Sobre o misticismo quântico
Há já alguns anos está em voga o que, com enorme aplicação, pode ser chamado “misticismo quântico”, que consiste em umas orelhadas distantes na teoria, e um floreado metafísico sobre isso.
É interessante notar que os que se deslumbram com tal misticismo costumam desdenhar da teoria física clássica, e nenhum interesse possuem na relatividade.
Creio que a razão para isso está exatamente no que vejo como um obscurantismo da teoria quântica.
De meu ponto de vista as coisas sucederam assim:
A física newtoniana angariou, no século XIX, um sucesso sem precedentes.
Esse sucesso gerou uma crença pia na ciência.
Tal crença foi advogada e proclamada pelos positivismos, versões sobre um mesmo tema imperantes na época.
Críticas posteriores à teoria, durante o século XX, impuseram a construção de uma nova teoria, a mecânica quântica.
Seus preceitos se inspiraram no neopositivismo, corrente filosófica remanescente do otimismo cientificista do século anterior.
Creio que um dos pressupostos inspiradores da teoria era a necessidade de não errar. Os positivistas tinham por objetivo construir um conhecimento científico provado, indubitável. Tratava-se de demonstrar fatos e conclusões sobre a natureza e listá-los em um longo compêndio chamado ciência (essa pretensão foi posteriormente negada por Karl Popper que mostrou sua inviabilidade).
Como o intuito de não errar, os quânticos trataram de afirmar o mínimo possível. Falando pouco, evitariam muitos erros.
Com o propósito de evitar o erro a todo custo, os quânticos se sentiam confiantes para afirmar a existência de tudo aquilo que podiam ver. Mas, oh medo brutal do erro: trataram de se calar sobre aquilo que não viam.
Atentem ao significado disso: como tenho horror ao erro, só afirmarei aquilo do qual tenho a mais absoluta certeza. Assim, se eu for um quântico afirmarei a existência do mundo ao meu redor, desse teclado que digito, da tela à minha frente, mas nada poderei dizer sobre o quarto ao lado. Estava lá quando ali estive, mas, como posso saber se já não sucumbiu quando o deixei? (notem o grau de paranoia da dúvida).
Curiosamente, essa tentativa férrea de evitar o erro acabou acarretando um equívoco surpreendente: da impossibilidade de afirmar o que não era visto, se sentiram compelidos a afirmar a não-existência daquilo!
Então, ao invés de dizer, “só posso garantir a existência daquilo que vejo agora”, passaram a afirmar: “e o que não vejo não existe!”, caindo, dessa maneira, em um antigo mote devido a um metafísico religioso inglês, Georges Berkeley: ser é ser percebido.
Os quânticos tentam interpretar ao pé da letra as equações estatísticas que utilizam.
Devido a sua própria natureza, as equações estatísticas descrevem o mundo revelando um conjunto de estados possíveis, e a probabilidade de cada um deles.
A interpretação usual de tais equações consiste em imaginar que o mundo está em um único estado (está de um jeito), em qualquer um dos estados sugeridos pela equação, e com a probabilidade ali descrita.
A estranha, e quase mística, interpretação proposta pelos quânticos consiste em admitir todos os estados como simultaneamente existentes!
Assim, se uma equação probabilística descreve uma porta estando aberta ou fechada, com metade das chances de estar em um desses dois estados, qualquer pessoa sensata dirá: a porta está aberta, ou fechada. Mas o quântico dirá: a porta está aberta e fechada! Está nesses dois estados com iguais probabilidades! Ou seja, o quântico não propõe a exclusão (ou a porta está aberta, ou está fechada) como qualquer pessoa sensata proclamaria, mas, interpreta a equação em um sentido estritamente literal, à maneira recomendada pelos positivistas, com o intuito de evitar qualquer erro, e então proclama: a porta está aberta e fechada! (Ah, ele não quer dizer que a porta está meio aberta).
Deixas como esta parecem seduzir uma enorme quantidade de pessoas avessas ao conhecimento científico e à matemática. Percebendo o absurdo se imiscuindo em meio às crenças científicas, descobrem um filão para suas ideias desconexas e confusas.
Ao contrário da ficção, ou mesmo da metafísica, onde as ideias fluem livres, e os autores podem, e devem, inventar o mais estranhamente que conseguirem, sem nenhum freio, as ideias científicas devem se encaixar umas às outras, como brinquedinhos de armar.
Aliás, creio ser essa a principal diferença entre ciência e ficção. Quanto a meus gostos pesssoais em relação a ambas, prefiro as mais estranhas, brilhantes, inovadoras.
Note que essa restrição à ciência, a necessidade de encaixar-se às outras como nos brinquedos, longe de tolher a imaginação dos cientistas, os estimulou a criar ao mais bizarros mundos já imaginados, e quem duvidar disso deve tomar conhecimento de desenvolvimentos sobre relatividade, geometrias não-euclidianas, lógicas não-clássicas, sistemas replicativos e muitos outros delírios científicos maravilhosos, mas tão corretamente atados a outros brinquedinhos quanto o possível.
Quanto ao misticismo quântico sugerido por essa ciência pouco imaginativa, consiste apenas em má ficção, numa ficção pobre improfícua e desconexa.