A fé e sua dimensão libertária

Recentemente pus-me a refletir sobre o significado da fé na vida das pessoas. A reflexão centrava-se, na verdade, no meu interesse em tornar mais claro o papel da fé em minha própria vida. Consultei algumas pessoas sobre sua opinião nesse assunto, até cheguei a postar uma pergunta sobre o assunto num fórum da internet.

As respostas que obtive, em que pese façam sentido aos seus gentis autores, me soaram incompletas, sem um conceito claro que permitisse conclusões seguras, dentro dos objetivos que eu estava buscando.

Dentre as várias concepções,duas delas serão utilizadas  neste momento, por representarem dimensões opostas do conceito de fé: a primeira, trata-se de uma concepção bíblica e conceitua a fé como a convicção acerca de algo que concretamente não existe, ao menos não ainda, mas que desejamos, por mais absurdo ou desconectado da realidade que possa aparentemente ser.

A segunda, uma concepção mais racionalista, conceitua a fé também como a convicção acerca de algo que não existe, porém, circunscreve essa convicção ao plano da plausibilidade física dos fenômenos. Ou seja, por mais absurda que seja essa convicção ela terá que respeitar as leis naturais. Não há espaço para o sobrenatural, mas sim para o desconhecido, que uma vez conhecido, deixa de ser miraculoso.

Resumindo, a primeira concepção conduz a uma visão de que a fé não possui limites, posso acreditar no que quiser, a segunda circunscreve a fé ao limite do verossímil.

Para prosseguir nessa reflexão é necessário estabelecer um acordo sobre a utilidade da fé. A meu ver nada mais contraditório do que a visão de que a fé é inútil. Uma vez que, dada a natureza imprevisível da vida, toda previsão que se localize a uma distância de um segundo de onde estamos depende inteiramente da confiança que nutrimos de que as coisas sairão da maneira que imaginamos, ou ao menos da melhor forma possível.

Ora, negar a fé, é negar a realidade da vida, sempre efêmera e naturalmente resistente a quaisquer formas de controle.

Uma outra visão, que acho mais razoável, atribui à fé um elemento de estabilidade da vida humana. Precisamos acreditar que o que estamos fazendo terá continuidade no próximo segundo, senão o que nos motivará a continuar?

Podemos observar que as concepções de fé utilizadas até agora estão localizadas fora do conceito de crença. Fé é algo maior do que a crença. Crença é apenas um tipo de fé, restrito a um conjunto de idéias na qual se acredita. Fé abrange muito mais coisas.

Para deixar mais claro, posso acreditar firmemente que o mundo e as principais questões ligadas a ele corresponde exatamente a uma concepção pregada por alguma religião. Isso é fé numa crença. Por outro lado, posso simultaneamente acreditar num mundo onde a liberdade humana de acreditar no que quiser é um princípo básico, com base nas minhas convicções pessoais, isso é fé para além das concepções religiosas.

É muito comum nos depararmos com pessoas defendendo que fé é tão somente a fé numa concepção religiosa, mas isso, como vimos, é apenas fé na crença. A fé na crença tem muitas utilidades, mas definitivamente não tem o poder de substituir a fé numa concepção mais ampla, sendo esta última a que estamos perseguindo neste ensaio.

A mente humana possui uma configuração deveras interessante, pois nada a condiciona e limita, em última análise, além da vontade de seu possuidor. Não negamos que fatores externos influenciem a concepção de mundo de uma pessoa, mas adotamos a visão de que se a pessoa decidir adotar outra postura nada poderá detê-la.

Sendo de configuração livre, a mente humana, ressurge madura no plano da responsabilidade sobre suas escolhas. Ao adotar uma visão de mundo o ser adota também a responsabilidade pelas conseqüências dessa escolha. Resumindo, toda escolha tem uma conseqüência e a responsabilidade é sempre de quem escolhe.

Ao adotar uma concepção de fé limitante de sua condição humana o ser tolhe sua capacidade dinâmica e circunscreve-se às fronteiras de suas próprias convicções. Ao adotar uma concepção de fé abrangente ele abre as portas para seu aprimoramento contínuo.

Através do conceito abrangente de fé creio ser possível a convivência aparentemente improvável de fé abrangente sem necessariamente fé numa crença. O que tornaria possível a um ateu ser simultaneamente um homem de fé, porque sua fé não circunscreve-se a uma crença, mas direciona-se para outros elementos da realidade como a vida, a sociedade, o universo, os valores etc.

Penso que a necessidade de antropomorfização da visão religiosa não é universal e restringe-se às pessoas que têm necessidade dela. Necessitam de uma figura de pai, de patrão, de tutor etc. Outros, no entanto, sentem-se preparados para abraçar uma concepção cosmogônica mais responsável e colaborativa onde suas ações e sua conduta são o caminho direto para uma situação mais elevada ou uma vida mais feliz.

A fé, portanto, pode ser um espaço de liberdade e vida em oposição a uma visão castradora e a autoritária. Essa fé libertária, no entanto, é subversiva, pois dispensa intermediários e cobra do ser humano uma atitude responsável ante os valores mais significativos da vida. Ela não permite a dominação, não faz escravos. Coloca a mente do ser humano em contato com a dimensão geral espiritual da vida.

A fé autoritária assemelha-se a um pote em vemos inscrito o dizer “sal” enquanto que seu conteúdo é, na verdade, “açúcar”. Por essa visão a concepção sobrepõe-se a realidade e seremos obrigados a salgar nosso almoço com açúcar, porque é vedado o questionamento. Questionar é sinônimo de destruir, de invalidar e por isso é repudiado.

Prossigo buscando um conceito de fé capaz de satisfazer os anseios de meu coração, penso que aos poucos a vida me dará esse presente.