Fora das Correntes, Ondas e Sintonias
Cá estava o menino, deitado na cama de seu pequeno palacete. Matutando, ouvia distante o som das pessoas lá fora. Tinha muito dinheiro, amigos, uma família importante,estudava na melhor escola e até tinha carro próprio,mesmo não podendo dirigir. Mas aquilo tudo lhe enfurnava. De certo modo,ele estava preso à certas obrigações impostas pela sua posição social,desde tomar café em uma mesa farta todos os dias até de ir nas aulas de latim,piano e etc.Mesmo quando não queria que houvesse festa ou barulho por perto,sua constante de eventos não podia ser reduzida,muito menos o número de convidados,já que isso deixaria má aquela reputação construída por seu status e ostento involuntário (ou por vezes,de boa vontade)...
Em sua cama, barras de chocolate, roupas e um maço de cigarros, o primeiro. Havia algum tempo que esses costumes ínvios e sensacionalistas lhe pressionavam a mente, fazendo ele sentir seus pensamentos num rio de lava e num bosque de escárnio. As futilidades, os excessos, as atitudes sem fundamento, por puro prazer pessoal ou rebeldia, aquilo tudo estava lhe empapuçando escandalosamente, sem deixar brecha para o seu comando diário. Batidas na porta lhe chamavam para a festa,uma hora enrolada por sussurros de espera,enviados de uma boca morta pela invalidez do cérebro.Em um pulo, vestiu a primeira roupa que encontrou e saiu do quarto. À sua espera, uma linda garota sorridente, de cabelos loiros e olhos azuis, beijou-lhe na boca, e ele apenas respondeu automaticamente, sem estar presente na cena.Passando por ela, desceu pelas escadas. Seus amigos brincavam na fonte do saguão, encharcando todo o tapete, com bebidas na mão e com algumas garotas, uma pequena zona de luxúria, todos com seus cigarros na boca, alguns tossindo ou tentando fumar naquele aguaceiro, por pura pose.
Ignorando os chamados, ele passou pela entrada principal e viu-se no belo jardim da casa, onde agora estava sujo por latas e garrafas e onde um bando de estúpidos jovens rolava na grama, dançavam ao som de um toque repetitivo e tomavam suas drogas, entrando em falso êxtase. Aquela cena veio à tona, mostrando como tudo aquilo era deprimente, ignorante, nefelibatas por exclusividade ou para todo o sempre, tudo ficou muito doentio. Uma fácil estratégia iluminou sua mente perturbada: o suicídio. Olhou para todos os lados, para o céu azul e estatelado pelo sol, para as pessoas se esbaldando sob a grama e então,para a floresta que cercava seu palacete. Lá, enxergou então um velho de barba longa grisalha, vestido em um manto negro com um capuz que lhe cobria a cabeça. Por uma hipnose insuperável, o garoto foi andando até o velho, que encarava este indiferente de sua atração e atitude. O velho andava através do bosque e o garoto atrás, esquecendo de todas suas lembranças, juvenílias sobre lugares belos e de felicidade eterna rebocaram seu pensamento junto aos passos que o conduzia. Foram chegando então à outra mansão, uma tão bela quanto a sua, porém mais verde, mais surreal, estranhamente encantadora. Pássaros entoavam estranhos cantos nas portas, a escadaria fazia o garoto flutuar até a porta de entrada, grande e verde.O velho fez um breve gesto que fizeram as portas abrir.
O saguão era místico, tomado por uma luz verde caótica, que fazia almas e sonhos esboçarem silhuetas aleatoriamente por todo o espaço, de modo que o garoto se viu no tão comentado paraíso. No topo das escadarias principais, havia um quadro, retratando um rio retangular, que seguia numa vala de concreto,com calçadas medievais ladeadas por um bosque, até o infinito, ou talvez o morro que estava lá no fundo, discreto.O quadro era rústico, com a tinta ameaçando a descascar,toda rachada, sem ditames de como aprecia-lo. Apesar de sua simplicidade, ele parecia estar se movimentando tetricamente, como uma esteira, aquele rio verde de folhas virgens de outono, quase chegando ao seu fim.
Então, quando o velho atravessou o quadro e desapareceu, o garoto apenas lhe seguiu, atravessando a tela ,cascateando. Surgiu em uma margem do rio, onde o ambiente parecia ser de tinta ainda, e ele a única figura real da situação. Escorregou pelo declive até o rio e sentou sobre uma tinta estável, que o levava pelo canal sem deixá-lo afundar. Assim,ele foi escorregando por aquele mundo vazio e surreal, onde a água fazia guturais barulhos,estranhos como aquele lugar. De tempos em tempos,ele chegava aos cruzamentos, onde por vezes desviava ou continuava naquela rota eterna. O céu de tinta desbotado não mostrava mudança de tempo nem mostrava sua passagem. Pela primeira vez na vida, o garoto sentiu-se livre, não precisava cumprir obrigações ou tomar atitudes para que o caminhar social não desandasse, ele gritava palavrões, rasgava sua camisa, delirava feito criança. Por ser um mundo tão vazio e imutável, ele sentiu que pela primeira vez ele fez a diferença não pelo seu dinheiro ou por quem era ou de quem era filho, mas pela sua simples presença.
Logo, parou em uma margem do rio, escalando ela com as mãos, sentindo a textura estranha do solo. Era fria, esfoliada, com alguns ciscos de terra. Chegou a um amplo espaço, a entrada de um bosque de árvores. Sem hesitar, entrou no corredor de árvores, que parecia levar às colossais montanhas em uma distância que jamais chegaria, pois esta estava lá, como fundo do cenário, imutável, imperturbável. Chegou então há uma orla, onde belas moças haviam sido pintadas pelo criador deste belo mundo, todas esculturais, perfeitas aos conceitos de nosso mundo e da visão do bom apreciador. Sem pensar muito, o garoto despiu de roupas e começou uma orgia furiosa com as mulheres, um furor do prazer sexual escondido na casca do homem carnal. O céu ganhou um tom roxo, às árvores todas desapareceram, uma capela apareceu diante dos participantes do ato, mas este era um momento só do puro prazer.
Ao cume do êxtase, quase que graciosamente as belas donzelas desapareceram, deixando aquele homem à beira da loucura, nu, esperneando no chão, como uma criança sem seu doce. E lá estava o belo rio, e uma velha capela, e também uma árvore muito antiga. Na beira dele, uma figura preta pescando, com um manto preto e um chapéu da mesma cor, ocultando seu rosto. Envergonhado, mas um pouco mais livre das atenções da Terra, o garoto se sentiu a vontade para se juntar ao velho e observar a pescaria. Foi então que ele viu que o pescador tinha no lugar de uma cabeça um crânio muito vivo. Este deu as saudações, que fez o pobre garoto se sobressaltar de susto. Agora, antes que seja tarde, continuarei esta minuciosa estória um pouco mais adiante.