a lírica do belo e do que é normalmente denominado “feio”, formando um único sentido, se sintaticamente analisado, o oxímaro do sol na escuridão. O local escuro se reveste nas palavras: “subúrbios”, “impiedoso”, “punhais”, “verme”; que se contrapõe respectivamente com as expressões: “beijos sorrateiros”, “trigais”, “pai” e “rosa”; coroando o oxímoro, quando no último verso da segunda estrofe revela a junção: “No eterno coração que sempre florece!”.

O Sol

Ao longo dos subúrbios, onde nos pardieiros

Persianas acobertam beijos sorrateiros,

Quando impiedoso sol arroja seus punhais

Sobre a cidade e o campo, os tetos e os trigais,

Exercerei a sós minha estranha esgrima,

Buscando em cada canto os acasos da rima,

Tropeçando nas palavras como nas calçadas,

Topando imagens desde há muito já sonhadas.

Este pai generoso, avesso a tez morbosa,

No campo acorda tanto verme quanto rosa;

Ele dissolve a inquietação no azul do céu,

E cada cérebro ou colméia enche de mel.

É ele quem remoça os que já não se movem

E os torna doces e febris qual uma jovem,

Ordenando depois que amadureça messe

No eterno coração que sempre reflorece!

Quando às cidades ele vai, tal como um poeta,

Eis que redime até a coisa mais abjeta,

E adentra como rei, sem bulha ou serviçais,

Quer os palácios , quer os tristes hospitais. (Baudelaire, p 319)

O sujeito na Cidade

O transeunte comum, aquele que passa pela cidade sem notá-la em suas radicais transformações mostra-se cego. É àquele que não é; já que não enxerga o urbano, seus lugares, seus contrastes e se deixa ir pelo caminho de modo autômato:

“Suas pupilas, onde ardeu a luz divina,

Como se olhassem à distância, estão fincadas

No céu; e não vê jamais sobre as calçadas

Se um deles a sonhar sua cabeça inclina.

Cruzam assim eterno escuro que os invade,

Esse irmão do silêncio infinito. Ó cidade!

Enquanto em torno cantas, ris e uivas ao léu,” (Baudelaire, p 343)

A cidade do Sujeito

O que notamos na estrofe a seguir é o clássico Flâneur, aquele que observa, olha e a seu olho nada escapa. A cidade do sujeito é o contrário do sujeito na cidade. Neste sujeito, que minuciosamente olha a cidade por meio de suas metonímias, cabe um mundo inteiro, um sentimento todo, até um amor que começa e termina. Do soneto “A Uma Passante” retiramos a primeira e a quarta estrofes:

“A rua em torno era um frenético alarido.

Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,

Uma mulher passou, com sua mão suntuosa

Erguendo e sacudindo a barra do vestido.

(...)

Longe daqui! Tarde demais! Nunca talvez!

Pois de ti já me fui, de mim tu fugiste,

Tu que eu teria amado, ó tu bem o viste!” (Ivan Junqueira, p 345)

A cidade antiga que se reveste de alaridos está de luto, transformada pelas grandes mudanças haussmannianas.

Flâneur: passeante sonhador

O poema “Paisagem” é o retrato do sonho, da fantasia. No dizer do próprio Baudelaire: “A fantasia decompõe toda a criação: segundo leis que provêm do mais profundo interior da alma, recolhe e articula as partes (daí resultantes) e cria um mundo novo”:

“Quero, para compor os meus castos monólogos,

Deitar-me ao pé do céu, assim como os astrólogos,

E, junto aos campanários, escutar sonhando

Solenes cânticos que o vento vai levando.

As mãos sob meu queixo, só, na água furtada,

Verei a fábrica em azáfama engolfada;

Torres e chaminés, os mastros da cidade,

E o vasto céu que faz sonhar a eternidade” (Ivan Junqueira, p 317)

Neste mundo que o eu-poético alude, vemos os sinais dos tempos modernos e até mesmo pós-modernos que se revelam na “fábrica em azáfama”, na correria, na pressa; “Torres” as cidades de hoje com seus arranha céus; “chaminés” a fumaça poluidora das cidades industriais.

Não podemos aqui, pelo motivo do eu-lírico postar-se no céu, avançar-nos e sequer supor que Baudelaire era um profeta do cristianismo, contrariando seu modo de ser religioso (que mais parecia uma crença infinita em um Deus, já que cria muito no demônio, “mas isso não quer dizer que fosse cristão” expressão mencionada por Ivan Junqueira. Apenas para completar esse parêntese devemos inscrever aqui também que, Baudelaire cria no mal como natureza bruta, como se a humanidade precisasse conscientizar-se do mal, falar nele, para refutá-lo).

Por isso podemos, talvez, lermos na fantasia do flâneur baudelairiano: um dar asas a imaginação até que esta fizesse o ser desraigar-se de toda influência perniciosa terrena e pudesse voar por um céu límpido alheio a influência maligna da natureza pela natureza. Sobressaindo um pouco, voltamos à cidade. Nela, o seu olhar se dá do céu, porque lá está a cidade desmoronada e amada, na metáfora que reside no alto de seus pensamentos.

Sintonia Fina no Poetar

A Uma Mendiga Ruiva

Moça de ruivo cabelo,

Cuja roupa em desmazelo

Deixa ver tanto a pobreza

Quanto a beleza,

Para mim, poeta sem viço,

Teu jovem corpo enfermiço,

Cheio de sardas e agruras,

Tem só doçuras.

(...)

Muito servo ébrio de amor,

Muito Ronsard e senhor

Rondariam o postigo

De teu abrigo! (Baudelaire, p p 321, 323)

Nestas três estrofes observamos o que vem a ser “sintonia fina”. É quando o sujeito-lírico, observador, deixa-se levar pela periferia e o centro; ou seja quando constata o lugar da pobreza, da riqueza e suas diferenças. Denotando, simultaneamente, a diferença de classes (desmazelo/senhor) e o aspecto humano de poder, à parte essa diferença ser neutralizada pelo desejo (Rondariam o postigo/De teu abrigo).

A beleza do feio

No poema “As velhinhas”, a mistura de elementos tidos como feios são transformados pela beleza estética, dos versos, das palavras e do encanto do observador audaz e sensível:

“Tem os olhos agudos qual verruma fina,

Luzentes como as poças na noite tranqüila;

Seus olhos são divinos como os da menina

Que se assusta e sorri a tudo que cintila.

-Já não viste que o esquife onde dorme uma velha

é quase tão pequeno quanto o de um infante?

A Morte sábia nesses féretros espelha

O Símbolo de um gosto estranho e cativante.

E se mal entrevejo um fantasma franzino

Cortando o ébrio cenário de Paris ao meio,

Me ocorre muita vez que este ser pequenino

Retorna docemente ao berço de onde veio;” (Baudelaire, p 337)

O poeta como a pelejar pelo sentido da vida faz o caminho contrário, em vez de ir do nascimento à morte, vai da morte ao nascimento. A velhinha torna-se novamente menina para que de modo puro possa voltar ao berço, mas este berço de agora é o berço suave da morte. A estética tem o poder transformador de fazer vir à luz, o que vai além do comum, ou seja de dar vida, sentido e beleza pela essência, especialmente muito menos “ordinária” que a aparência. Aí perguntamos: Esta poética é a poética do feio ou do belo?

Nestes elementos revelados no poema: “As Velhinhas”, pode-se também notar o cruzamento da Paris morta pelas transformações radicais de Haussmann à Paris “menina” viva e a menina-berço morta, antiga Paris. “E se mal entrevejo um fantasma franzino/Cortando o ébrio cenário de paris ao meio/ Me ocorre muita vez que este ser pequenino/Retorna docemente ao berço de onde veio”. A ambigüidade dos versos coloca duas cidades em choque: a antiga e a nova.

O Operário e o Patrão

“O Esqueleto Lavrador” nos passa, aqui, através de duas estrofes, as posições antagônicas do operário e do patrão. Observe-se:

I

“Vêem-se, o que faz mais completos

Esses fantásticos horrores,

A escavar como lavradores,

Escalpelados e esqueletos.

(...)

II

(...)

Dizei, que messe estranha e alheia,

Galés expulsos de um carneiro,

Ceifais, e de que fazendeiro

Deveis deixar a granja cheia? (Ivan Junqueira, p 349)

Aqui além de retratar as posições do trabalhador e do capitalista, podemos também observar a sintonia fina, ou ainda a capacidade do poeta estar em todos os lugares da cidade moderna. A cidade que cria empregos e explora. Que a alguns dá muito e a outros pouco. E injustamente este que tem o “pouco” e muito faz é o trabalhador. Característica de uma cidade que vem se industrializando e fazendo vir nascer o liberalismo. Aqui notamos o quanto Baudelaire trazia em seu gênio a posição vanguardista. Pois, revela-se muito nesta questão o “modus vivendis” dos tempos atuais: a exploração do trabalhador, aquele que constrói e não tem direitos sobre o que fabrica.

O Sujo e o Glamour da Cidade

“E estremecem a voar o postigo e a janela.

Através dos clarões que o vendaval flagela

O Meretrício brilha ao longo das calçadas;” (Baudelaire, p 351)

Os três versos de “O Crepúsculo Vespertino” nos revela o sujo nas palavras “postigo”, “flagela”, “meretrício”; e glamour nas palavras “voar”, “clarões” e “brilha”. Se o postigo pode voar, o poeta não nos revela, na construção da metáfora. Se o flagelo se deixa clarear pelo vendaval, isto se dá como relâmpagos, rapidamente, a claridade não permanece. Se o meretrício brilha, brilha pelo dinheiro, não pela luz transcendente.

Escuridão e Claridade

“E se me assustei por invejar essa agonia

De quem se lança numa goela escancarada,

E que, já farto de seu sangue, trocaria

A morte pela dor e o inferno pelo nada!” (Baudelaire, p 353)

Esta é a última estrofe do poema de nome “O Jogo”. Nele tiramos as palavras escuras: “invejar”, “agonia”, “escancarada”, “farto”, “sangue”, “morte”, “dor”, “inferno”, “nada”. Quase somente resta a expressão “E se me assustei” revelando a consciência do eu-lírico e através da luz que incide sobre toda a escuridão sai vitoriosa a expressão do susto (epifania) pois, é por ela que ocorre o aspecto transcendental ou, é por ela que as diferenças formam o oxímaro: a luz resgata toda escuridão em brilho consciencioso, porque Baudelaire é o poeta saudosista da cidade antiga, mas vai além deste sentimento, porque resgata o real pelo sonho.

Ao passarmos pelos caminhos suntuosos e soturnos dos poemas de Charles Baudelaire abordamos: o momento de Baudelaire em Paris; flâneur na literatura; várias faces de um só poetar; o sujeito se entregando à cidade; a cidade se entregando ao sujeito; flâneur: passeante de Paris; sintonia fina - o belo e o feio; o operário e o patrão; o sujo e glamoroso e a escuridão e a claridade.

Em todos estes momentos, observamos alguns caminhos percorridos pelo poeta Baudelaire, como: Paris influencia muito o poeta e lhe dá um campo temático de várias facetas; o flâneur tem um olhar agudo sobre a cidade e lhe irradia um brilho antigo, bem como colhe imaginários; o poeta Charles Baudelaire percorre um mundo multifacetado para multiplicá-lo em vários mundos; o sujeito muitas vezes se anula para estar em sociedade como um ser autômato; a cidade é mais importante para o poeta de Paris e do mundo que suas casas, a graça residia no ir e vir; a sintonia fina é um sintoma da cidade moderna, implicando a divisão de classes, ou seja as desigualdades; o belo e o feio estão como questão do olhar, o belo pode ser uma ruga, o feio pode ser uma exploração; o sujo e glamoroso estão nas atitudes líricas do olhar para a cidade antiga; a cidade nova é o olhar moderno e está em qualquer lugar ou em todos os lugares.

A Paris transformada por Haussmann lembra Brasília de Niemayer. As duas cidades se parecem com a modernidade “à toda prova”. Ruas largas, abertas, prédios de fachadas suntuosas. A Paris anterior a Haussmann cheia de diversidade e as pessoas nas ruas fervilhantes lembram São Paulo, com sua multidão avassaladora, sobretudo nas galerias dos metrôs, quando, ao mesmo tempo, que se vê tanta gente, elas desaparecem não se sabe para onde, restando às figuras decorativas em suas paredes.

Sobretudo concluímos que a escuridão revela mais de claridade do que se supõe a primeira leitura de Baudelaire, e que quando sobre ele fala-se nesta antítese, na verdade fala-se muito além dela, fala do paradoxo sempre a se perguntar: Como é possível lados antagônicos andarem juntos, como? Contudo, ainda mais além, está o seu oxímaro que não mais pergunta, mas diz claramente: as palavras nos vêm para arrancarmos dela tudo que pudermos, inclusive para fundirmos uma palavra na outra (ou uma cidade na outra) e dar a elas um novo sentido porque a natureza se quer muito além dela mesma. Assim a natureza da palavra é descobrir seus mil segredos e clarificá-la em oxímaros, unindo as diferenças e construindo mais direitos de igualdades em todos os níveis, para uma cidade cada vez melhor onde há de tudo em todos os lugares.

Charles Baudelaire foi um vanguardista tanto na lírica quanto no posicionamento sobre a cidade. O poeta quer a preservação do antigo cultural, o banho de rua, ou seja o aglomerado das multidões. Ele desafia o domesticar, o individualismo da cidade em que se transformava a cidade industrial. Porque para ele o ser só é ser diante dos outros, ou melhor, dizendo, na multidão. É no fundir-se eu-cidade ou cidade-eu, que se prefigura o oxímaro em Baudelaire. Daí sobressai-se um eu que ao estar diante do outro é um turbilhão de todos os sentires: o universal.

BIBLIOGRAFIA:

BAUDELAIRE, Charles – “As Flores do Mal” – Tradução e notas de Ivan Junqueira – Rio de Janeiro – Nova Fronteira, 1985.

CÂNDIDO, Antônio – “A Educação pela Noite e Outros Ensaios” – São Paulo _ Ática, 1987.

FRIEDRICH, Hugo – “Estrutura da Lírica Moderna” – Tradução de Marise M. Curioni – São Paulo – Duas Cidades – 1978.

PESAVENTO, Santra Jatahy – “Imaginário da Cidade”

Neusa Azevedo
Enviado por Neusa Azevedo em 15/10/2011
Código do texto: T3278905