O Anjo Solitário
"-Pequeno experimento do desenvolvimento de uma história em livro-"
(Antes de o sol despontar onde o mar beija o céu, um cheiro de gravetos incinerados misturava-se a maresia no amanhecer cotidiano na fronteira solitária entre o norte e o sul na linha do equador.
Sinhá Maria, a paisagem viva de todas as manhãs, tomara seu ralo café, com biju e em vestido de chita, e braços queimados de sol, sulca a areia branca com seus antigos pés, e depois da curvatura da praia, desaparece, engolida pelo horizonte amanhecido e quente.
Para quem viaja o pensamento, depois do leve aclive, mordiscado pela maré alta, que já retrocede, poderá ver ali mais adiante, a silhueta de Sinhá Maria ir fazer parte da aquarela verde e cinza do mangue, num místico e repetitivo ato diário, afinal é seu sagrado trabalho.
As mãos antigas e angelicais mergulham mais uma vez no desconhecido interior do lodo, e trazem entre os dedos, o alimento em forma de caranguejo, e outra e outra vez, e como se seu corpo padecesse de necessidades destrutivas, ela procura na distorcida
paisagem do mangue um lugar para sentar, e em raízes salientes e também antigas risca seu isqueiro a querosene e acende a palha recheada de morte de seu cigarro, e repete 4 vezes de manhã e 5 a tarde, depois de cada golpe em sua frágil vida, extasiada e satisfeita planta-se no oráculo barrento e pede aos céus, animais, animais, naqueles buracos onde a sorte espera suas antigas mãos.
Ao meio dia puxa de seu bornal biju com carne seca, come, ruminando a vida e depois mergulha num empossado seu alimento vivo, e com outro saco de sisal, começa a tarde,
O sol forte pousa mais uma vez no esquálido corpo de Sinhá Maria, e vez ou outra os caranguejos lhe beliscam o ombro delineado pelos ossos aparentes e a pele enegrecida de mangue.
A tarde quando o sol beija os paredões da serra, apresentando o suor do dia ao crepúsculo, o vulto de sinhá Maria ressurge com o barro seco no corpo como um fantasma, sulcando de novo a areia branca ao aproximar-se de seu casebre, o atravessador lhe espera, pesa o dia de Sinhá Maria, lhe entrega um maço de velhas notas e níqueis, e some na noite que começa, Sinhá Maria entra em seu casebre, e logo depois ressurge, anda 30 metros até o mar, mergulha uma, duas, três vezes, deixando no mar o cansaço e o barro do dia, torce seus longos cabelos, e caminha de volta ao casebre ruminando em seu estomago vazio, quando viajará às estrelas com seus entes queridos, nascidos e mortos ali, onde Sinhá Maria, nasceu, viverá e de onde um dia partirá.
No silencio da noite, uma pequena lamparina, cessa o seu lume, em cochicho se ouve uma breve oração e depois o mergulho de Sinhá Maria na eternidade da solidão noturna, ate a outra e outra manhã, ate que sua viagem eterna comece. Assim é a vida, não há resumo da luta, apenas o cessar do cotidiano, o que se vive, como se vive, é apenas um detalhe, que todos os dias levam gente ao paraíso, lá onde a história de cada um está registrada. E a luz é a recompensa.)