O dilema do mandarim
Um dos últimos livros do escritor português Eça de Queiroz, O Mandarim (1880), tem como enredo uma história de cunho fantástica. Theodoro, um típico funcionário público que mora em uma pensão e tem uma vida pouco emocionante, certa noite, ao ler um livro qualquer encontra esta proposta:
«No fundo da China existe um Mandarim mais rico que todos os reis de que a Fabula ou a Historia contam. D'elle nada conheces, nem o nome, nem o semblante, nem a sêda de que se veste. Para que tu herdes os seus cabedaes infindaveis, basta que toques essa campainha, posta a teu lado, sobre um livro. Elle soltará apenas um suspiro, n'esses confins da Mongolia. Será então um cadaver: e tu verás a teus pés mais ouro do que póde sonhar a ambição d'um avaro. Tu, que me lês e és um homem mortal, tocarás tu a campainha?»
O que esse trecho propôe, basicamente, é que Theodoro sacrifique a vida de um homem, o qual ele não conhece, em nome de um mundo diferente para si. E de forma limpa: basta tocar a campainha. A mesma premissa encontramos no filme A Caixa (2009), do diretor Richard Kelly. Um homem misterioso (Mefistóteles?) surge com a solução para os endividamentos de uma família de classe média norte-americana: uma caixa. Basta apertar seu botão e essa família ganhará mais dinheiro, ás custas de vidas desconhecidas tiradas aleatoriamente pela caixa.
A ficção, mais uma vez, pega a vida real de jeito: o que querem dizer com essa proposta indecente o escritor portugues e o diretor norte-americano? A vida é feita de escolhas e, quando fazemos as nossas, será que distinguimos o que é fácil do que é correto? Ora, é muito fácil conseguirmos dinheiro e luxo com uma simples campainha ou um botão. Se uma vida que desconheço será perdida é lamentável, mas o fato de mal conhecê-la alivia a dor de tirá-la e com isso a escolha torna-se muito fácil. Mas e essa pessoa que você tirou a vida? E se ela fosse como você? E se você fosse ela?
Esse dilema do mandarim está muito longe de ser algo fora de nosso dia-a-dia. Afinal, quantas vezes no decorrer de nossa vida somos forçados a tomar decisões parecidas e, na maior parte das vezes, prevalece o mais cômodo. O dilema do mandarim, portanto, leva ao extremo esta situação corriqueira para nos fazer refletir.
Existe um campo na filosofia própria para esse tipo de reflexão chamado Ética, que se divide em dois aspectos: um mais geral, dedicado a discutir os conceitos de Bem e Mal, e outro mais próximo das ações cotidianas, que abrange os vários dilemas morais que enfretamos em nossa vida.
É costume nosso criticar a "falta de ética" nos políticos, mas o exame de consciência sobre a nossa ética é quase sempre adiado ou justificado pela necessidade de sobreviver. Quando alguém tem de sobreviver, pouco importa o que acontecerá com o próximo. No entanto, nem tudo é permitido e nem sempre isso é verdade - na maior parte das vezes, se torna uma desculpa, uma desculpa para mascarar o que é conveniente.
Atender ás suas próprias exigências nem sempre significa respeitar a vida das outras pessoas. Pense num homem que estaciona na vaga de um deficiente só porque é mais fácil que procurar um estacionamento. O que acontecerá com esse deficiente não passa na cabeça desse indivíduo. A corrupção e a violência são duas formas, as mais marcantes, de desrepeito ao outro, mas nos esquecemos dessa forma, talvez porque estejamos imersos nela ou porque simplesmente não queremos pensar nisso.
O primeiro passo para superarmos essa situação de desrespeito ao outro, seja ele quem for, é percebemos que nossas escolhas afetam outras pessoas e um meio para se chegar á isso é a interrogação: uma vida alheia vale a pena em nome do meu conforto? Jogar lixo na rua ou nos rios é mais cômodo, mas não vai acarretar problemas para mim ou mesmo para meus filhos? Desviar recursos de uma escola vai me deixar mais rico, mas também írá roubar um destino melhor de muitas crianças, o que pode gerar miséria e criminalidade. Será que um dia as consequências desse meu ato não voltarão para mim ou para as pessoas com quem me importo? O dilema do mandarim está aí, cabe a nós escolhermos. Tocarás tu a campainha?