Comunicação e sentido na fenomenologia

A fenomenologia constitui um caminho que tem por meta a construção da ciência da essência do conhecimento ou doutrina universal das essências. Uma trilha para perseguir este caminho seguido por Husserl é compreender sua proposta de "volta as coisas mesmas". O que significa dizer, retorno à consciência, visto que a consciência é sempre orientada para as coisas, é sempre consciência de. Se a consciência é uma intenção dirigida para o objeto, é o próprio ser, e não a aparência do objeto, que é dado para a consciência. Logo, a consciência pode se pronunciar sobre esse ser segundo a maneira pela qual ele se apresenta, elucidando o modo segundo o qual ela o visa. Para isto ela não precisa sair de si mesma. Segundo Husserl (2008, p. 239): “Se a teoria do conhecimento quer estudar os problemas das relações entre a consciência e o ser, ela só pode então ter diante dos olhos o ser como correlato da consciência, como alguma coisa de visado segundo a maneira da consciência”.

Fenômeno é uma palavra de origem grega, phainómenon, que significa aquilo que aparece e que deriva do verbo phainomenai, aparecer. Fenomenologia significa, portanto, ciência do fenômeno. Para Scherer (1983, p. 240): “A consciência ou o ser psíquico é todo o fenômeno, que será preciso distinguir da coisa fenomenal aparecente. O fenômeno não é a aparição de alguma coisa, ele é o próprio ser do aparecer, nele não há nenhuma distinção entre aparecer e ser.” Para caracterizar o fenômeno, Husserl se valerá da concepção de vivência, que significa que a consciência não é experimentada como “aparecendo a si própria”, mas é absolutamente inerente a si mesma.

Em relação à “coisa fenomenal”, podemos considerá-la como aparência, ou melhor, como aparição, sob a condição de entendermos, com isso, que ela não é vivida, mas sim visada como coisa. Ela não faz parte do fenômeno, que não é uma “unidade substancial”, uma coisa, mas ela é dada no fenômeno com o seu sentido e o seu ser, já que o fenômeno, relativamente à coisa, não é um biombo que se interporia entre ela e a consciência, mas sim esta própria visada. A fenomenologia Husserliana não trata simplesmente do ser da consciência, no sentido psicológico do termo, nem ainda do ser para a consciência, mas situa na consciência o único caminho de acesso ao ser.

A consciência humana constitui um modo de ser no mundo, o próprio ser-do-homem-no-mundo. A fenomenologia transcendental instala um diálogo com a estrutura do fenômeno humano, possibilitando reorientações do sentido do ser no mundo. A transcendência pode ser entendida aqui como o próprio modo do ser-do-homem, enquanto possibilidade de escolha da sua forma de estar no mundo. Reside neste registro de estar aberto para as possibilidades do mundo, a condição estrutural de constituição do ser-do-homem.

A consciência, portanto, não pode ser pensada como um mero espelho que reflete um mundo acabado. A consciência anuncia uma intencionalidade, o que significa um modo próprio de perceber o mundo.

"Perceber uma coisa é vê-la, toca-la, cheira-la, ouvi-la, enfim, senti-la de diferentes maneiras e de acordo com as possibilidades dos sentidos.

Portanto não a trata de modo abstrato, mas do modo como ela se dá em uma experiência corpórea, vivenciada pelo corpo encarnado, o que lhe confere as características da temporalidade e da mundaneidade carnal. A percepção assevera, dá-se no presente contextuado em um horizonte temporal, onde passado e futuro também estão presentes em um fluxo de retenções e de pró-tensões. Percepção e percebido, portanto, dão-se no mundo-horizonte, em perspectivas, quando o sentido vai se pondo e a significação se processando" (BICUDO, 2000, p. 31).

A percepção se constitui na vivência com o mundo. Estabelecer um diálogo com estas formas de perceber o mundo pressupõe considerar a dinâmica da forma própria que se organiza o mundo percebido. "A existência é realizada no corpo, portanto, o sentido que o mundo faz para o sujeito dá-se pela percepção, que é uma experiência corpórea, vivida pelo corpo próprio. Entretanto, por não se tratar de um objeto passível de ser apropriado e que tenha existência em si, separada de sua atualização, mas por tratar-se de uma experiência corpórea, o sentido sempre se efetua de modo a ir além de si, expressando-se, e, com isso, processando a significação. Expressa-se no corpo encarnado, manifestando as modalidades da existência. Expressa-se na fala, manifestando o pensamento articulado. Expõe-se e sedimenta-se nos meios convencionais de comunicação, em formas lingüísticas, musicais ou em outras modalidades da arte, da religião, da ciência, da tecnologia" (BICUDO, 2000, p. 32).

Ao afirmar que a existência é realizada no corpo, fica que o corpo não é um meio utilizado pela existência para exteriorizá-la, mas que o corpo encarnado ao viver suas experiências afetivas dá vazão à existência. Reside nesta formatação a operação primordial de significação, em que o expresso não está separado da expressão e em que os próprios signos induzem seu sentido no exterior. Corpo e existência se pressupõem, embaralham-se, formam uma trama. Reside nesta trama, que se articula como uma rede de significações, a realidade mundana, onde existimos de modo participativo, criando-a. A rede de significações, contudo, não é composta de pontos, constituídos por conceitos que se interligam formando a trama. Cada nó da rede expressa à experiência vivida, que nas palavras de Merleau-Ponty (1994, p. 260), sobre a experiência nominal “comporta círculos ou turbilhões no interior dos quais cada elemento é representativo de todos os outros e trás como que vetores que os ligam a eles”. A experiência vivida constitui-se parte desta rede ao ser expressa, deixando, assim a marca do sentido percebido pela pessoa e, ao mesmo tempo, a marca da história e da cultura por meio dos sistemas constituídos de expressão.

Importante assinalar a diferença que Merleau-Ponty (1994) faz entre palavra e fala. Anuncia que a primeira é apenas o invólucro da verdadeira denominação e da fala autêntica. A palavra não é desprovida de sentido, pois atrás dela há uma operação categorial. Ao nomear um objeto ocorre um distanciamento daquilo que existe de individual, de único, articulando-o a um eidos, ou a uma essência, tornando-o assim representante de uma categoria. Um aparente paradoxo que se resolve ao situarmos a palavra sobre o enfoque do pensamento em movimento e daquele da palavra já nomeada e a disposição na realidade mundana.

Segundo Bicudo (2000, p. 35-36), pensar é uma experiência pela qual nos apropriamos do nosso próprio pensamento, pela fala interior ou exterior, ao expressá-lo por palavras. Estas têm som, podem ser articuladas mediante sistemas gramaticais e são passíveis de serem ditas por meio de ações, intervindo na realidade e possibilitando a comunicação intersubjetiva. Pensamento e linguagem constituem uma totalidade, uma estando entrelaçada na outra. A linguagem permaneceria vazia sem as palavras vivificadas pelo sentido, oriundo da experiência e respectivas intuições que presentificam o existente. A denominação dos objetos não vem após o seu reconhecimento efetuado por um sujeito, a palavra não é o simples signo dos objetos e das significações, mas ela habita nas coisas e veicula as significações.

A fala, portanto, não anuncia um pensamento já elaborado, mas o consuma. Neste contexto é que se torna possível a aprendizagem, quando a comunicação intersubjetiva rompe com o mundo já pensado e possibilita o processo de deixar-se afetar pela fala do outro. Dito desta forma, fica que a comunicação e a clareza da linguagem podem parecer estabelecidas de maneira fácil e imediata. O sentido de uma frase se anunciaria de modo inteligível, límpido, como se estivesse fora da frase. Contudo, a clareza da linguagem se estabelece sobre um fundo obscuro e não na aparente inteligibilidade do mundo lingüístico.

Merleau-Ponty (19994) considera que a construção do mundo se configura a partir da experiência original, em um nível pré-reflexivo, residindo no gesto, e na sua importância na expressão pela fala, o aspecto central para o entendimento deste processo. "Um movimento do corpo efetuado para exprimir idéias ou sentimentos ou para realçar a expressão, não deve ser confundido com uma operação do conhecimento. Ele é o ato que consuma a intenção do sujeito no próprio comportamento do corpo encarnado. Assim é no corpo que nos expomos ao outro e é pelo corpo que a intencionalidade do outro nos é expressa. Obtemos, deste modo, a comunicação ou a compreensão dos gestos. Para Ponty, tudo se passa como se a intenção do outro habitasse nosso corpo ou se nossas intenções habitassem o seu. Há confirmação da comunicação estabelecida nos corpos-próprios dos comunicadores" (BICUDO, 2000, p. 39-40).

O gesto indica, portanto, o percebido na percepção. Percebemos a coisa em sua evidência própria, e não a partir de algum tipo de acordo acerca de seus diferentes aspectos. Situamo-nos nesta encruzilhada, onde o nosso corpo-próprio coexiste com as coisas, também em sua corporeidade. Compreendemos o outro e o mundo através desta presença que se faz pelo corpo-próprio. O sentido do gesto confunde-se aqui com ele mesmo e com a estrutura do mundo percebido. A fala lingüística anuncia a possibilidade de expressar a maneira pela qual o sujeito faz uso do seu corpo-próprio e de seu mundo de emoção. Reside nesta característica a abertura que possibilita modular as significações que estão a disposição no mundo e que preenchem a fala de sentido.

REFERÊNCIAS

BICUDO, M. A.V. Fenomenologia: confrontos e avanços, São Paulo, Cortez, 2000.

GALEFFI, Dante Augusto, O que é isto – a fenomenologia de Husserl. In: Revista Ideação, v.5. Feira de Santana: UEFS, 2000, p. 13-36.

HUSSEL, E. Renovação, seu problema e método. Lisboa: Lusosofia.net, 2008.

MERLEAU-PONTY, Maurice, Fenomenologia da Percepção, Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura, São Paulo, Martins Fontes, 1994 (1945).

SCHÉRER, R. Husserl, a fenomenologia e seus desenvolvimentos. In: CHÂTELET, F. (Org.). História da Filosofia: idéias, doutrinas, v.6. Rio de Janeiro, Zahar, 1983. P. 234-260.