O ESPÍRITO DO CONSTITUCIONALISMO
Por
Frassino Machado
Considerando que toda a História da Humanidade, desde os seus fundamentos documentais, vem atestando faseadamente momentos fracturantes que, de uma maneira ou de outra lhe dão um dinamismo mais refrigerante e criativo, sem o qual a história das Civilizações como que estagnaria nos seus modelos estruturantes; considerando também serem esses momentos fracturantes – apelidados genericamente de revoluções – geradores daquelas virtualidades inovadoras as quais se tornam passíveis de constituir paradigmas conceptuais que dão corpo ao devir civilizacional; considerando, finalmente, que uma das mais carismáticas virtualidades está corporizada num suporte legal justificativo – vulgo Constituição – que garante a fiabilidade e consistência das Instituições organizativas responsáveis pela dinâmica histórica dos povos, afirmamos convictamente que é no Constitucionalismo que reside a charneira do todo o devir histórico das Nações modernas.
Ele próprio, como realidade primeira de toda a Lei que comporta a veracidade dos actos governativos – o que se poderá apelidar de « legicentrismo » – tem sido nomeadamente ao longo de toda a História Contemporânea a questão sempre mais aglotinadora de vontades quer no que toca a consensos e contractos como até, contraditoriamente, o suporte de ideologias politico-sociais tendentes à luta pela tomada do poder.
Na história portuguesa contemporânea, após a implantação do Liberalismo Político, no terceiro decénio do século XIX, irá ser a questão constitucional aquela que mais vai dinamizar, direi mesmo polemizar, toda a dinâmica do desenrolar histórico, constituindo uma cadeia de avanços e recuos permanentes, frequentemente opostos não tanto no essencial como em aspectos acessórios que geraram, como sabemos, ocorrências de lutas civis dramáticas e inibidoras, elas mesmas, de uma identidade nacional consistente.
Um pouco à sombra da influência do nosso país vizinho, onde a revolução liberal ocorrera uns anos antes, dando à Luz a primeira Constituição Ibérica, os liberais portugueses procuraram cimentar um edifício legal capaz de modernizar e apaziguar toda a massa político-social. Promulgaram em 1822 o nosso primeiro Código da Nação Portuguesa. Nesse momento, assinaram duas coisas: a certidão de natalidade de uma “Nova Nação” e a “certidão dos desentendimentos”. No primeiro caso assumiram-se os apelidados de defensores do estado de direito ( Constitucionalistas ), os verdadeiros revolucionários , no segundo caso levantaram-se os recuperadores situacionistas ( Cartistas ) sendo que estes, mais conservadores, teriam em mente a tarefa de recuperar privilégios perdidos. Foi na peugada destes últimos que, em confrontação anti-revolucionária, surgiu em Portugal a tentativa de restauro da Monarquia Absoluta – que o mesmo é dizer do Antigo Regime – o qual provocou no país uma das mais lamentáveis guerras fraticidas de que há memória.
A Constituição de 1822 era considerada demasiadamente radical, mesmo num contexto europeu, profundamente laicista oponente aos mega- privilégios do Clero e de certa classe nobiliárquica, que pretendia reabilitar-se e valorizar-se. Daí que, após debates ideológicos acesos e constantes, se tenha chegado à aprovação da Carta Constitucional de 1826. Esta resultou até certo ponto numa maior harmonização da vida do país a partir da existência de um poder moderador, na pessoa do rei, evitando o que se temia : a hegemonia do poder legislativo detido, no fundo, pelos parlamentares demagogos. Nesta concepção, a Carta deu à Coroa Portuguesa o papel arbitral de moderação e equilíbrio que necessitava, tendo introduzido mesmo um novo organismo – a Câmara Alta, uma espécie de Senado à americana – onde passam a ter assento altos aristocratas e alguns dignatários do Clero. Esta solução ter-se-á devido à acção diplomática e inteligente do Príncipe D.Pedro de Bragança.
Apesar de tudo esta engenharia legislativa não foi suficiente. As guerras entre defensores e detractores do Novo Regime não permitiram a consolidação da administração do Regime. Só com a vitória definitiva do Liberalismo, em 1834, mais uma vez obtida com a contribuição do mesmo Vate, é que foi possível haver lugar a uma estabilização. É evidente que, na aplicação das leis advindas do espírito constitucionalista – exemplo disso foi a legislação de Mouzinho da Silveira – nunca foi possível assistir-se a consensos no que diz respeito às reformas implementadas. Ora eram os aristocratas conservadores que não concordavam com os privilégios perdidos, como sejam as isenções de impostos e pagamentos ao Estado de alcavalas consideradas ofensivas, ora era o próprio clero que se sentia demasiadamente atingido na confiscação de certas terras e de imóveis devolutos, ora eram os comerciantes requisitando compensações pela perda dos lucros que auferiam oriundos do Brasil, facto este que colidia com os interesses manifestos dos terratenentes da metrópole e, por tabela as reivindicações justas dos detentores de mão-de-obra da nação que começavam a olhar para a sua situação de não-referência nos documentos legais e as próprias classes castrenses que puxavam a si os lauréis das vitórias que deram consistência ao Regime.
É no contexto anteriormente descrito que surge um movimento revolucionário novo, a revolução setembrista, que vai tentar, na sua génese, dar corpo à reafirmação das classes desfavorecidas da nação procurando travar até certo ponto os avanços incomportáveis dos maiorais conservadores, quer aristocráticos como clérigos. Nasce assim mais um arroubo constitucional que, sendo em si radical, foi talvez o condimento essencial para que o ideário liberal dos governantes do Novo Regime se manifestasse plenamente. Basta aqui como argumento o desvio das atenções do Brasil ( que perdêramos ) para a África – projecto e aposta do grande Sá da Bandeira. Desse projecto emerge com toda a dignidade o que poderíamos classificar como a liberalismo vital. Trata-se nada mais nada menos que a consagração na lei da libertação da escravatura.
Sendo assim, diremos para concluir este ensaio, que o Constitucionalismo em Portugal, tal como acontecera em Espanha, sofreu variações e alternâncias, que todavia constituíram no seu devir uma complementaridade na estruturação jurídica fundamental a qual na sua natureza própria ( no seu espírito ) se foi aperfeiçoando e tomando lugar de prestígio no concerto da jurisprudência europeia.
Lisboa, 9 de Janeiro de 2005