CARTA A UM PAI PREOCUPADO
Oi Cunhado,
Segunda-feira, (só encontrei tempo para te escrever hoje. Como você mesmo diz: você não tem noção de como está a minha vida) acordei pensando na nossa conversa durante a nossa vinda a Santo André. Percebi, então descansada; depois de uma noite, embora curta, de sono, que estávamos falando cada um de um vértice diferente. Vértices realmente incompatíveis. Refiro-me à conversa sobre clássicos da literatura infanto-juvenil ou Fair Tales, Contos-de-Fadas. Você estava fazendo a sua avaliação a partir de um vértice pedagógico e deste ponto de vista estas histórias são realmente condenáveis.
Fiquei avaliando então os nossos heróis contemporâneos, os mais populares. Achei poucos, praticamente nenhum, aprováveis deste ponto de vista. Permita-me compartilhar com você.
Comecei pelo Cebolinha. Pedagogicamente o Cebolinha é um “nota-zero”. Fala elado, nunca vai falar celto. O Cascão então, este nem se fala, não tem jeito, nunca vai tomar banho mesmo. Lembro-me nitidamente que sempre que eu começava a ler uma de suas histórias estava embalada pela esperança que naquela ele iria, finalmente, tomar banho. Me frustrei sempre.
A Magali é uma gulosa. Toda voracidade da turma do Maurício ficou com ela. A Mônica é uma controladora. Tudo tem que sair do jeito que ela quer. Caso contrário manda ver o seu coelho Sansão e uns bons socos no olho de quem a provocar. A Mônica tem uma baixa tolerância à frustração. O Chico Bento, esse eu amo, não vai bem na escola, curte uma preguiça, mas é de uma pureza!
Acho que o personagem que mais se salvaria do ponto de vista pedagógico é o Floquinho. Este é politicamente correto, uma adequação! Mas ele não tem uma revista só para ele. Acho que não venderia. Só ele fica meio chato. Falta o sal e a pimenta que os outros dão. Tem também o Anjinho, claro, embora este nem seja digno de nota. Vive naquela nuvenzinha, acho que sonhando em ser humano.
Passei para os heróis da Disney. Claro que comecei pelo Tio Patinhas.

Ganancioso que só ele. Eu acho que o grande problema do Tio Patinhas é que nunca sabemos como ele ganhou e ganha tanto dinheiro. Só juntando não dá para ficar trilhardário. Não é como o Silvio Santos que sabemos foi engraxate e depois inventou a fórmula do Baú da Felicidade. Não. Do passado do tio Patinhas sabemos apenas da moeda “número um” que ele guarda como um troféu, um talismã.
Passei ao Pato Donald. Um solteirão convicto. Nada de casar com a Margarida. E os sobrinhos, Huguinho, Zézinho e Luizinho, será que são sobrinhos mesmo? Ou seriam filhos de alguma namorada eventual e que ele assumiu a guarda? Se são sobrinhos, o Disney tratou de colocar órfãos de pai e mãe na sua turma, como todo bom autor de clássicos. E o Pateta então? Esse é um cachorro, mas é um burro (com perdão da má palavra). O Pluto, outro cachorro, é mais inteligente que ele.
Do Disney, o herói mais adequado, o mais politicamente correto, embora todos sejam, menos os Irmãos Metralhas claro, (pois é, o Disney tinha que colocar o mal em algum lugar, certo?) é, sua majestade, Mickey Mouse. Este também um solteirão, um Don Ruan como o Donald. E também tem dois supostos sobrinhos, o Chiquinho e o Francisquinho, e nada de casar com a Minie, sua eterna namorada.
Eu gosto muito do Pardal e também do Professor Ludovico. Não vejo nada de errado, do ponto de vista pedagógico, com eles, muito pelo contrário.

Só para me prolongar mais um pouco, não sei nem se você chegou até aqui, outros heróis meus e reprováveis do ponto de vista pedagógico, principalmente um deles, são Calvin e o seu tigre Haroldo. O Calvin é danadíssimo, ganha do Gustavo e ganha de qualquer menino nas fantasias que cria. O Bill Watersson, o criador da dupla, foi real e genialmente inspirado quando pôde captar e projetar em sua criação a alma genuinamente universal do menino.
O Calvin cria personagens para seus pais e sua babá, que ele odeia, e para a professora e o diretor e são fantásticas as histórias vividas. Os pais são muito adequados e muito francos ao expressarem a dificuldade, que muitas vezes se sentem perdidos em educar um menino tão terrível e tão criativo. Calvin também não quer comer o que a mãe oferece, só guloseimas, e é muito engraçado como ele fala do seu lanche para a sua amiga, Suzie, esta sim, politicamente corretíssima, boa aluna, uma cdf, quase uma nerd, mas não chega a tanto. Tem um menino, um brutamontes que eu não sei o nome de quem o Calvin tem medo, mas também faz piadas no seu íntimo a respeito da força bruta.
O tigre Haroldo é seu alter-ego, um aspecto superegóico que contém sua autocrítica, mas sem ser severa. Haroldo também sabe, apesar da crítica, aceitar o amigo Calvin, ser companheiro de travessuras e se divertir a beça. É realmente um aspecto muito saudável da personalidade de Calvin. Não concordo com alguns críticos que dizem ser o Calvin um menino esquizofrênico. Não é mesmo. É um menino travesso e criativo e o autor genial, então Calvin e Haroldo também são.
E aí cheguei então à diferença entre os nossos vértices de observação. Eu sou uma psicanalista. Para mim as questões pedagógicas são secundárias. Os heróis perfeitos, cdfs, e bem comportados não convidam à identificação porque as crianças não são assim. Só as que estão com problemas. Do vértice psicanalítico o que importa é a comunicação simbólica porque esta é inconsciente.
Todo Conto de Fadas começa assim: era uma vez, num país/reino/lugar distante (o inconsciente) e todos abordam um conflito que a criança enfrenta em seu desenvolvimento emocional normal e oferece uma esperança de solução para este, numa linguagem simbólica, que fala diretamente ao inconsciente. É por isso que muitas vezes a criança cisma com uma determinada história e só quer ouvir aquela história. Ela está naquele momento de seu desenvolvimento emocional lidando inconscientemente com aquele conflito.
E é por isso também que chamam “contos”. Eles devem ser contados à criança. É bom que venham pela voz do adulto. Propicia estreitamento e fortalecimento dos laços.
Bem, muito ainda poderia ser dito, mas já foi muito. Se você chegou até aqui, grata pela atenção.
Beijo grande.
Oi Cunhado,
Segunda-feira, (só encontrei tempo para te escrever hoje. Como você mesmo diz: você não tem noção de como está a minha vida) acordei pensando na nossa conversa durante a nossa vinda a Santo André. Percebi, então descansada; depois de uma noite, embora curta, de sono, que estávamos falando cada um de um vértice diferente. Vértices realmente incompatíveis. Refiro-me à conversa sobre clássicos da literatura infanto-juvenil ou Fair Tales, Contos-de-Fadas. Você estava fazendo a sua avaliação a partir de um vértice pedagógico e deste ponto de vista estas histórias são realmente condenáveis.
Fiquei avaliando então os nossos heróis contemporâneos, os mais populares. Achei poucos, praticamente nenhum, aprováveis deste ponto de vista. Permita-me compartilhar com você.
Comecei pelo Cebolinha. Pedagogicamente o Cebolinha é um “nota-zero”. Fala elado, nunca vai falar celto. O Cascão então, este nem se fala, não tem jeito, nunca vai tomar banho mesmo. Lembro-me nitidamente que sempre que eu começava a ler uma de suas histórias estava embalada pela esperança que naquela ele iria, finalmente, tomar banho. Me frustrei sempre.
A Magali é uma gulosa. Toda voracidade da turma do Maurício ficou com ela. A Mônica é uma controladora. Tudo tem que sair do jeito que ela quer. Caso contrário manda ver o seu coelho Sansão e uns bons socos no olho de quem a provocar. A Mônica tem uma baixa tolerância à frustração. O Chico Bento, esse eu amo, não vai bem na escola, curte uma preguiça, mas é de uma pureza!
Acho que o personagem que mais se salvaria do ponto de vista pedagógico é o Floquinho. Este é politicamente correto, uma adequação! Mas ele não tem uma revista só para ele. Acho que não venderia. Só ele fica meio chato. Falta o sal e a pimenta que os outros dão. Tem também o Anjinho, claro, embora este nem seja digno de nota. Vive naquela nuvenzinha, acho que sonhando em ser humano.
Passei para os heróis da Disney. Claro que comecei pelo Tio Patinhas.

Ganancioso que só ele. Eu acho que o grande problema do Tio Patinhas é que nunca sabemos como ele ganhou e ganha tanto dinheiro. Só juntando não dá para ficar trilhardário. Não é como o Silvio Santos que sabemos foi engraxate e depois inventou a fórmula do Baú da Felicidade. Não. Do passado do tio Patinhas sabemos apenas da moeda “número um” que ele guarda como um troféu, um talismã.
Passei ao Pato Donald. Um solteirão convicto. Nada de casar com a Margarida. E os sobrinhos, Huguinho, Zézinho e Luizinho, será que são sobrinhos mesmo? Ou seriam filhos de alguma namorada eventual e que ele assumiu a guarda? Se são sobrinhos, o Disney tratou de colocar órfãos de pai e mãe na sua turma, como todo bom autor de clássicos. E o Pateta então? Esse é um cachorro, mas é um burro (com perdão da má palavra). O Pluto, outro cachorro, é mais inteligente que ele.
Do Disney, o herói mais adequado, o mais politicamente correto, embora todos sejam, menos os Irmãos Metralhas claro, (pois é, o Disney tinha que colocar o mal em algum lugar, certo?) é, sua majestade, Mickey Mouse. Este também um solteirão, um Don Ruan como o Donald. E também tem dois supostos sobrinhos, o Chiquinho e o Francisquinho, e nada de casar com a Minie, sua eterna namorada.
Eu gosto muito do Pardal e também do Professor Ludovico. Não vejo nada de errado, do ponto de vista pedagógico, com eles, muito pelo contrário.

Só para me prolongar mais um pouco, não sei nem se você chegou até aqui, outros heróis meus e reprováveis do ponto de vista pedagógico, principalmente um deles, são Calvin e o seu tigre Haroldo. O Calvin é danadíssimo, ganha do Gustavo e ganha de qualquer menino nas fantasias que cria. O Bill Watersson, o criador da dupla, foi real e genialmente inspirado quando pôde captar e projetar em sua criação a alma genuinamente universal do menino.
O Calvin cria personagens para seus pais e sua babá, que ele odeia, e para a professora e o diretor e são fantásticas as histórias vividas. Os pais são muito adequados e muito francos ao expressarem a dificuldade, que muitas vezes se sentem perdidos em educar um menino tão terrível e tão criativo. Calvin também não quer comer o que a mãe oferece, só guloseimas, e é muito engraçado como ele fala do seu lanche para a sua amiga, Suzie, esta sim, politicamente corretíssima, boa aluna, uma cdf, quase uma nerd, mas não chega a tanto. Tem um menino, um brutamontes que eu não sei o nome de quem o Calvin tem medo, mas também faz piadas no seu íntimo a respeito da força bruta.
O tigre Haroldo é seu alter-ego, um aspecto superegóico que contém sua autocrítica, mas sem ser severa. Haroldo também sabe, apesar da crítica, aceitar o amigo Calvin, ser companheiro de travessuras e se divertir a beça. É realmente um aspecto muito saudável da personalidade de Calvin. Não concordo com alguns críticos que dizem ser o Calvin um menino esquizofrênico. Não é mesmo. É um menino travesso e criativo e o autor genial, então Calvin e Haroldo também são.
E aí cheguei então à diferença entre os nossos vértices de observação. Eu sou uma psicanalista. Para mim as questões pedagógicas são secundárias. Os heróis perfeitos, cdfs, e bem comportados não convidam à identificação porque as crianças não são assim. Só as que estão com problemas. Do vértice psicanalítico o que importa é a comunicação simbólica porque esta é inconsciente.
Todo Conto de Fadas começa assim: era uma vez, num país/reino/lugar distante (o inconsciente) e todos abordam um conflito que a criança enfrenta em seu desenvolvimento emocional normal e oferece uma esperança de solução para este, numa linguagem simbólica, que fala diretamente ao inconsciente. É por isso que muitas vezes a criança cisma com uma determinada história e só quer ouvir aquela história. Ela está naquele momento de seu desenvolvimento emocional lidando inconscientemente com aquele conflito.
E é por isso também que chamam “contos”. Eles devem ser contados à criança. É bom que venham pela voz do adulto. Propicia estreitamento e fortalecimento dos laços.
Bem, muito ainda poderia ser dito, mas já foi muito. Se você chegou até aqui, grata pela atenção.
Beijo grande.