A ANTROPOFAGIA BRASILEIRA
A ANTROPOFAGIA BRASILEIRA: SUAS FACES E MARCAS
“Eles são selvagens, assim como chamamos de selvagens, os frutos que a natureza, por si mesma, e por sua marcha habitual, produziu; sendo que, em verdade, antes deveríamos chamar de selvagens aqueles que com nossa arte alteramos e desviamos da ordem comum”
Michel de Montaigne – Dos Canibais
Michel de Montaigne, em Dos Canibais, apresenta a visão do índio como figura importante da história brasileira. Também massifica a ideia de que os ameríndios são bárbaros pelo viés da razão. Muitos escritores também expressaram a teoria de Montaigne em seus romances. Para tanto é necessário explicitar que essa perda de caráter é apresentada de formas distintas, algumas com elos perenes de vetor histórico, e outras que permeiam a criação sui generis ao seu tempo.
A estética modernista – inaugurada pelo advento da Semana de Arte Moderna de 1922 – representa forte impacto na literatura referente às escolas que a antecedem. O romance Macunaíma instaura essa nova visão literária dentro do Brasil. De início o leitor depara-se a um fragmento chocante: “um herói sem nenhum caráter”, isso se dá pela forma adotada pelo autor de criar seu personagem, desmistificando os herois passados, e inserindo anti-herois. "No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite": com essa expressão já se entende a proposta desse importante personagem da literatura brasileira. Macunaíma era fruto da mistura da raça negra e indígena, e representava a nova cor local brasileira. Um dos trechos mais marcantes denota a conhecida preguiça da maioria dos brasileiros: “Ai, que preguiça!”, usado no dialeto indígena como “aique”.
Na fase retratada fase – Modernismo -, o ideal da antropofagia é expresso simbologicamente, atrelado ao Surrealismo; como nota-se no seguinte fragmento do romance Macunaíma, de Mário de Andrade:
“(...) Macunaíma agradeceu e pediu pro Curupira ensinar o caminho pro mocambo dos Tamanhumas. O Curupira estava querendo mas era comer o herói; ensinou falso: - Tu vai por aqui; menino-home, vai por aqui” (ANDRADE, Mario)
O trecho acima mostra o personagem folclórico, Curupira, que atua como instrumento para a realização do que se chama fantasioso, assim como o caráter principal: o canibalismo – tanto real, quanto Surrealista. Já o personagem histórico, Hans Staden, estabelece em seus relatos a visão europeia sobre a comunidade indígena, onde o canibalismo era expresso como forma de defesa, frente aos ataques seguidos de mortes na época da colonização. Qualquer estrangeiro era uma ameaça, pelo histórico realizado pelos portugueses. A forma como tal ação ocorre pode ser notada nos períodos a seguir, de Com Cerimônia Matam e Comem Seus Inimigos, Hans Staden:
“(...) Feito isto, o homem diz: ‘Sim, aqui estou, quero te mostrar, porque os teus também mataram a muitos dos meus amigos e os devoraram’. Então desfecha-lhe o matador com golpe na nuca, os miolos saltam e logo as mulheres tomam o corpo, puxando-o para o fogo; esfolam-no até ficar bem alvo. Comem a carne da cabeça; os miolos, a língua (...)” (STADEN, Hans)
Oswald de Andrade, em Manifesto Antropofágico expressa de forma literal o sentido da palavra modernismo. Esse movimento trás consigo a visão de que o estrangeirismo é válido desde que não se perca identidade primitiva do país.
A expressão de Andrade "Tupy, or not tupy that is the question. (...)” expressa claramente a intenção do seu manifesto, que por sua vez resgata tanto as formas primitivas brasileiras, quanto os ideais marxistas. O mundo, para o autor em questão, vive do comensalismo de culturas, e é apropriando-se da crítica do outro que se forma uma sociedade de opinião.
Semelhante ao romance Macunaíma, o texto de Andrade também remete o tema antropofagia pelo viés da fantasia, o que chega a ser comparado à fábula. Outro marcante relato é o personagem de Raul Bopp, Honorato: um rapaz encantado em cobra, que vive nas profundezas de um rio paraense; e a noite torna-se gente. Cobra Norato é o primeiro livro de poesias do poeta, publicado em 1931; e também retrata as características de drama épico e mitológico no terreno brasileiro.
A expressão do capitalismo, retratada nos parágrafos anteriores, é posta a prova por artifícios de descrição. O conteúdo desse texto mostra que todos os brasileiros vivem em função do que é moderno – no sentido materialista:
“(...) mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo.” (ANDRADE, Oswald)
“A fixação do professor por meio de catálogos e aparelhos de televisão. Só a maquinaria. E os transfusores de sangue.” (ANDRADE, Oswald)
Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa apresenta uma narrativa que comporta linguisticamente, uma gama de palavras desconhecidas para os falantes da forma normativa, como por exemplo: “(...) Arre que não”.
O tema é a fome no sertão, onde o alimento não era suficiente para suprir as necessidades dos que ali viviam, visto em “Nós trouxemos aquela mulher, o tempo todo, ela temia que faltasse outro de-comer, e ela servisse”. Diferente de Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, que nos remete uma literatura próxima ao século XXI, pelo caráter dos costumes; Grande Sertão Veredas aborda uma temática também engajada no Marxismo, tal como o Manifesto Antropofágico.
Ubaldo Ribeiro pretende em seu texto promover o encontro de gerações, com antropofagia real representada pelo Caboclo Capiroba, que apreciava comer holandeses. Durante algum tempo esse costume foi retirado do personagem, que passa a se alimentar de carne animal, e não de carne humana. É importante salientar o simbolismo desse ato. Ao trocar e poupar a vida do homem branco, por outro tipo de alimentação antiantropofágica, o Caboclo Capiroba perde um pouco da sua identidade indígena.
O canibalismo sociológico e o simbólico realizam na literatura um trabalho em conjunto, onde demarcam as origens dos ameríndios brasileiros; que subentendidamente resgatam apropriações tanto da língua, quanto da postura e da ética.