A Preponderância da Verdade
"Nada tenho contra o Cristo, apenas contra os seus sacerdotes, que chamam a Grande Deusa de demônio e negam o seu poder no mundo. Alegam que, no máximo, esse seu poder foi o de Satã. Ou vestem-na com o manto azul da Senhora de Nazaré?"
Marion Zimmer Bradley, As Brumas de Avalon
Remontando ao século V, onde se deu a derrocada definitiva da tradição druídica e do culto à Deusa na Bretanha, o livro citado fixa seus pés na intolerância religiosa dos padres da Igreja que, afastando-se do espírito de simplicidade e amizade impetrado por José de Arimatéia, em Glastonburry, foram capazes de dizimar qualquer verdade que não a sua. E de fato, a Deusa, sangrando, sumiu, junto com a temporalidade de Avalon.
Mas de onde vem essa vontade insana de tomar a verdade alheia, rasgá-la e lançá-la aos porcos, como pedaços de um pão emborolado e imprestável?
Certamente tal desejo não é privilégio dos religiosos, embora a História comprove que as loucuras da fé foram capazes de destruir divindades, crenças milenares, sonhos, ou mesmo pessoas, ou ainda populações inteiras, que simplesmente tornaram-se meros objetos de estudo dos historiadores, e de oportunistas quais, vez em vez, reinventam seitas seculares, ressuscitando símbolos e ritos, e não perdendo a oportunidade de dizer que Jesus, em seus tempos de juventude, viajou até aquele templo para aprender com seus Mestres, destruídos ingratamente depois pela própria Igreja de Constantino.
Não quero me ater nos exemplos, pois o mundo que temos hoje é auto-explicativo. A começar pelas milhões de páginas, publicadas todo ano, pelas diversas igrejas, que se resumem a ser um manual de anti-ideologias aos seus fiéis. Passo a passo, os livros (que têm títulos interessantes e sempre muito enfáticos, como "Desmistificando o Alcorão", "Por que o kardecismo está errado?", "Os segredos da Maçonaria") preocupam-se muito mais em tratar da fé alheia que da própria. Arrisco-me a dizer que isso é mera falta do que fazer. Ou seria prepotência? Afinal, as pessoas se permitem criticar e questionar a crença alheia, mas não a própria.
Talvez pelo medo de, ao morrer, confrontar-se com um Deus revolto (aliás, a Bíblia tem a reprovável mania de enxergar Deus de maneira autoritária), berrando em tom de reprovação: "Então, duvidaste de mim? Pro inferno, já!". Ou talvez por medo de vencer seus próprios conceitos, e renová-los, exatamente com o sentido da Páscoa: de renascença, seja no sentido sacro de Cristo, seja no sentido profano da Fênix.
A bola da vez parecem ser os muçulmanos. Eles são, seguramente, o povo que mais sofreu ao longo dos últimos séculos. Agora encontram-se no centro da linha de fogo dos Norte-Americanos e Israelenses, mas foram, no passado, alvos de vários outros povos, como os diversos da Europa. Mas a investida ianque vem revestida pela sua enorme competência em ocidentalizar o mundo, em impor sua violência e sua cultura, em transformar a fé em Deus em fé ao Capitalismo feroz.
Tenho pena das almas daqueles que impuseram ao mundo essa unilateralidade religiosa tão pretensiosa e triste. Que tomaram dos índios seu direito de crer que seus guerreiros tornavam-se estrelas, e que Sol e Lua eram deuses; que tiraram dos povos bretãos o direito de ter sua fé simples, pela sua agricultura, pelas estações, pela fertilidade, pelo seio da Terra; que roubaram a fé dos Maias, como seu ouro e sua própria existência.
Mais: tenho pena (e aí também entram orgulho e profundo respeito) daqueles que pagaram com a vida pelo que acreditaram. Sim: nesse ponto, incluo os mártires cristãos, que foram muitos (e que tenham sua santidade reconhecida), mas não posso deixar de incluir Joanna D'Arc, Giordanno Bruno, e tantos, tantos outros que tiveram sua morte decretada em função do que criam.
E tenho pena de mim... por não ter coragem de dar a vida pelo que acredito. Aliás... por nem saber direito se acredito em mim mesmo.