Todas as possibilidades estão abertas


Em uma perspectiva mais ampla existem dois momentos dentro dos quais podemos nos relacionar com alguém: na vida ou na morte.

Relacionar-se com alguém em  vida é algo de muito valor, um vínculo singular.
Todas as possibilidades estão abertas. Em vida a relação pode ser marcada pela virtude, pelo altruísmo, pela solidariedade, pelo amor etc., pode também, ao contrário, tingir-se de rancor, de mágoa, de ofensa e, por fim, há hipótese de uma relação entre duas pessoas em vida ser marcada pela indiferença.

Embora difícil, não é tarefa impossível identificar-se a natureza de uma relação a partir dos pressupostos colocados anteriormente. Basta o exame apurado da realidade. Os vínculos hauridos durante a vida são reveladores. Forças atrativas costumam brotar de sentimentos nobres, afinidades duradouras também, sentimentos como gratidão e respeito podem ser observados com facilidade.

Por outro lado, forças repulsivas nascem de relações empobrecidas onde dominam as paixões, a inveja, a incompreensão, o orgulho etc. A indiferença, por sua vez, quando não forma repulsão é incapaz de gerar qualquer vínculo gratificante.

A relação entre pessoas vivas constitui-se, portanto, num riquíssimo laboratório aonde vamos, na medida do possível, escolhendo as experiências, reavaliando os resultados e reiniciando o processo ininterruptamente e com isso vamos amadurecendo como seres humanos.

Quando as pessoas se vão, através do misterioso portal da morte, inaugura-se um novo momento dessa relação. Ela passa a ser, sob o ponto de vista exclusivamente material, a relação entre algo que existe (quem fica) e uma idéia de alguém que já existiu, mas que não existe mais (fisicamente).

Tal constatação nos leva a incômoda percepção de que a partir desse momento fatal nada do que for feito terá consequências materiais sobre quem já partiu.

Não poderemos ampará-lo, não poderemos agasalhá-lo, não poderemos ouví-lo, não poderemos compreendê-lo, não poderemos aquecê-lo, não poderemos confortá-lo, não poderemos enxugar-lhe as lágrimas, enfim, não poderemos mais nada.


As consequências da relação, portanto, com quem já partiu se dá exclusivamente sobre aquele que ficou. O choro, as lágrimas, a solidão, a revolta, o vazio, as teorias, o respeito, a depressão e todos os sentimentos comuns subsequentes à perda só provocam efeitos materiais sobre quem fica.

Um fenômeno bastante comum é o súbito endeusamento dos que partiram. Alguns deixam de ter defeitos e passam a ter somente qualidades. Outro fenômeno relativamente comum é os que ficam atribuir-se uma importância na vida de quem se foi que não existia, quando ambos estavam vivos.

Familiares ou conhecidos que quase nem se falavam, que pouco faziam afetivamente uns pelos outros, que mal se prestavam a fazer uma ligação telefônica em datas comemorativas, que pouco se visitavam, passam a apresentar-se como verdadeiros pilares de uma relação que há bem pouco tempo quase nada era.

Igualmente relevante é o comportamento de alguns que, em vida, verdadeiramente se entregaram, que fizeram diferença, que foram solidários, que estiveram, ao lado, que amaram e que após a partida se calam, mergulham serenamente na soberana gratidão por todos os momentos felizes vividos juntos. Não sentem-se em débito, por isso, nada têm que provar. Não são palavras e discursos que constroem algo que não existia, mas o império dos fatos é que fala por si mesmo.

Essas dicotomias insidiosas e de difícil detecção não passam despercebidas a mentalidades mais aguçadas.


Como comportar-se diante de uma perda é algo que cada um o fara a seu modo. É difícil, porém, existem modos de se conviver com a dor. E tão difícil como conviver com o sofrimento é conviver com a frustração de não se ter feito o suficiente.

Alguns cultuarão para o resto de suas vidas a memória do ente que partiu, construirão mausoléus, acenderão velas, rezarão missas, farão sacrifícios, entoarão cânticos, invocarão os espíritos, visitarão cemitérios, sempre em busca de minimizar suas dores.

Mas outros legitimamente assumirão posturas menos visíveis, mais internas, mais íntimas. Não se prenderão a aspectos físicos do luto. Diluirão suas dores na compreensão dos fatos, do sentido e dos porquês das coisas. Empreenderão a jornada do perdão, da cura e da superação.

Identificados esses dois grupos é natural que não se compreendam entre si, que não se aceitem, que questionem as razões uns dos outros, mas de que adianta tudo isso para o que partiu.

A advertência ínsita nestas palavras é de que não percamos tempo com coisas inúteis, conservemos o respeito por quem já partiu e pela dor dos que ficaram.

Os que ficam não ficam sozinhos e todos sofrem independentes de suas razões. Se se proporem a unir seus corações, a apoiarem-se, a compreenderem-se estarão fazendo sua lição de casa no único campo de possibilidades que temos a nossa frente: a vida ser vivida.