A MORTE E SUAS VERTENTES EM A VARANDA DO FRANGIPANI, DE MIA COUTO

Paloma Machado

Filho de portugueses que emigraram a Moçambique em meados do século XX, Mia Couto nasceu e foi escolarizado na Beira. Com catorze anos de idade, teve alguns poemas publicados no jornal Notícias da Beira e três anos depois, em 1971, mudou-se para a cidade capital de Lourenço Marques (agora Maputo). Iniciou os estudos universitários em medicina, mas abandonou esta área no princípio do terceiro ano, passando a exercer a profissão de jornalista depois do 25 de Abril de 1974. Trabalhou na Tribuna até à destruição das suas instalações em Setembro de 1975, por colonos que se opunham à independência. Foi nomeado diretor da Agência de Informação de Moçambique (AIM) e formou ligações de correspondentes entre as províncias moçambicanas durante o tempo da guerra de libertação. A seguir trabalhou como diretor da revista Tempo até 1981 e continuou a carreira no jornal Notícias até 1985. Em 1983, publicou o seu primeiro livro de poesia, Raiz de Orvalho, que inclui poemas contra a propaganda marxista militante. Dois anos depois, demitiu-se da posição de diretor para continuar os estudos universitários na área de biologia.

Além de ser considerado um dos escritores mais importantes de Moçambique, é o escritor moçambicano mais traduzido. Em muitas das suas obras, Mia Couto tenta recriar a língua portuguesa com uma influência moçambicana, utilizando o léxico de várias regiões do país e produzindo um novo modelo de narrativa africana. Terra Sonâmbula, o seu primeiro romance, publicado em 1992, ganhou o Prêmio Nacional de Ficção da Associação dos Escritores Moçambicanos em 1995 e foi considerado um dos doze melhores livros africanos do século XX por um júri criado pela Feira do Livro do Zimbabué. Em 2007, foi entrevistado pela revista Isto É. Foi fundador de uma empresa de estudos ambientais da qual é colaborador.

Muitos dos livros de Mia Couto são publicados em mais de 22 países e traduzidos em alemão, francês, espanhol, catalão, inglês e italiano. Estreou-se no prelo com um livro de poesia, Raiz de Orvalho, publicado em 1983. Mas já antes tinha sido antologiado por outro dos grandes poetas moçambicanos, Orlando Mendes (outro biólogo), em 1980, numa edição do Instituto Nacional do Livro e do Disco, resultante duma palestra na Organização Nacional dos Jornalistas (atual Sindicato), intitulada "Sobre Literatura Moçambicana". Em 1999, a Editorial Caminho (que publica as obras de Couto em Portugal) relançou Raiz de Orvalho e outros poemas que teve sua 3ª edição em 2001.

Nos meados dos anos 80, Couto estreou-se nos contos e numa nova maneira de falar - ou "falinventar" - português, que continua a ser o seu "ex-libris". Nesta categoria de contos publicou:Vozes Anoitecidas (1ª ed. da Associação dos Escritores Moçambicanos, em 1986; 1ª ed. Caminho, em 1987; 8ª ed. em 2006; Grande Prêmio da Ficção Narrativa em 1990, ex aequo), Cada Homem é uma Raça (1ª ed. da Caminho em 1990; 9ª ed., 2005) Estórias Abensonhadas (1ª ed. da Caminho, em 1994; 7ª ed. em 2003), entre outros.

Para além disso, publicou em livros algumas das suas crônicas, que continuam a ser coluna num dos semanários publicados em Maputo, capital de Moçambique: Cronicando (1ª ed. em 1988; 1ª ed. da Caminho em 1991; 7ª ed. em 2003; Prêmio Nacional de Jornalismo Areosa Pena, em 1989), O País do Queixa Andar (2003), entre outros.

Também escreveu romances, tendo publicado: Terra Sonâmbula (1ª ed. da Caminho em 1992; 8ª ed. em 2004; Prêmio Nacional de Ficção da Associação dos Escritores Moçambicanos em 1995; considerado por um júri na Feira Internacional do Zimbabwe um dos doze melhores livros africanos do século XX), A Varanda do Frangipani (1ª ed. da Caminho em 1996; 7ª ed. em 2003), Mar Me Quer (1ª ed. Parque EXPO/NJIRA em 1998, como contribuição para o pavilhão de Moçambique na Exposição Mundial EXPO '98 em Lisboa; 1ª ed. da Caminho em 2000; 8ª ed. em 2004), entre outros. A contribuição de Mia Couto com os romances é notável.

Mia Couto é sócio correspondente, eleito em 1998, da Academia Brasileira de Letras, sendo sexto ocupante da cadeira 5, que tem por patrono Dom Francisco de Sousa.

O universo moçambicano, marcado pela guerra, mas também pela construção do país, pela busca da identidade étnica, linguística e cultural do povo, está no centro das narrativas de Mia Couto. Uma das características de sua prosa é a recriação literária dos falares populares, traço comum a Guimarães Rosa, de quem o escritor reconhece a influência. Trabalhar com a oralidade significa recuperar a dignidade das línguas tradicionais que se combinaram com o português herdado do colonizador.

Depois da Independência de Portugal, em 1975, Moçambique enfrentou quase duas décadas de conflitos. O período foi marcado pela oposição entre os antigos guerrilheiros anticolonialistas da Frelimo (que tomaram o poder e tentaram implantar o socialismo no país) e o grupo de orientação conservadora Renamo (alinhado à Rodésia e África do Sul). A história de 'A varanda de frangipani' se passa vinte anos após a Independência, depois dos acordos de paz de 1992. O romance é narrado pelo carpinteiro Ermelindo Mucanga, que morreu às vésperas da Independência, quando trabalhava nas obras de restauro da Fortaleza de S. Nicolau. Ele é um 'xipoco', um fantasma que vive numa cova sob a árvore de frangipani na varanda da fortaleza colonial. As autoridades do país querem transformar Mucanga em herói nacional, mas ele pretende morrer. Para tanto, precisa 'remorrer'. Então, seguindo o conselho de seu pangolim, encarna no inspetor de polícia Izidine Naíta, que está a caminho de Fortaleza para investigar a morte do diretor. Mais de vinte anos depois da independência de Moçambique, quando a guerra civil já arrefeceu, a Fortaleza é um lugar em que convergem memórias, heranças e contradições de um país novo e ao mesmo tempo profundamente ligado às tradições e aos mitos ancestrais. De sua varanda, se pode enxergar o horizonte. O romance de Mia Couto esboça, assim, uma saída utópica para um país em reconstrução.

A nossa análise irá explorar os diferentes tipos de mortes que são decorrentes na obra A Varanda do Franjipani, de Mia Couto. A citada obra pode ter várias interpretações, mas essa análise trata das vertentes da morte, ou seja, as várias formas de manifestação da morte, que são: a morte biológica e fisiológica, a morte do ser e a morte dos sonhos. A morte é um tema bem recorrente na obra, Mia couto inicia o livro com a fala de um morto:

"Sou morto. Se eu tivesse cruz ou mármore neles estaria escrito: Ermelindo Mucanga. Mas eu faleci junto com o meu nome faz quase duas décadas. Durante anos fui um vivo de patente, gente de autorizada raça. Se vivi com direiteza, desglorifiquei-me foi no falecimento. Me faltou cerimónia e tradição quando me enterraram". (p. 9)

A temática da morte presente em nossa análise pode ser comparada com a guerra ocorrida em Moçambique. Como foi dito anteriormente a obra descreve um país em adaptação pós-guerra. Vale ressaltar que as personagens também se encontram em adaptação pós-guerra, mesmo estando “separadas” do país, pois estão asilados dentro de um forte, de São Nicolau.

Começaremos abordando a “morte do ser”, essa morte é caracterizada por o indivíduo não conseguir mais se afirmar dentro de uma sociedade em que vive ou pertence. Esse tipo de morte pode ser ilustrada com os asilados que residem no forte, todos eles não encontram mais lugar do lado da família e/ou da sociedade, por conta disso vão para o asilo.

O asilo fica localizado em um local distante e de difícil acesso e essa distância é uma forma de morte por parte dos asilados. Eles não recebem visitas e não tem contato com familiares ou amigos. Para a sociedade fora da fortaleza os velhos asilados estão mortos, não existem. Nesse ponto os velhos sobrevivem apenas como parte do copo, como parte de uma automatização do homem, o homem vive em função dos extintos. Os velhinhos sobrevivem por conta de poucas lembranças e pelas funções vitais do corpo. Podemos perceber em:

"Quando cheguei aqui ao asilo entendi que esta era minha ultima e definitiva residência. Fiquei derreado, durante dias e dias nem pus dente em côdea. Padeci tais fomes que só não morri porque a morte não me encontrou, tão magro que estava. Nessa altura, fiz pacto com a coruja e recebi migalhas das suas réstias. Depois, muito depois, uma notícia me trouxe esperança". (p.32)

No trecho acima Navaia Caetano já sabe que o asilo será a sua última residência, ele se dá conta que não terá outro lugar para ir, ele não tem outro objetivo e sabe disso. O trecho da obra citada nos mostra que Navaia já esta conformado com sua “morte em vida”, para ele não há mais vida além do asilo, o que resta para Navaia é apenas esperar para que a morte biológica chegue e se efetive.

Todos os asilados do forte de São Nicolau compartilham da mesma morte. O futuro para os asilados é apenas um, a morte carnal, a morte do corpo, pois a morte do ser já esta completa, o ser perante a sociedade morreu. Os velhos são negligenciados e esquecidos, como se fossem mortos.

Outra morte que pode ser estudada e analisada na obra de Mia Couto é a morte biologia e fisiologia, a morte do corpo. Essa morte é bem conhecida nossa e esta presente em vários momentos da narrativa. Um bom exemplo para ilustrar é a morte de Vasto Excelêncio e de Emerlindo. Mesmo que os corpos não apareçam diretamente, eles morreram. Emerlindo já esta um bom tempo morto, o que narra é o espírito de Emerlindo e no caso de Vasto Excelêncio a sua morte vai ser investigada pelo policial Izidine Naíta:

"Este homem que estou ocupando é um tal Izidine Naíta, inspector da polícia. Sua profissão é avizinhada aos cães: fareja culpa onde cai sangue. Estou num canto de sua alma, espreto-lhe com cuidado para não atrapalhar os dentro dele". (p.19)

No trecho acima percebemos duas coisa, a primeira é que Emerlindo já esta morto, em forma de espírito e habita o corpo do policial Izidine e a segunda é que ela foi designado para esclarecer a morte do diretor do asilo, Vasto Excelêncio. As duas mortes aqui, tanto a de Emerlindo como a do Vasto Excelêncio são mortes do corpo, veja que Emerlindo ainda esta “vivo” em espírito e que o espírito do mesmo é capaz de adentrar o corpo de outra pessoa.

Temos também a morte dos sonhos, outra morte que pode ser observada, é analisada a partir das duas personagens femininas da obra, Marta e Ernestina. As duas perdem simbolicamente os seus sonhos, a primeira quando vê a sua enfermaria queimada e a segunda quando perde o filho.

A morte dos sonhos, que também pode ser interpretada como morte dos objetivos ou realizações, é a morte que tira da personagem a possibilidade de viver plenamente, de se completar como pessoa. As duas perdem os seus sonhos e passam a viver a vida automaticamente. A morte dos sonhos deixa as personagens estáticas, em um torpor com relação à vida que esta acontecendo:

"O meu único filho morreu à nascença, nunca mais pude ter filhos. Quando aconteceu o desfortúnio eu estava separada de Vasto. Pensava que seria definitiva essa separação. Vasto tinha sido destacado para dirigir o asilo de São Nicolau. Eu recusei acompanhá-lo. A nossa relação tinha-se gasto, eu me esgotava em sucessivas desilusões. Mas a morte de meu filho me deixou frágil, desamparada". (p. 103)

Na passagem Ernestina relata a dor de ter perdido o filho. Ela mostra que o ocorrido a deixou frágil e sem muita perspectiva e por esta razão ela resolveu voltar para Vasto Excelêncio, ação essa que anteriormente não era cogitada por Tina.

No caso de Marta os seus sonhos morrem quando a mesma perde seu local de trabalho, a enfermaria: “Vê aquele edifício, além, todo em ruínas? Aquilo já foi uma enfermaria. Era ali que eu trabalhava” . Marta sentia-se sem vida, sem ter porque seguir:

"Mas os helicópteros militares que iam e vinham não tinham disponibilidade. Havia outras prioridades, me respondia Vasto Excelêncio. Perdi essa possibilidade de me reiventar. Resonstruíndo a enfermaria eu muito me teria refeito. Sem o centro e sem medicamentos eu me privei dos motivos de viver. Não pode imaginar como me era imprescindível o trabalho na enfermaria. Aquele era o meu hospitalinho, ali eu me exercia a bondades. Deve compreender: eu fui educada com uma assimilada". (p. 123)

Marta ficou sem o hospital e consequetemente perdeu a vontade de viver. O trabalho no hospital deixava a enfermeira alegre e satisfeita. Mas quando o hospital queima e o que resta são apenas ruínas Marta sente-se desolada o sonho e objetivo dela estão mortos.

Os sonhos de Marta e Ernestina não mais existem, elas se vêm em um mundo sem os sonhos, sem os objetivos, isto, de certa forma, acaba matando um pouco as personagens. Elas perdem a “força motriz” de suas vidas e acabam vivento “automaticamente”, como os asilados da fortaleza de São Nicolau.

Todas essas mortes podem ser relacionadas com a guerra. Sabemos que o contexto histórico que “circula” a obra é pós-guerra, nesse sentindo, Mia Couto transmite para a obra todos os males que uma guerra deixa, as feridas que demoram cicatrizar. O autor preocupou-se com essa guerra que poderia ser evitada se existisse o respeito e a valorização das diferenças.

Temos várias formas de morte presente em A Varanda do Frangipani, essas mortes podem ser reflexo da guerra. O rastro que a guerra deixa é exatamente esse; os sonhos acabam, algumas pessoas não conseguem mais se afirmarem diante da sociedade e muita mortes.

Referências:

COUTO, Mia. A Varanda do Frangipani. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

PalomaMachado
Enviado por PalomaMachado em 24/06/2011
Código do texto: T3055262
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