O nome dessa menina é Resiliência

Dia desses percebi que uma menina habita dentro de mim. Sou mulher madura, mas demorei um tanto de vida para me dar conta da sua existência. Fui chegando de mansinho, para não assustar, pois acho que nem eu nem ela agüentaríamos um encontro de chofre. Ela estava lá, sempre esteve, escondida no canto mais recôndito do meu SER, impenetrável sob a dureza do reboco do tempo. Seu nome: Resiliência.

Sou filha de descendentes de imigrantes ucranianos. Meus ancestrais precisaram ter a coragem de fugir do seu país natal, da guerra, da fome, da opressão e da miséria para, simplesmente, vislumbrar a possibilidade de viver. Nasci sob essa energia e a luta pela sobrevivência plasmou o meu espírito, mesmo que desse lado do mundo não fosse tão difícil sobreviver. Não fui criada sob a égide dos diálogos e afagos, mas sob a batuta do dever, da disciplina e da responsabilidade.

Desde cedo aprendi, sozinha, a entrar em contato e a olhar de frente para os meus medos, inseguranças e incertezas. Conhecendo a mim mesma, fui me apoderando dos meus recursos internos para administrar as dificuldades da vida.

Cresci e me tornei adulta, meio avessa aos carinhos e elogios, porque tais coisas simplesmente não fizeram parte da minha cartilha de viver. Infelizmente não aprendi a arte de permitir a fluência dos sentimentos através do espírito. O que aprendi, desde cedo, em casa e na escola, foi escondê-los no fundo da alma, para não ser tachada de louca ou fraca.

Fui talhada para a labuta e o combate. As dificuldades e o sofrimento não me paralisaram. Muito pelo contrário, impulsionaram-me para frente. Desenvolvi a capacidade de me centrar e, com isso, enfrentar as tribulações, restaurando-me por completo (outras vezes, nem tanto) e saindo fortalecida, com um pouco mais de sabedoria para os enfrentamentos futuros.

A escola da vida, onde senta e aprende quem quiser, ensinou-me a ver na adversidade uma oportunidade de crescimento e de me tornar uma pessoa melhor. Foi com base nessa premissa que eu consegui passar por várias tormentas e seguir adiante. Morte repentina de um ente muito querido, depressão, vontade de morrer, câncer durante a gestação do meu segundo filho. MORTE E VIDA. Mutilação física, estresse pós-traumático e dor, muita dor, física e emocional. Limitações físicas e seqüelas de cirurgias. Crise de identidade profissional. Câncer de novo. Outro seio extirpado em nova mastectomia. Menopausa cirúrgica precoce para controle do câncer, doenças graves na família e crise conjugal. Tudo isso permeou a minha vida ao longo desses anos. Muitas vezes desci ao mais profundo poço da existência humana. Muitas vezes tive que recomeçar, adaptando-me às novas circunstâncias.

O tempo passou e cheguei à meia-idade. Que maravilha! Não escondo a minha idade, nem os meus incipientes cabelos brancos ou as rugas que começam a vincar o meu rosto. São as marcas da minha trajetória, do tempo em que eu estou na estrada. Elas me mostram a grandeza do que eu já conquistei. Sou andarilha. Vivo pelos caminhos da vida, em busca de mim mesma. Nesse eterno avançar, permito-me olhar para trás e me deparar com os meus próprios erros. Também olho para a frente e estabeleço o que quero e o que não quero mais na minha vida.

Nessa trajetória, não sem nenhuma dor, fui me descobrindo e removendo camadas embrutecidas e calcificadas da minha alma, abandonando-as na beira da estrada. Elas não me servem mais. Estou em movimento. Eu sou vida em movimento.

Permito que os sentimentos fluam através de mim e não fiquem mais aprisionados em uma barreira interna, transformando-se em alguma patologia (física ou emocional) perigosa. Isso é totalmente novo e inusitado. Estou aprendendo ainda. A minha família tem me ensinado isso e é nas dificuldades do dia-a-dia que eu faço essa constatação.

Foi assim que eu me deparei com um sentimento ainda da infância, de falta de afeto, de abandono e de solidão, que ficou trancafiado por muitos anos dentro de mim. Liberto esses eflúvios infantis nocivos e nesse movimento encontro a “menina trancafiada”. Permito que ela saia e se manifeste. Fico meio desconfortável no início, mas busco integrar esses sentimentos tão sutis, para que eles não fiquem dispersos no mosaico multifacetado das impressões banais.

Vislumbro a ambivalência dos meus sentimentos. Os mesmos fatores que enrijeceram a minha personalidade possibilitaram a minha sobrevivência, proporcionando-me meios para enfrentar as vicissitudes da vida.

Reconheço que não posso (e nem devo) simplesmente abandonar as características que pautaram a minha vida até hoje. Elas forjaram o meu caráter, trazendo-me base e sustentação. Posso e devo, entretanto, ser mais maleável e permeável, permitindo-me sentir, chorar, alegrar-me ou me entristecer, enfim, SER HUMANA.

O meu ser se abre cada vez mais para a vida. Estendo as mãos para a “menina” e caminhamos juntas, lado a lado. Podemos até brincar de roda. Ela não precisa mais ficar trancafiada. Quando eu preciso dela, nos momentos de tribulação, superação, dor ou sofrimento, convido-a para celebrar a vida e ela, de bom grado, posta-se ao meu lado e me ajuda a seguir em frente na estrada da vida.